Opinião

Os julgamentos das praças virtuais

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21 de setembro de 2020, 7h11

Peguem uma história e repartam-na em pequenos cubos, como aqueles que as crianças montam um castelo de plástico. Imaginem que o "o que" fosse um bloco, o "quando" outro, o "por que" também, e assim por diante. Agora, deem esses blocos para duas pessoas diferentes os reconstruírem. Dificilmente teríamos dois castelos parecidos.

A Justiça criminal assiste cotidianamente a esse pequeno e grave jogo de remontar blocos para chegar a fatos pretéritos. Ao contrário de uma brincadeira infantil, as peças da vida real são ordenadas nos tribunais por pessoas com interesses particulares, às vezes nunca descobertos, nem mesmo pelos cuidadosos e mais atentos juízes.

Ainda esses dias uma jovem, de classe social acima da média, foi acusada de manter uma mulher de 60 anos de idade em trabalho análogo ao de escravidão.

Imediatamente, redes sociais, influenciadores da matrix e mesmo o mundo real agiram para destruir sua reputação, causando-lhe estrago para todo o sempre. Lembremo-nos que o "direito ao esquecimento" termina no campo de pesquisa do Google.

E agora assim está. Essa moça foi demitida do seu emprego, seu nome constará nos registros como uma antiga senhora de engenho paulistana daquelas bem pérfidas. A Justiça criminal tem o compromisso, apenas e exclusivamente, de confirmar a condenação pública a que ela foi submetida.

Mas e se essa história fosse contada de um modo em que todas as suas peças ocupassem lugares diferentes, revelando então que a montagem prévia estava enviesada, de forma espúria e injusta? Quem pediria desculpas à jovem pelo julgamento leviano?

Em rede social de comunicação, este articulista recebeu as "peças" do inquérito policial de um grupo absolutamente "condenador". Foi uma fantasia perguntar se alguém deles leu o que constava naquele arquivo. Tomando o cuidado de observar cada detalhe, com a atenção que nós profissionais do Direito devemos ter, percebi que aquele castelo tinha sido feito por crianças e não por profissionais.

Primeiro, havia uma informação de que a senhora, vítima, seria incapaz. Para registro, as pessoas incapazes (idosos, menores, portadores de problemas psicológicos etc.) recebem proteção do Direito Penal quanto a maus tratos e possíveis abandonos.

Mas, como dito no início desse texto, a senhora tem 60 anos de idade e não 90, ao contrário de como pareceu na montagem enviesada.

Assim, está livre de qualquer suspeita sobre problemas desse tipo, pois, caso contrário, nossa autoridade policial precisaria nomear um curador para a história. Logo, incapaz ela não era.

Então, veio um tempero adicional: o trabalho análogo ao de escravidão o palavrão dos palavrões!

Mas essa senhora tinha a chave de casa, saía e entrava quando queria, não trabalhava para ninguém na casa onde residia afinal, ninguém morava lá. Também usava telefone celular, passeava inclusive com cachorros de vizinhos, segundo consta, por amor aos animais e pelos valores. A jovem, condenada pela opinião pública, ainda lhe pagava R$ 400 mensais para isso.

Reduzida à condição de escrava? Mesmo?

Pode ser. Mas qual o trabalho dessa escrava? Tudo bem. Barramos na história da ausência de vencimentos. Mas vencimentos sem emprego?

Falta algo nessa história, não?

Narrou a condenada que a vítima trabalhou com sua família por muitos anos. E quando todos partiram para o Interior, vendo que a mulher não teria onde morar, cedeu a edícula da antiga casa. Era apenas uma forma de ajudar e emprestar um teto para quem não tinha nada, enquanto o tecido da história fosse tramado e o futuro dissesse algo.

Essas peças não deveriam estar na construção do nosso castelo? Será que poderíamos ter deixado de lado os blocos que, curiosamente, não interessavam ao sensacionalismo?

E se as praças virtuais confundiram suas ignorâncias com o mundo real? E se mesmo o ato de abrigar foi narrado como um ato de escravidão, já que, propositadamente, foram retiradas cinco ou seis peças indesejáveis? É para isso que pagamos o poder público?

Será que estamos tão no fundo do poço? Será que o erro judiciário, mesmo em seu nascedouro, não incomoda mais a ninguém?

Meus caros, antes de construir qualquer castelo, vejam se as peças se encaixam. Seria um bom e salutar começo. Pois castelos, meus caros, não param em pé sem "reis" cuidadosos. E a opinião pública é a terrível e variante rainha louca.

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