Opinião

Advocacia criminal e dualidade de defensores

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23 de setembro de 2020, 8h06

Bruce Green é professor de Direito da Universidade de Fordham e publicou interessante artigo científico contendo proposta para solucionar o gravíssimo problema da defesa técnica deficiente ou inexistente no processo penal [1].

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Trata-se da nomeação de dois defensores técnicos para o acusado, os quais interagem entre si, com o acusado e terceiros (julgador, parte adversa, órgãos auxiliares da Justiça etc.), porém exercem funções distintas.

O defensor negociador tem a função de aconselhamento do cliente e negociação sobre mecanismo de aplicação consensual da pena. Por outro flanco, o defensor contencioso tem o papel de condução operacional da causa nas fases de investigação preliminar e julgamento.

A proposta de Green não é tão radical assim, considerando que relação de colaboração entre diversos defensores constitui a regra em alguns nichos de atuação profissional (v.g. litígios societários complexos; crimes de cariz econômico-financeiro etc.).

Essa relação colaborativa pode se dar inclusive entre defensores de nacionalidades e Ordens de Advogados diversas, como é comum em casos de cooperação jurídica internacional em matéria penal (v.g. auxílio direto, extradição etc.).

A duplicidade de defensores é uma exigência das "Diretrizes para nomeação e performance de advogados de defesa em casos de pena de morte", da American Bar Association (ABA). [2]

No sistema processual penal inglês, há divisão entre o advogado consultivo (solicitor) e o advogado contencioso (barrister).

Em resumo, o primeiro tende a ser mais generalista, prestando consultoria diretamente ao cliente e preparando seu caso para julgamento (v.g. conduzindo a investigação defensiva etc.). Já o segundo é focado na prática judiciária contenciosa (notadamente perante tribunais superiores), prestando consultoria especializada ao cliente, produzindo parecer escrito etc. [3]

Segundo a proposta de Green, cabe ao defensor negociador fazer entrevista reservada com o acusado, descobrindo seus objetivos e coletando informações necessárias para negociar o acordo de aplicação da pena.

Baseado nessas informações, somadas àquelas fornecidas pelo acusador e pelo defensor contencioso, o defensor negociador orienta o cliente sobre suas opções estratégicas e táticas, encetando tratativas negociais com o acusador e assegurando a natureza informada da decisão do acusado.

Também é papel do defensor negociador a prestação de assistência jurídica ao acusado durante a audiência de homologação do acordo.

Por outro flanco, cabe ao defensor contencioso entrevistar o acusado sobre possíveis defesas processuais (preliminares e de mérito), contraprovas, postular a concessão de liberdade provisória, buscar acesso aos elementos informativos e probatórios na posse do acusador, conduzir a investigação defensiva e representar o acusado durante o julgamento.

Essa repartição de funções pressupõe atuação integrada entre os dois defensores. O negociador, para poder orientar o acusado sobre a conveniência e oportunidade de celebrar acordo de aplicação da pena, precisa se consultar com seu colega contencioso sobre o ocorrido na fase da investigação preliminar, e obter dele prognóstico de êxito na fase de julgamento.

No sentido inverso, as escolhas estratégicas e táticas do defensor contencioso durante a fase da investigação preliminar podem se beneficiar de informações colhidas pelo defensor negociador junto ao acusado e acusador.

Os dois defensores interagem com a parte acusadora, porém adotando perspectivas distintas.

O defensor negociador tem atuação mais cooperativa, sendo responsável por deflagrar a negociação, pactuar os seus termos e condições, e apontar os fatores de mitigação da responsabilidade penal, as contraprovas defensivas, a probabilidade de resultado favorável ao acusado no julgamento etc.

Isso permite que o defensor contencioso tenha relação mais adversarial com o acusador, durante as fases de investigação preliminar e julgamento.

Green aponta algumas vantagens desse arranjo bifurcado, tendo em vista que a efetividade da defesa técnica pode ser decisiva para: 1) a liberdade do acusado no curso do processo; 2) a celebração de acordo de aplicação da pena; 3) a absolvição no mérito; e 4) a redução da pena aplicada etc.

Ademais disso, essa efetividade condiciona a compreensão do acusado sobre a persecução penal, a confiança por ele depositada no defensor técnico e a qualidade das decisões do acusado, contribuindo para a legitimação do sistema de administração da Justiça criminal como um todo.

Segundo Green, essa configuração dualista de defensores pode solucionar algumas disfunções da defesa técnica.

A uma, a proposta pode remediar o problema da indução do cliente a aceitar mecanismo consensual de aplicação da pena, sem que o defensor cumpra seu dever de investigar os fatos naturalísticos e se preparar para o julgamento de forma adequada. O cumprimento desse dever é importante para viabilizar prognóstico mais informado e preciso de êxito processual.

A prática comodista de induzir o assistido ou cliente a aceitar esse acordo é conhecida como meet them and plead them, decorrendo de volume excessivo de casos sob a responsabilidade do defensor, pressões exógenas do julgador e acusador etc.

Nessa toada, o defensor negociador pode prestar aconselhamento mais confiável e desinteressado sobre a aceitação de mecanismo de aplicação consensual da pena, comparado ao defensor contencioso. Este último tem incentivo pessoal para induzir o acusado a aceitar o sobredito mecanismo: o interesse em reduzir a própria carga de trabalho (v.g. com investigação defensiva, preparação para o julgamento, comparecimento em audiências etc.).

A duas, a proposta permite aumento do grau de responsabilidade (accountability) de cada defensor.

Isso porque o defensor negociador pode atuar como procurador do acusado na valoração, supervisão e explanação do trabalho desenvolvido pelo defensor contencioso. Nesse sentido, o conhecimento jurídico do negociador permite avaliar a qualidade da investigação defensiva, dos pedidos formulados ao juízo, da preparação para o julgamento etc. O defensor contencioso pode exercer papel análogo na valoração, supervisão e explanação do trabalho consultivo e negocial desempenhado pelo negociador.

Tal supervisão recíproca entre defensor negociador e contencioso pode contribuir para a superar a falta de: 1) cursos de formação e capacitação de defensores; 2) controle judicial efetivo sobre o empenho pessoal e perícia dos defensores; 3) conhecimento jurídico dos assistidos e clientes para avaliar a qualidade do trabalho dos defensores, durante a investigação e preparação para o julgamento.

A três, a proposta traz potencial benefício de aperfeiçoamento da qualidade da defesa técnica, pois o defensor tende a trabalhar isolado, em órgão de execução da Defensoria Pública, ou como profissional liberal, integrante de sociedade unipessoal etc.

Logo, a discussão do caso entre os defensores (negociador e contencioso) e a oportunidade de feedback entre eles geram processo decisório mais informado e refinado sobre potenciais benefícios e riscos de cada escolha estratégica e tática, e prognóstico de êxito processual mais preciso. A consequência prática é a mitigação dos riscos de escolhas equivocadas, subestimação de problemas, perda de oportunidades processuais etc.

A quatro, a proposta pode fomentar a confiança do assistido ou cliente no trabalho da defesa técnica.

Nesse sentido, a supervisão recíproca entre defensor negociador e contencioso pode assegurar que eles estão propiciando ao acusado defesa técnica efetiva.

A cinco, a proposta permite que cada defensor desempenhe seu respectivo papel sem as limitações impostas ao colega.

Em alguns contextos, há relação de desconfiança, quiçá hostilidade, entre acusador e defensor contencioso, a qual pode dificultar a satisfação dos interesses do acusado, notadamente quanto a mecanismo de aplicação consensual da pena.

Assim, a proposta de Green permite relações profissionais diferenciadas com o acusador.

O defensor negociador pode cultivar relação mais amistosa e cooperativa, visando a manter abertos os canais de comunicação e negociação com a parte adversa. Por outro flanco, o defensor contencioso pode adotar postura mais beligerante e adversarial, ficando livre para adotar estratégica e táticas processuais agressivas sem prejudicar os interesses do acusado.

A seis, a proposta pode viabilizar maior conscientização (individual e coletiva) dos defensores sobre suas respectivas funções, e as vantagens da especialização.

Na dinâmica processual contemporânea, o defensor deve desempenhar variegadas funções (consultiva, coordenadora, investigativa, negocial, contenciosa etc.). Tais funções são de difícil reconciliação prática, máxime ante problemas sistêmicos do sistema de administração da justiça criminal (v.g. inadequada formação ética, jurídica e prática, volume de trabalho excessivo etc.).

Além disso, bons consultores e negociadores precisam de um conjunto de habilidades diverso daquele exigido dos bons litigantes. A bifurcação de funções pode fomentar novo paradigma de formação e capacitação profissional, voltado também para as habilidades negociais do defensor.

A sete, a proposta pode catalisar aperfeiçoamentos na teoria e prática processual penal. Isso porque o reconhecimento da dignidade das funções consultiva e negocial da advocacia criminal pode gerar standards deontológicos mais rigorosos, produção doutrinária e jurisprudencial mais benéfica aos acusados etc.

A oito, a proposta pode despertar maior grau de interesse pela especialização na advocacia criminal, atraindo profissionais vocacionados para uma dessas funções (negocial ou contenciosa), permitindo maior grau de especialização.

Green antecipa algumas possíveis objeções à sua proposta.

As primeiras são as dificuldades práticas, especialmente de natureza administrativa e financeira, na implementação da defesa técnica efetiva. Tais dificuldades resultam do custo mais elevado da representação processual dualista.

Green rebate argumentando que o objetivo da sua proposta é exatamente esse: motivar atuação de defensores com maior grau de diligência, isolando-os de incentivos indesejáveis para se desincumbirem rapidamente do seu múnus.

Outras objeções se relacionam à ineficiência, em razão do esforço e tempo dedicados às trocas de informações entre defensores, conversas repetitivas com o acusado, comparecimento de dois defensores a atos processuais penais etc.

Green pondera que tais esforço e tempo são compensados pelas vantagens proporcionadas ao acusado: acesso mais frequente à assistência jurídica, inclusive a duas perspectivas profissionais sobre seu caso, a informações comunicadas de formas diversas etc.

Outras objeções se vinculam: 1) à falta de interesse político na melhoria qualitativa da defesa técnica, e no subsequente aumento da confiabilidade e justiça do sistema de administração da Justiça criminal (máxime quando tal implica aumento de gastos); 2) à inutilidade da nomeação de dois defensores desmotivados, sobrecarregados e incapazes de dedicar tempo suficiente à defesa técnica do acusado; 3) às possíveis falhas de comunicação e repartição de tarefas entre os defensores [4]; 4) ao risco de corporativismo e encobrimento de erros processuais pelos defensores; e 5) ao risco de desestímulo a profissionais que preferem manter controle sobre os dois aspectos (negocial e contencioso) da representação do acusado etc.

Green aduz que, malgrado inexista perspectiva de o legislador ou os tribunais adotarem sua proposta a curto prazo, ela pode ser implementada por alguma defensoria pública, ou entidade de assistência jurídica dativa, em caráter experimental. O ideal seria que esse projeto piloto fosse acompanhado por pesquisadores para amealhar dados empíricos sobre variáveis tais como: 1) o percentual de acordos de aplicação da pena celebrados; 2) o percentual de absolvições; e 3) o grau de satisfação dos acusados com sua representação etc.

Ante o exposto, é lícito concluir que a proposta de Green é interessante pelo seu cariz inovador no enfrentamento do gravíssimo problema da defesa técnica deficiente ou inexistente no processo penal.

A proposta também tem o inegável mérito de desafiar reflexão sobre desafios, habilidades, incentivos, responsabilidades e vieses do defensor, inclusive seu dever ético de exercer variegadas funções (consultiva, coordenadora, investigativa, negocial, contenciosa etc.) com empenho pessoal, capacitação técnica e ética.

 


[1] GREEN, Bruce. The right to two criminal defense lawyers, In: Mercer Law Review, v. 69, n. 03, pp. 675-696, 2018.

[2] AMERICAN BAR ASSOCIATION (ABA). Guidelines for the appointment & performance of defense counsel in death penalty cases, In: Hofstra Law Review, n. 31, v. 04, pp. 913-1.090, 2003.

[3] GOWER, LCB; PRICE, Leolin. The profession and pratice of law in England and America, In: Modern Law Review, v. 20, n. 04, pp. 317-346, 1957.

[4] Sobre o dever ético de manter o cliente informado dos desdobramentos do caso, ver: SIEBERSON, Stephen. Two lawyers, one client and the duty to communicate, In: The University of New Hampshire Law Review, v. 11, n. 01, pp. 27-67, 2013.

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