Pareceres da OAB

Brasil deve abandonar o modelo vigente da LSN, dizem juristas

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22 de setembro de 2020, 7h46

A ideia de segurança nacional historicamente tendeu para o absoluto. No Brasil, que tomou como base este conceito, foram empregadas violências de Estado contra seus inimigos, representando uma das “experiências mais dramáticas” no país, conforme analisam os juristas Miguel Reale Júnior e Alexandre Wunderlich, em parecer entregue recentemente ao Conselho Federal da OAB. 

Spacca
O documento retoma o histórico das Constituições brasileiras e analisa a Lei de Segurança Nacional (7.170/1983). 

A LSN voltou ao debate no início deste ano e vem sendo cada vez mais aplicada. Foi usada pelo então ministro Sergio Moro em fevereiro para abrir inquérito contra o ex-presidente Lula por suas declarações sobre o presidente Jair Bolsonaro. Chegou a basear pedido da Procuradoria-Geral da República no STF para investigar atos antidemocráticos e também pelo Ministério da Defesa, que investiu contra o ministro Gilmar Mendes por críticas ao Exército.

De acordo com os estudiosos,  a lei chegou para revogar a “draconiana Lei de Segurança Nacional de 1978” e  “adaptar-se ao momento de evolução de um regime militar autoritário para um regime democrático de Estado de Direito”. Porém, foi pensada inicialmente para ser uma legislação de transição, dizem.  

Chama a atenção o fato de que a lei não se limita a estabelecer normas incriminadoras, mas disciplina institutos da parte geral. Como explicam os advogados, a lei “estabelece que se aplica no que couber não o Código Penal Comum, mas o Código Penal Militar, em absoluto descompasso com as inovações trazidas pela Parte Geral de 1984 e pela Lei de Execução Penal, cujas disposições em grande parte foram reproduzidas no art. 5º da Constituição Federal de 1988”. 

Um dos descompassos é: permitir a suspensão condicional da pena como substitutiva à pena privativa de liberdade, sujeita à presunção de não se delinquir no futuro, para penas até dois anos de reclusão. A Constituição define que a lei deve regular a individualização da pena (Art. 5º, XLVI).

Outro ponto em desalinho é a incriminação de condutas relativas à “segurança interna”. Os artigos 16 e 17 da LSN definem ser crime “integrar ou manter associação, partido, comitê, entidade de classe ou grupamento que tenha por objetivo a mudança do regime vigente ou do Estado de Direito, por meios violentos ou com o emprego de grave ameaça” (art. 16), bem como “tentar mudar, com emprego de violência ou grave ameaça, a ordem, o regime vigente ou o Estado de Direito” (art. 17).

Ao definir a Segurança Nacional como objeto principal de tutela, "a lei em combate vem a reconhecer a legitimidade do regime vigente que não era o Estado de Direito, vindo a protegê-lo contra tentativas de sua alteração por via de participação em entidade que vise a promover tal mudança por via de grave ameaça", diz o texto.

"Se, porventura, instala-se uma ditadura no nosso país, a atual Lei de Segurança Nacional serve para proteger, ou seja, o regime vigente que não o Estado de Direito”, concluem os advogados.

Opções legislativas
Outro parecer, produzidos pelos juristas Alaor Leite e Adriano Teixeira, trata das opções legislativas da tutela das instituições democráticas, além de abordar discussões que estão agudas nos últimos anos, sob a ótica do Direito comparado, como a regulação das redes sociais, as notícias falsas e discursos de ódio. Eles caracterizam como "inadiável" a superação do modelo da segurança nacional  

Os estudiosos veem cinco desafios principais no Brasil: histórico-contextual; legal; político-criminal; conceitual e jurídico-dogmático. Para avançar na discussão, eles defendem que o aspecto individual do qual a lei trata, de proteção da honra dos agentes públicos, "não deve participar do capítulo da proteção do Estado de Direito".

"Nesse setor, são suficientes os crimes contra a honra, que devem, ainda, ser interpretados restritivamente à luz do 'efeito retroalimentador' do direito fundamental à liberdade de expressão, que adquire prevalência quando exercido no contexto do debate público." É necessária uma reforma pontual e redutora dos crimes contra a honra, dizem, em especial dos artigos 141, I e III e 138 § 3º do Código Penal.

Para eles, o foco deve ser o aspecto institucional com a proteção direta das instituições contra "ataques discursivos massivos que tenham aptidão para afetar o seu real funcionamento". O ideal seria uma proteção escalonada para cada nível de agressão: se individual, se grupal ou se institucional.

"O caminho seria o de identificar as características do novo veículo por meio do qual os ataques discursivos são realizados — as redes sociais —, de modo a isolar os elementos que fazem com que esse ataque assuma potencialidade lesiva semelhante aos métodos clássicos, fazendo com que a presunção em favor da liberdade de expressão excepcionalmente ceda. Candidatos seriam a capilaridade de difusão, a permanência e virulência dos ataques e o descolamento do debate original ensejador da contenda, o que os diferenciariam, inclusive, dos ataques verbais feitos em 'escritos' comuns anexados ao próprio automóvel, cartazes ou em reuniões públicas — casos que o legislador do passado tinha em mente."

O estudo foi elaborado como parte dos trabalhos da comissão de estudos de Direito Penal da OAB, presidida pelo advogado Rodrigo Mudrovitsch.

Democracia acima de todos
Os pareceres foram produzidos a pedido dos presidentes do Conselho Federal da OAB, Felipe Santa Cruz; da Comissão Nacional de Estudos Constitucionais, Marcus Vinicius Furtado Coêlho; e do conselheiro federal, Juliano Breda. Com os estudos, a OAB pretende discutir formas para superar o modelo autoritário de segurança nacional e adotar um instrumento mais protetivo e defensivo do Estado e suas instituições democráticas.

Em julho, a Comissão de Estudos Constitucionais da OAB já havia aprovado um parecer propondo a formulação de uma ADPF para questionar a Lei de Segurança Nacional (LSN).

Vale lembrar que nos anos 2000 já havia surgido uma proposta de substituição da LSN. O ministro da Justiça à época, José Gregori, tão logo assumiu o cargo, reuniu então um grupo de especialistas para elaborar a chamada Lei de Defesa do Estado Democrático de Direito. Seria a institucionalização do chamado "paradoxo de Popper", segundo o qual tolerância democrática não deve tolerar os intolerantes. 

"A ideia era mostrar que a democracia se defende também com leis democráticas. Mostrar que as pessoas podem se defender legalmente, mas de acordo com lei feita no ritual democrático e não autoritário", contou em entrevista à ConJur

O texto buscava tutelar princípios fundamentais do Estado, inclusive acrescentando ao Código Penal um Título XII, denominado "Dos crimes contra o Estado Democrático de Direito", que era dividido em cinco capítulos: crimes contra a soberania nacional; contra as instituições democráticas; contra o funcionamento das Instituições Democráticas e dos Serviços Essenciais; contra a autoridade estrangeira ou internacional; e contra a cidadania.

O responsável por submeter a proposta à presidência, em abril de 2002, foi o então ministro da Justiça, Miguel Reale Jr., mas ela não teve prosseguimento. 

Clique aqui para ler o parecer de Miguel Reale Jr. e Alexandre Wunderlich 
Clique aqui para ler o parecer de Alaor Leite e Adriano Teixeira

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