Opinião

A crise entre CIDH e OEA: triste desfecho para a proteção dos direitos humanos

Autor

  • Jessica Holl

    é professora substituta de Direito da Universidade Federal de Ouro Preto (Ufop) professora orientadora do Núcleo de Assessoria Jurídica de Ouro Preto (Najop/Ufop) coordenadora do Grupo de Estudos em Transições e Autoritarismos (Dedir/UFop) pesquisadora do Centro de Estudos em Justiça de Transição da UFMG (CJT/UFMG) diretora jurídica da Associação Visibilidade Feminina advogada e mestre em Direito pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da UFMG.

23 de setembro de 2020, 6h04

Desde o final de agosto, está no centro das discussões de internacionalistas e defensores de direitos humanos a crise institucional entre a Organização dos Estados Americanos (OEA) e a Comissão Interamericana de Direito Humanos (CIDH), que tem como centro a recondução do secretário-executivo da CIDH, Paulo Abrão.

No dia 15 de agosto, o secretário-geral da OEA, Luís Amalgro, rompeu com o histórico de independência da CIDH em relação à OEA e se recusou a reconduzir Paulo Abrão ao posto de secretário-executivo por novo período de quatro anos. Isso sem qualquer tipo de consulta prévia à comissão. Ressalte-se que a recondução de Abrão já havia sido aprovada em janeiro, por unanimidade, pela CIDH [1].

Frente a essa recusa, a comissão demandou da OEA o estabelecimento de um diálogo horizontal de modo a solucionar a questão da melhor forma possível. A comissão permaneceu por aproximadamente um mês firme ao afirmar que o secretário-executivo a ser indicado era Paulo Abrão e se recusando a aceitar a imposição de outro nome. O principal argumento da CIDH consiste na defesa de sua autonomia e na falta de diálogo em relação à decisão da OEA.

Por seu lado, Amalgro respondeu à comunidade internacional que a recusa do nome de Abrão se deve a 61 denúncias de assédio trabalhista que recebeu contra o brasileiro. Essas denúncias diriam respeito a condutas abusivas de Paulo Abrão na condução dos trabalhos na comissão e incluiriam remoções injustificadas de funcionários de seus postos de trabalho, perseguições, favoritismos e irregularidades nos processos de seleção de novos funcionários [2].

Contudo, também tem sido questionada a postura da ombudsman da OEA, Neida Pérez, que tem como função monitorar as relações de trabalho na organização e, por isso, deveria atuar de forma independente e sem receber qualquer tipo de influência de líderes da organização. No entanto, Pérez acabou ficando no centro das discussões relacionadas às supostas denúncias. Em 1º de setembro, foi veiculada uma troca de mensagens entre Pérez e uma ex-empregada da CIDH na qual a ombudsman questionava a ex-empregada se ela gostaria de compartilhar suas críticas acerca de Paulo Abrão, em poucas linhas, para um pronunciamento do secretário-geral da OEA. Note-se que essa conversa ocorreu dois dias antes de Amalgro emitir um enfático pronunciamento em que reforçou sua recusa a Abrão e mencionou as supostas denúncias de assédio trabalhista [3].

Em meio a toda essa controvérsia, a Comissão Interamericana manteve seu apoio ao nome de Paulo Abrão e ressaltou que as críticas são fruto de um processo de reestruturação interna pelo qual passa a CIDH.

Importantes nomes atuantes na proteção internacional dos direitos humanos se pronunciaram a favor da recondução de Abrão e da imperatividade da independência da CIDH. José Miguel Vivanco, diretor para as Américas da Human Rights Watch, ressaltou que a situação aparenta ser uma das maiores manobras políticas já experienciadas na comissão [4]. Michelle Bachelet, a alta comissária das Nações Unidas para os direitos humanos, disse em comunicado que "essa é uma situação muito prejudicial que corre o risco de minar a independência e a comprovada eficácia da CIDH" [5]. O diretor-executivo do Instituto Vladimir Herzog, Rogério Sottili, afirma, por sua vez, que Amalgro cedeu a pressões de governos autoritários da região [6]. Celso Amorim, Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff e os ex-presidentes da Colômbia, Ernesto Samper, e do Equador, Rafael Correa, assinaram uma declaração do Grupo de Puebla que critica o veto a Abrão e afirma se tratar de intervenção arbitrária do secretário-geral da OEA [7].

Foi noticiado que mais de 130 entidades brasileiras se mobilizaram e assinaram notas de apoio à recondução de Paulo Abrão e de repúdio à conduta de Amalgro. Ademais, mais de 70 parlamentares brasileiros também se pronunciaram em apoio a Abrão. Em contrapartida, o Itamaraty não emitiu qualquer pronunciamento sobre o tema, apesar de os governos do México e da Argentina já terem demonstrado preocupação com o tema [8].

Não obstante todas essas manifestações e diante de uma situação nunca antes experimentada entre a OEA e a CIDH, no dia 17 de setembro a comissão emitiu nota informando que no dia 25 do mesmo mês será iniciado novo processo de seleção de seu secretário-executivo. Na ocasião a comissão reforçou novamente a imperatividade de sua independência e sua autonomia para escolher seu secretário-executivo, com mandato de quatro anos, que pode ser renovado por um igual período. Também destacou seu profundo reconhecimento ao trabalho de Abrão durante seu mandato de 2016 a 2020 [9].

Uma melhor compreensão da situação, por sua vez, demanda a análise de alguns elementos: a compreensão da relação entre a OEA e a CIDH; a atuação da Comissão Interamericana durante o mandato de Abrão e as alianças políticas mais recentes Amalgro.

A relação entre CIDH e OEA
A Comissão Interamericana de Direitos Humanos foi criada em 1959 como um braço da OEA, sendo responsável pelo monitoramento das matérias relacionadas aos direitos humanos na região. Contudo, em razão de sua função, a CIDH sempre teve independência em relação à OEA. Isso visto que a proteção dos direitos humanos na região não pode estar sujeita às pressões políticas dos Estados-membros da OEA

Essa independência se manifesta também na escolha de seus secretários-executivos. Como os comissários não se dedicam em tempo integral às atividades da comissão, o papel do secretário-executivo é fundamental na realização do trabalho diário. Por isso, também, ele precisa ser uma pessoa de notório saber na área e que detém a total confiança dos comissários.

Como destacou o Cejil em sua nota sobre não recondução de Abrão, "desde a gestão do secretário-geral da OEA César Gaviria na década de 1990, os secretários executivos da CIDH foram nomeados de acordo com a proposta da CIDH" [10]. A esse respeito merece destaque o artigo 21.3 do Estatuto da CIDH:

"Artigo 21.3 — O secretário executivo será designado pelo secretário-geral da organização em consulta com a comissão. Além disso, para que o secretário-geral possa dar por terminados os serviços do secretário executivo, deverá consultar a comissão a respeito e comunicar-lhe os motivos que fundamentam sua decisão" [11].

No mesmo sentido é o artigo 11 do regulamento da CIDH, em que é detalhado o processo de escolha do secretário executivo. Portanto, fica expressa a autonomia da comissão em indicar e selecionar seu secretário executivo, não estando essa questão no escopo da discricionariedade do secretário-geral da OEA. Afinal, a própria Convenção Americana, ao instituir o Sistema Interamericano de Proteção dos Direitos Humanos, demonstra claramente que a proteção dos direitos humanos não pode estar sujeita a jogos e interesses políticos secundários ou a pautas partidárias. Ela deve ser uma política de Estado e ser defendida de forma intransigente na região.

Aqui, importa também destacarmos que o respeito a normas da própria organização deve prevalecer em relação a argumentos de política. Por mais que a relação entre direito e política internacional seja muito próxima, não é possível subjugar o respeito às normas de Direito Internacional (incluindo as normativas internas das organizações internacionais) à oportunidade política. A partir do momento em que essas normas são instituídas como tais, elas devem ser cumpridas. E nas normativas da CIDH está evidente a função meramente declaratória do secretário-geral da OEA ao designar o secretário executivo da CIDH — que é efetivamente escolhido pelos Comissários da CIDH, no exercício de suas competências estatutárias e regulamentares.

Entre Abrão e Amalgro
Nesse contexto, chama a atenção que Amalgro foi ministro das Relações Exteriores do Uruguai no governo de Pepe Mujica (2010-2015) e atualmente vem tomando reiteradas decisões que asseguram a proteção de interesses norte-americanos ou de governos conservadores da região. Nessa linha, o ex-ministro das relações internacionais do Brasil, Celso Amorim, destaca que o veto ao nome de Abrão ocorre em um momento em que a política externa de Trump dedica especial atenção para a região e vê na OEA uma possibilidade de expandir suas ferramentas de dominação [12].

Por outro lado, Paulo Abrão, um dos principais especialistas em direitos humanos da região, é responsável pela criação e implementação de um plano estratégico [13] para a expansão da atuação da CIDH até 2021 e operacionalizou uma reestruturação administrativa, com o objetivo de dar mais efetividade ao órgão. Destaque-se que a CIDH sempre recebeu críticas de entidades de proteção dos direitos humanos em razão do longo tempo necessário à apreciação dos casos levados à comissão [14], daí a necessidade de otimizar seus procedimentos. Supostamente essa readequação de práticas internas gerou uma série de controvérsias, chegando até às supostas denúncias de assédio trabalhista.

Contudo, a situação permanece muito pouco clara. Passadas semanas desde o pronunciamento de Almagro em que as supostas denúncias foram mencionadas, muito pouco se sabe sobre elas, nem mesmo se foram devidamente processadas ou estão sendo investigadas. E o emaranhado de interesses políticos envolvidos coloca em suspeita um afastamento pela existência de supostas denúncias, sobre as quais a única coisa que se tem certeza é que as investigações (se iniciadas) não terminaram e que não houve a condenação de Abrão em nenhum processo administrativo ou algo similar.

Também chama a atenção o fato de que a não renovação do mandato de Abrão ocorreu às vésperas da divulgação de um relatório da CIDH sobre violência policial, atuação de milícias, ataques a minorias e retrocessos democráticos no Brasil [15]. O conteúdo do relatório a ser publicado indicaria a ocorrência de "deterioração, retrocessos e graves violações de direitos humanos" no Brasil, abarcando o período de 2018 (data da última visita da CIDH ao Brasil) a setembro de 2020 [16].

Assim, especialistas e autoridades que têm contato mais direto com a situação têm apontado que a destituição de Paulo Abrão estaria diretamente relacionada à pressão exercida pelo Brasil e por outros Estados descontentes com análises negativas sobre violações a direitos humanos. No caso brasileiro é notório que em nenhum período anterior ao governo Bolsonaro foram apresentadas tantas denúncias contra o país, lembrando que o Brasil tornou-se parte da Convenção Americana em 1992. Desde a posse de Bolsonaro, o Brasil recebeu mais de 45 críticas públicas, petições e recomendações [17], o que supera muito qualquer outro governo anterior (incluindo quando a ex-presidenta Dilma Rousseff ameaçou deixar o órgão [18]).

Assim, o que se pode concluir da presente controvérsia é que a proteção dos direitos humanos na região pode estar em risco pelo precedendo criado. Se a autonomia da CIDH passa a ser flexibilizada em torno de argumentos de política e em detrimento das normas regionais, há o risco da comissão perder parte de sua independência ao emitir relatórios sobre os Estados-membros, comprometendo sua efetividade.


[1] VIVANCO, José Miguel; BRONER, Tamara Taraciuk. Why a Human Rights Icon Needs Its Independence. Americas Quarterly. Human Rights. Disponível em: https://www.americasquarterly.org/article/why-a-human-rights-icon-needs-its-independence/. Acesso em 02/09/2020.

[2] O Globo e Agências Internacionais. Em carta, ex-funcionários acusam brasileiro que dirige CIDH de "abuso de poder". O Globo. Mundo. Publicado em 01/09/2020. Disponível em: https://oglobo.globo.com/mundo/em-carta-ex-funcionarios-acusam-brasileiro-que-dirige-cidh-de-abuso-de-poder-24617179. Acesso em 02/09/2020.

[3] The Associated Press. Ombudswoman de OEA bajo mira por mensajes en torno a CIDH. Infobae. Publicado em: 01/09/2020. Disponível em: https://www.infobae.com/america/agencias/2020/09/01/ombudswoman-de-oea-bajo-mira-por-mensajes-en-torno-a-cidh/. Acesso em: 02/09/2020.

[4] Ibidem.

[5] AFP. Bachelet pede solução urgente para crise na CIDH. Estado de Minas. Internacional. Publicado em: 27/08/2020. Disponível em: https://www.em.com.br/app/noticia/internacional/2020/08/27/interna_internacional,1179965/bachelet-pede-solucao-urgente-para-crise-na-cidh.shtml. Acesso em 02/09/2020.

[6] Rede Brasil Atual. Veto a Paulo Abrão mostra imposição de viés autoritário na OEA, diz diretor do Instituto Vladimir Herzog. Sul 21. Publicado em 28/08/2020. Disponível em: https://www.sul21.com.br/ultimas-noticias/politica/2020/08/veto-a-paulo-abrao-mostra-imposicao-de-vies-autoritario-na-oea-diz-diretor-do-instituto-vladimir-herzog/. Acesso em 02/09/2020.

[7] MARETTI, Eduardo. Amorim: Trump quer OEA e BID como instrumentos de dominação diretana América Latina. Rede Brasil Atual. Internacional. Publicado em 28/08/2020. Disponível em: https://www.redebrasilatual.com.br/internacional/2020/08/amorim-trump-quer-oea-e-bid-como-instrumentos-de-dominacao-direta-na-america-latina/. Acesso em 02/09/2020.

[8] CHADE, Jamil. ONU pressiona por uma solução para veto da OEA contra brasileiro. Coluna UOL. Publicado em 27/08/2020. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/colunas/jamil-chade/2020/08/27/onu-pressiona-por-uma-solucao-para-veto-da-oea-contra-brasileiro.htm. Acesso em: 02/09/2020.

[9] CIDH. La CIDH anuncia su decisión de abrir un proceso de selección de la persona que ocupará el cargo de titular de la Secretaría Ejecutiva y agradece la gestión del Secretario Paulo Abrão. Comunicado de Prensa. 17/09/2020.  Disponível em: http://www.oas.org/es/cidh/prensa/comunicados/2020/224.asp. Acesso em 17/09/2020.

[10] Cejil. Comunicado de Imprensa. Publicado em 27/08/2020. Disponível em: https://www.cejil.org/es/cejil-expressa-preocupacao-com-erosao-da-autonomia-da-cidh. Acesso em 17/09/2020.

[11] CIDH. Estatuto da Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Aprovado pela resolução AG/RES. 447 (IX-O/79. 1979. Disponível em: https://www.cidh.oas.org/basicos/portugues/t.Estatuto.CIDH.htm. Acesso em 17/09/2020.

[12] MARETTI, Op. sit.

[13] CIDH. Plan estratégico 2017-2021 : Aprobado por la Comisión Interamericana de Derechos Humanos durante su 161 período de sesiones: marzo 2017. Disponível em: http://www.oas.org/es/cidh/mandato/PlanEstrategico2017/docs/PlanEstrategico-2017-2021.pdf. Acesso em 15/09/2020.

[14] Sobre esse tema, ver: DULITZKY, Ariel E. Muy poco, muy tarde: la morosidad procesal de la Comisión Interamericana de Derechos Humanos. Buenos Aires, marzo 25 de 2015 – JA 2015-I, fascículo n. 12. Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/tablas/r33492.pdf. Acesso em 10/09/2020.

[15] SENRA, Ricardo. Brasileiro secretário da OEA para direitos humanos é demitido às vésperas de relatório sobre milícias e ataques a minorias no Brasil. BBC News Brasil. Publicado em 28/08/2020. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-53944393. Acesso em 02/09/2020.

[16] Ibidem.

[17] Ibidem.

[18] NERY, Natuza. Dilma retalia OEA por Belo Monte e suspende recursos. Folha de São Paulo. Mercado. 30/04/2011. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/mercado/me3004201117.htm. Acesso em 17/09/2020.

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    é professora substituta de Direito da Universidade Federal de Ouro Preto (Ufop), professora orientadora do Núcleo de Assessoria Jurídica de Ouro Preto (Najop/Ufop), coordenadora do Grupo de Estudos em Transições e Autoritarismos (Dedir/UFop), pesquisadora do Centro de Estudos em Justiça de Transição da UFMG (CJT/UFMG), diretora jurídica da Associação Visibilidade Feminina, advogada e mestre em Direito pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da UFMG.

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