Opinião

A litigância de má-fé e o abuso no direito de recorrer no processo penal

Autores

  • Galtiênio da Cruz Paulino

    é mestre pela Universidade Católica de Brasília doutorando pela Universidade do Porto pós-graduado em Direito Público pela ESMPU e em Ciências Criminais pela Uniderp orientador pedagógico da ESMPU ex-procurador da Fazenda Nacional e atualmente procurador da República e membro-auxiliar na Assessoria Criminal no STJ.

  • João Paulo Santos Schoucair

    é promotor de Justiça e membro auxiliar da Procuradoria-Geral da República.

22 de setembro de 2020, 18h08

O Código de Processo Civil, aplicável subsidiariamente ao processo penal, consagra, no artigo 5º [1], o princípio da boa-fé processual, do qual decorre o dever de lealdade processual. Esse princípio, conforme já decidido pelo Supremo Tribunal Federal [2], possui sede constitucional e resulta do princípio da dignidade da pessoa humana e dos princípios do contraditório e da ampla defesa.

O princípio da boa-fé processual é uma decorrência do modelo garantista de jurisdição adotado no Brasil, destinado para uma efetiva proteção de todos os direitos e garantias individuais e coletivos, que só será possível, no âmbito do processo, por meio de uma marcha processual célere e efetiva, não obstada por subterfúgios desleais e protelatórios dos sujeitos processuais.

Essa boa-fé processual, enquanto princípio, é de caráter objetivo, ou seja, "é uma norma de conduta: impõe e proíbe condutas, além de criar situações jurídicas ativas e passivas" [3]. É enquadrada, portanto, como uma cláusula geral de boa-fé, concretizada por algumas regras de proteção, como é o caso da litigância de má-fé, prevista nos artigos 79/81 do Código de Processo Civil [4].

A incidência da litigância de má-fé se apresenta como uma forma de se impedir uma das quatro situações que o princípio da boa-fé busca compelir, segundo o Direito alemão, o "abuso de direitos processuais" [5], como é o caso do abuso do direito recursal.

No processo penal, são inúmeros os casos vivenciados no cotidiano processual de abuso do direito de defesa. Um exemplo nacionalmente conhecido é o caso do ex-senador Luiz Estevão, que, até a decretação da sua prisão, em 7 de março de 2016, já havia interposto 34 recursos, em manifesto abuso de recorrer, visando a evitar o trânsito em julgado e, consequentemente, o início da execução da pena [6].

Nesse ponto específico, vale o registro de que o abuso do direito de recorrer encontra ressonância, sobretudo, na infinita rediscussão recursal de matérias sepultadas nas instâncias ordinárias, de modo a obstar a marcha processual e/ou a formação da coisa julgada, perante os tribunais superiores, não se perdendo de foco que o julgador não precisa abordar todas as diversas teses levantadas pelos recorrentes, caso as mesmas não possam infirmar seu convencimento, nos termos do artigo 489, inciso IV, §1º, do Código de Processo Civil [7].

Essas atitudes de abuso de direitos processuais, no caso o direito recursal, ferem não apenas o princípio da boa-fé processual, mas outros princípios que são supedâneos do sistema processual brasileiro, como os princípios da ampla defesa, da eficiência, da duração razoável do processo e da efetividade.

Diante dessa realidade de abuso de direitos recursais, positivou-se no ordenamento jurídico a litigância de má-fé em situações recursais específicas, como é o caso do artigo 1.026 do Código de Processo Civil, que impõe a incidência de multa em caso de interposição de embargos de declaração meramente protelatórios.

Por conseguinte, a aplicação das consequências da litigância de má-fé no processo penal é plenamente cabível, não apenas em razão da aplicação subsidiária do Código de Processo Civil, mas em decorrência da necessidade de se respeitar o princípio da boa-fé processual, que norteia todo o sistema processual brasileiro. Não se busca, com a decretação de uma atitude de um sujeito processual como de litigância de má-fé, cercear o direito de defesa, mas evitar abusos de exercício desse direito, que não são compatíveis com um processo leal e justo, propugnado pelo nosso ordenamento jurídico.

Dito isso, tem-se que a litigância de má-fé credencia, em tese, a impossibilidade de reconhecimento de excesso prazal [8], a certificação de plano do trânsito em julgado [9] e a aplicação de multa financeira [10], numa perspectiva processual de que a ilicitude processual precisa ser sancionada, evitando que o processo se torne um caminho sem fim.

Não se pode admitir que aquele que impede o normal transcurso processual possa alegar a mora da prestação jurisdicional para, assim, pleitear sua liberação, numa sistemática processual em que a cooperação e lealdade sejam vetores da relação jurídica existente entre os atores do sistema de Justiça.

De igual modo, é inadmissível que um sistema recursal possa funcionar harmonicamente com a interposição e sobreposição recursal, em que, por exemplo, os embargos de declaração sejam opostos [11], de maneira sequenciada, sendo a certificação imediata do trânsito a providência jurisdicional cabível para impedir tal lamentável estratégia defensiva.

Em outro vértice, a cominação pecuniária, historicamente aplicada na ritualística adjetiva civil, já encontra porto seguro na jurisprudência processual penal, ante a construção de cenário econômico idôneo a onerar o patrimônio do recorrente e, portanto, desestimular eventual aventura jurídica recursal.

Feitas tais considerações, é importante consignar que as três sanções processuais acima indicadas encontram guarida jurisprudencial nas cortes superiores, as quais têm impedido, enfim, que o Poder Judiciário seja colocado em xeque e perca sua credibilidade perante a sociedade.

A busca por um processo penal célere, obstado, por exemplo, por recursos procrastinatórios de um dos sujeitos processuais, é uma forma de se concretizar o princípio da presunção de inocência, sob a óptica do acusado, e o direito fundamental da sociedade à segurança. Um processo por demais longo mantém em constante violação a presunção de inocência de um acusado que seja inocente, ao tempo que impossibilita a concretização do direito da sociedade à segurança, materializado no processo penal por uma marcha processual eficiente e célere.

A demora na solução de um litígio penal impreterivelmente desenvolve na sociedade o sentimento de que o "crime compensa". Nesse sentido, Rui Barbosa afirmava que "a justiça atrasada não é justiça; senão injustiça qualificada e manifesta" e que a "justiça tardia nada mais é do que injustiça institucionalizada".


[1] Artigo 5º — Aquele que de qualquer forma participa do processo deve comportar-se de acordo com a boa-fé.

[2] STF, 2.ª T., RE n. 464.963-2-GO.

[3] DIDIER JR, Fredie. Curso de Processo Civil. Vol. 1. Salvador: Jus Podivm, 17.ª edição, 2015, p. 104.

[4] "Artigo 79 — Responde por perdas e danos aquele que litigar de má-fé como autor, réu ou interveniente".

"Artigo 80 — Considera-se litigante de má-fé aquele que:

I. deduzir pretensão ou defesa contra texto expresso de lei ou fato incontroverso;

II. alterar a verdade dos fatos;

III. usar do processo para conseguir objetivo ilegal;

IV. opuser resistência injustificada ao andamento do processo;

V. proceder de modo temerário em qualquer incidente ou ato do processo;

VI. provocar incidente manifestamente infundado;

VII. interpuser recurso com intuito manifestamente protelatório".

"Artigo 81 — De ofício ou a requerimento, o juiz condenará o litigante de má-fé a pagar multa, que deverá ser superior a um por cento e inferior a dez por cento do valor corrigido da causa, a indenizar a parte contrária pelos prejuízos que esta sofreu e a arcar com os honorários advocatícios e com todas as despesas que efetuou.

§ 1º. Quando forem dois ou mais os litigantes de má-fé, o juiz condenará cada um na proporção de seu respectivo interesse na causa ou solidariamente aqueles que se coligaram para lesar a parte contrária.

§ 2º. Quando o valor da causa for irrisório ou inestimável, a multa poderá ser fixada em até dez vezes o valor do salário-mínimo.

§ 3º. O valor da indenização será fixado pelo juiz ou, caso não seja possível mensurá-lo, liquidado por arbitramento ou pelo procedimento comum, nos próprios autos".

[5] As outras três formas de violação ao princípio seriam: criação dolosa de posições processuais; venire contra factum proprium; Verwirking.

[6] LUCHETE, Felipe. Juiz manda prender ex-senador Luiz Estêvão, condenado em segunda instância. Disponível em:< http://www.conjur.com.br.: Acesso em: 15 set. 2020.

[7] "Artigo 489 — São elementos essenciais da sentença:

§ 1º. Não se considera fundamentada qualquer decisão judicial, seja ela interlocutória, sentença ou acórdão, que:

[…]

IV. não enfrentar todos os argumentos deduzidos no processo capazes de, em tese, infirmar a conclusão adotada pelo julgador".

[8] STF, 2ª T., HC nº 131.225, Rel. Min. Gilmar Mendes, DJe 25/04/2016.

[9] STF, 1ª R., AgR HC nº 177672, Rel. Min. Roberto Barroso, DJe 29/05/2020.

[10] STF, AP 946, ED-EI-Extn, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, DJe 19/11/2018.

[11] A título de ilustração, em recente precedente, o Superior Tribunal de Justiça certificou o trânsito em julgado, rejeitando Embargos de Declaração nos Embargos de Declaração no Agravo Regimental nos Embargos de Declaração no Agravo Regimental nos Embargos de Declaração nos Embargos de Divergência em Agravo em Recurso Especial. (STJ, 3ª Seção, Recurso Especial nº 1.081.546, Rel. Min. Ribeiro Dantas, DJe 01/04/2019).

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