Opinião

O descompasso entre pretensão não discriminatória e ação discriminante

Autor

  • Olga Vishnevsky Fortes

    é juíza titular da 7ª Vara do Trabalho de São Paulo presidente da Associação Brasileira de Magistrados do Trabalho (ABMT) e pós-graduada em Processo Civil e Administração Judiciária.

23 de setembro de 2020, 16h21

Sou cigana. Não é um modo de vida, mas uma raça ou etnia atribuível, segundo o princípio do jus sanguinis, ainda que assim não seja reconhecido legalmente. Sou cigana "de fato", mas de nacionalidade brasileira.

Fazendo parte de uma minoria fortemente discriminada, entendo que, de fato, não há racismo inverso ou reverso. Racismo é crime qualificado por se impedir, obstar ou dificultar a prática de atos ou o ingresso a locais, serviços, funções ou cargos, em razão de raça ou cor. É crime que protege minorias e, como tal, não se refere ao conceito numérico do termo, mas a uma etnia, raça ou grupo que tem uma desvantagem social e histórica. O tipo penal, como já dito, foi idealizado e criado para proteger minorias e, portanto, não pode ser praticado por alguém que dela faz parte para atingir os demais.

Mas, ante a polêmica criada — ao que parece, de forma midiática e mercadologicamente intencional —, como qualificar o ato de abrir vagas de emprego somente para negros ou pardos?

Dir-se-ia, como querem alguns, que se tratou de uma ação afirmativa, segundo a qual fora criada uma vantagem para acesso às vagas de emprego, de forma a corrigir a desvantagem social e histórica de uma minoria que no passado foi covardemente escravizada e ainda é repetidamente discriminada. A ação afirmativa seria lícita para o combate ao racismo estrutural.

Um exemplo de ação afirmativa que conhecemos é a representada pelo sistema de cotas, que define percentuais a serem preenchidos por minorias em universidades públicas, ou em cargos públicos ou empregos privados. Declarado constitucional, o sistema de cotas cria oportunidades e é um meio, que entendo justo, de combate à desigualdade.

Todavia, é preciso verificar que o sistema de cotas reserva um percentual de vagas e não impede o acesso daqueles que não compõem as minorias. Cria justas vantagens para afastar a desvantagem histórica e social e, portanto, tem natureza inclusiva.

Inclusiva que é, não pode ser excludente. Ato excludente, por motivação exclusivamente racial, embora não possa ser qualificado como racismo, denota uma arbitrária discriminação.

Explico. Segundo Celso Antonio Bandeira de Melo, as discriminações serão "compatíveis com a cláusula igualitária apenas e tão somente quando existe um vínculo de correlação lógica entre a peculiaridade diferencial acolhida por residente no objeto, e a desigualdade de tratamento em função dela conferida, desde que tal correlação não seja incompatível com os interesses prestigiados na constituição" (In "O Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade", 3ª ed. Ed. Malheiros, São Paulo, p. 17). O autor refere-se, então, à necessidade de "correlação lógica" entre o fator de discriminação e a diferenciação procedida.

É preciso, então, ter pertinência ou correlação lógica entre a diferença ou peculiaridade e a desigualdade de tratamento para discriminar de forma legal, como, por exemplo, na abertura de vagas para participação em pesquisa científica de combate à anemia falciforme, somente para pessoas negras — estudos de décadas passadas apontavam a maioria dessa população com disposição genética para a doença.

Embora a reserva de cotas não exija tal correlação ou pertinência lógica, possui pertinência social e histórica, daí a sua constitucionalidade, quando e se aplicada de acordo com o princípio de igualdade disposto no artigo 3º, IV, da Constituição Federal.

Assim é que, para que fosse uma ação afirmativa, não poderia haver a total exclusão de outras etnias e raças para a concorrência da vaga, mas a reserva de percentual, a critério do empregador ofertante, para a ocupação de negros ou pardos. Ou isso, ou a vantagem criada será discriminatória, sem correlação ou pertinência lógica, social ou histórica, aviltando o artigo 3º, IV, da Constituição Federal.

Há uma gravura que bem explica a justiça das cotas: uma pessoa alta e outra bem baixa estão diante de um muro e, para que os dois tenham a mesma visão para além dele, um banco é dado ao mais baixo, de forma a igualar a altura de ambos. Uma justa vantagem dada ao que possui uma inata desvantagem.

A oferta de vagas de empregos exclusivamente para negros constrói um alto muro para todos, abrindo uma janela somente para quem é negro ou pardo, negando, pois, a visão aos demais.

Há um nítido descompasso entre a pretensão não discriminatória inclusiva e a ação discriminante excludente. Não nos enganemos.

Autores

  • é juíza titular da 7ª Vara do Trabalho da Zona Sul de São Paulo, vice-presidente da ABMT (Associação Brasileira de Magistrados do Trabalho) e pós-graduada em Processo Civil e Administração Judiciária.

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