Opinião

Os acertos e os erros do Código de Defesa do Consumidor em seus 30 anos

Autor

  • Roberta Feiten

    é especialista em Direito Empresarial pela PUC-RS e em Direito Processual Civil pela UFRGS e sócia no Souto Correa Advogados.

23 de setembro de 2020, 18h11

Neste mês de setembro, o Código de Defesa do Consumidor (CDC) completa 30 anos de existência. Em uma análise global, é possível afirmar que temos uma legislação bastante conhecida, respeitada e aplicada. Ao longo das três décadas, muitas práticas dos fornecedores foram se adequando ao código, em atenção a seus princípios básicos, como o da informação e o da qualidade e segurança dos produtos e serviços.

Contribuiu para isso a ação governamental representada pelos órgãos administrativos e judiciais designados a solucionar disputas decorrentes das relações de consumo, com viés duplo: protetivo ao consumidor e sancionador contra o fornecedor, inclusive com amparo no reconhecimento da vulnerabilidade e fraqueza do primeiro perante o segundo. Tais órgãos, como por exemplo, o Procon e os Juizados Especiais, têm ao longo deste tempo reconhecido uma série de práticas infrativas e respaldado diversas multas administrativas e indenizações, conforme o caso, a serem arcadas por empresas dos mais variados portes.

Também a abertura do mercado a produtos importados, o comércio eletrônico e o incremento da concorrência contribuíram ao longo desses anos para que fornecedores se adequassem melhor à legislação a fim de proporcionar aos consumidores a melhor experiência e a fidelização dos clientes.

Passamos pela fase por alguns denominada como "indústria do dano moral", em que o consumidor era demasiada e inadequadamente beneficiado financeiramente por uma prática infrativa cometida pelo fornecedor, fase esta que foi superada pelo controle judicial do excesso reparatório diante do reconhecimento de que transtornos não ensejam indenização, e com a adequada aplicação da boa-fé como princípio a ser observado também pelo consumidor, como bem ressalta o CDC.

A oferta e a publicidade também foram tratadas com ênfase no período, em que houve um notável controle da divulgação de anúncios enganosos e abusivos, assim como a exigência de que fornecedores efetivamente honrassem com as ofertas realizadas ao público. Muitos são os outros temas em que se percebeu uma evolução significativa na proteção e defesa dos consumidores no país, com origem na vigência do CDC. Contudo, alguns pontos que não evoluíram tão bem também merecem menção e reflexão para, se possível, serem objeto de aprimoramento.

São quase incontáveis os projetos de lei que tramitam no Congresso Nacional sobre várias questões relacionadas ao Direito do Consumidor, alguns inclusive com a finalidade de atualizar a legislação e adaptá-la aos novos modelos de negócio e de relações de consumo que o avanço da tecnologia tem constantemente proporcionado. Enquanto isso, as controvérsias são resolvidas com base nos princípios e nas regras do CDC e das leis e decretos esparsos que o complementam. Ocorre que não são raras as decisões administrativas e judiciais atuais, inclusive de instâncias recursais, que se utilizam dos princípios do CDC para, conforme suas interpretações, embasar o entendimento de que uma determinada prática é infrativa e, assim, reprovar determinadas condutas e ordenar ao fornecedor o cumprimento de determinadas obrigações, sem que haja uma norma previamente especificada que realmente as respalde, o que gera surpresa e insegurança jurídica aos fornecedores.

Outro tema a destacar é a atuação segregada dos órgãos administrativos de defesa do consumidor. Sua autonomia estabelecida no CDC permite que um mesmo fornecedor, com atuação e operação em âmbito nacional, tenha uma conduta considerada de forma distinta em diferentes Estados e/ou municípios, podendo, portanto, ser aprovada em um local e reprovada em outro. Não bastasse isso, fornecedores são sujeitos à aplicação de multas administrativas calculadas de acordo com critérios diferentes conforme a localidade, uma vez que vários órgãos se pautam em portarias próprias específicas. Ainda, enquanto alguns órgãos locais consideram o faturamento do estabelecimento em que ocorreu a infração para calcular a multa, outros consideram o faturamento global nacional, inclusive quando se trata de comércio eletrônico ou quando se está diante de prática que, pela natureza, não permite a individualização do estabelecimento infrator. A aplicação de multas excessivas e desproporcionais à infração cometida em decorrência disto gera, ainda, a judicialização do tema, que em alguns casos não seria sequer necessária.

Em linha semelhante, fornecedores com atuação em âmbito nacional ficam sujeitos a investigações instauradas pelo Ministério Público de unidades de diferentes Estados, que, por vezes, não abrem mão do prosseguimento próprio, mesmo tendo ciência de iniciativa já adotada em outro Estado em relação à mesma prática. Com isso, por vezes fornecedores são solicitados a celebrar mais de um acordo, de conteúdos diferentes, inclusive com a exigência de que o acordo tenha abrangência a consumidores de todo o país. No Judiciário, não é muito diferente, na medida em que ações civis públicas são propostas em diferentes Estados, com diferentes pedidos sobre uma mesma prática, e com pedido de eficácia nacional, tema este que tem gerado frequentes debates, inclusive nos tribunais superiores.     

Outra reflexão importante e bastante atual relacionada ao CDC diz respeito à publicação de leis municipais e estaduais envolvendo a proteção e a defesa do consumidor. Em violação ao texto constitucional, a competência concorrente ou suplementar, conforme o caso, tem sido extrapolada por estados e municípios ao criarem e especificarem condutas e obrigações aos fornecedores e preverem direitos a consumidores, sobre diversos temas, sem que haja qualquer particularidade local a justificar a intervenção na legislação federal representada pelo CDC e sua legislação federal esparsa. São movimentos contrários ao rompimento de barreiras locais gerada pelo comércio eletrônico e pela tecnologia, além de não serem necessários à proteção dos consumidores já garantida pelo CDC, e que trazem diversas complexidades à operação de diversos fornecedores que atuam no mercado nacional, gerando, assim, judicialização em âmbito individual e coletivo.

Nesse cenário, e no contexto da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), indaga-se como a proteção de dados vai se relacionar com a defesa do consumidor, considerando a competência das autoridades administrativas e do Judiciário quando se estiver diante de relações de consumo. 

São inegáveis os avanços proporcionados pelo CDC e pelos organismos de defesa do consumidor nas três últimas décadas, que colocaram o país em um patamar adequado de defesa do consumidor, inclusive em comparação com outras jurisdições de elevado nível de proteção. Mas há também bastante espaço para melhorias do ponto de vista jurídico e também prático na aplicação do CDC e da legislação aplicável às relações de consumo, especialmente com um olhar mais atento aos princípios da harmonização dos interesses dos participantes das relações de consumo e compatibilização da proteção do consumidor com a necessidade de desenvolvimento econômico e tecnológico, previstos no CDC. 

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