O STJ e o depoimento do réu delator: não há nulidade sem prejuízo?
21 de setembro de 2020, 11h43
Nessa linha, proponho hoje um tema que vitima direitos todos os dias. A ele, pois.
Com efeito, sabemos que, em 2019, o STF decidiu, por maioria, que réu delatado tem o direito de apresentar suas alegações por último. Decisão correta, que ultrapassou interpretação textualista capitaneada pelo Min. Edson Fachin. Venceu a corrente não-textualista, fazendo com que processos fossem anulados nos casos em que o delatado não tenha tido esse direito. No fundo, uma interpretação conforme ao devido processo legal. Logo, conforme à Constituição.
1. A nova interpretação do STJ à decisão do STF
Pois agora — e este é o tema de hoje — o Superior Tribunal de Justiça apresenta outra interpretação para o dispositivo do CPP. O ponto é: se o réu delatado não suscitou esse direito (portanto, a nulidade por ter de falar antes e não depois), não se aplica o precedente do STF.
Sem precisar entrar na minudência do caso concreto (HC 549.850), a discussão se resume ao seguinte: para que a nulidade decorrente de o delatado não ter falado por último aproveitar a esse, a defesa teria que ter alegado a tempo.
2. O eterno retorno ao pas de nullité sans grief
Logo, o STJ aplicou a antiga tese de que não há nulidade sem prejuízo, isto é, o indigitado pas de nullité sans grief. Entre tantas outras questões, a primeira delas é: qual é o limite de uma nulidade? Em que momento uma nulidade deixa de ser absoluta e se torna relativa, para que dependa de alegação?
Disso exsurge a contradição principal: por que é possível aplicar o adágio-enunciado “não há nulidade sem prejuízo”?
Lembro aqui de uma decisão paradigmática, proferida pela ministra Cármen Lúcia, no HC 103.555, no qual a prova foi feita pelo juiz e, assim, foi totalmente desobedecido o artigo 212 do CPP. A decisão: não ficou demonstrado o prejuízo. A propósito: o réu foi condenado a mais de 9 anos de reclusão. O prejuízo? Como demonstrar o prejuízo? Eis a pergunta de um milhão de dispositivos legais.
Essa questão já foi levada ao STF e não obteve resposta. Nesse sentido, o belo trabalho representado pela ADPF 612 (ver aqui o texto e a doutrina atinente). A referida ADPF — fulminada in limine pelo Min. Lewandowski — deixa claro que o suposto postulado “pas de nullité sans grief” nasce de uma tentativa de calar e silenciar o poder judicial, na regra “nullité sans grief n'opere rien”, do ordenamento jurídico napoleônico, a partir do antagonismo entre o rei e o parlamento, e, portanto, contrária ao princípio republicano (arts. 1º, 3º e 4º, da CF/88).
Mais ainda, acentua que o artigo 563 do CPP deve ser interpretado no sentido de se presumir o prejuízo ao acusado, com a decretação de nulidade, sempre que se relacione a violação do rito/forma em temas ligados à “medula óssea” ou “espinha dorsal” do Processo Penal”: competência, quebra da parcialidade, cerceamento de defesa, constrição da liberdade pessoal ou de direito patrimonial, prova e, julgamento e fundamentação das decisões judiciais.
Correta a ADPF. Corretos os subscritores. Esse tema é candente. Deve ser enfrentado. De frente. Incorreta a decisão do Ministro Lewandowski que impediu a tramitação. Por qual razão o uso do enunciado pas de nullité não fere preceitos fundamentais? E qual seria o outro modo de corrigir essa anomalia? Qual é o conceito de subsidiariedade?
3. De como o pas de nullité vai na contração da Constituição
No caso recente, o STJ, ao dar uma interpretação minimalista à decisão do STF que garantiu ao réu delator falar por último, reforça a permanência de um enunciado performativo que serve para reforçar o subjetivismo na hora de decidir sobre o alcance de uma nulidade.
O referido enunciado “pas de…” nada mais faz do que inverter aquilo que a modernidade nos legou: entre o Estado e as liberdades públicas, a balança deve pender a favor das liberdades. Bem antes da modernidade e antes de o logos superar o mito (no Brasil, o mito é criado para explicar o logos), já se sabia na Grécia que, havendo dúvida, a decisão deve ser “pro réu”. Isto é: na briga entre o grandão e o pequeno, havendo empate ou dúvida, o pequeno deve vencer.
4. De como pas de nullité sans grief é irmão gêmeo do in dubio pro societate
Explico. No fundo, há uma somatória de elementos aqui. O adágio in dubio pro societade sustenta o pas de nullité sans grief. E o que sustenta os dois?
Simples: O velho instrumentalismo processual. Os escopos. A velha dogmática jurídica e sua carência epistemológica.
Claro: quem decide acerca do que é prejuízo? Simples. O julgador. Eis o ponto. Protagonismo. Filosoficamente tem uma explicação: trata-se da aposta no sujeito-que-põe-o-direito. No Brasil, a teoria imperativa encontra o realismo jurídico. E se abraça a ele. E transforma isso tudo numa coisa só. E como a doutrina não reclama… pas de nullité.
E ainda por cima tem um agravante: o réu não só tem de provar o prejuízo como também tem de demonstrar que foi alegado. Neste último caso, tem-se o HC aqui sob comento. O paciente não alegou. A nulidade? Fica em segundo plano.
Como no famoso livro de Lionel Shriver, precisamos falar sobre o pas de nullité sans grief. Para tanto, precisamos compreender que a Constituição, em sua geografia, não por acaso colocou o artigo 5º., que trata de garantias e proibição de nulidades, logo no início. Pela primeira vez. Antes, na Constituição outorgada, estavam lá pelos artigos 150 passim.
Explico. A CF primeiro diz: esta Constituição pretende desigualar a desigualação. Depois diz quais os objetivos do Brasil em termos de território e soberania.
4. Porque os irmãos gêmeos devem bater contra a muralha constitucional
Afinal, o que é e o que significa o artigo 5º.? Simples: o artigo 5º. é uma muralha construída contra o arbítrio, venha ele de onde vier. Essa muralha nos protege, porque de nada adianta o artigo 3º. determinar a desigualação da desigualdade se não temos liberdades para usufruir.
E o papel do Judiciário? Seu papel é proteger os armeiros que estão postados na muralha. Contra os inimigos. Não, não, no EDD os inimigos não são os que cometem crimes. Por quê? Porque a favor deles está o elenco do artigo 5º. Não fosse assim e o artigo 5º. seria inútil.
Garantias existem para proteger os cidadãos contra o arbítrio. Como assim? Simples: a Constituição (e toda a doutrina do EDD) diz que, para que o Estado possa punir os que cometem crimes e transgressões, devem ser postos a disposição do infrator todas as garantias. O Estado não pode ser infrator. Isso parece estranho para muita gente. Para quem duvida, tenha a pachorra de ler os incisos do aludido artigo 5º.
Por mal compreenderem esse fenômeno do Estado Constitucional, muitos pensam que o PJ está aí para combater o crime. Não. Ele existe para garantir que o Estado (e o próprio MP), quando usar prova ilícita, transgredir o devido processo legal e coisas do gênero, deve ser contido.
Sim, o Estado deve ser contido! Essa é a muralha do artigo 5º. da Constituição do Brasil. Quando o judiciário não protege a muralha, ele acaba dando uma mãozinha para o arbítrio pular o muro.
Por isso, na dúvida, o arbítrio (falei arbítrio e não árbitro!) deve ficar fora da muralha. Por isso, o pas de nullité não pode passar pela muralha do artigo 5º. E nem o judiciário deve servir de escora ou catapulta para que a muralha seja ultrapassada (ou destruída).
Por tudo isso, parece urgente que se forme uma doutrina que fortaleça essa paliçada a favor dos direitos. E se os juízes têm medo do “clima”, da “opinião pública”, da “voz das ruas” (qual é a “voz das ruas”?!), ora, é fácil: coloque a culpa na democracia. Aplique a lei. Faça valer o império do direito. Não é feio fazer isso numa democracia.
Por isso, precisamos falar sobre o pas de nullité sans grief. Urgente.
Post scriptum: o mais interessante em tudo isso é que parcela considerável dos críticos do in dubio pro societate e pas de nullité chamam a esses enunciados de…princípios. Como assim? Problema? Simples: quando se começa uma discussão sem levar a sério os conceitos, chega-se a conclusões erradas. Ou, se se acerta, é como um relógio quebrado – acerta a hora duas vezes por dia. Isso sem considerar os críticos que dizem que decisão é uma escolha do intérprete, isto é, dependendo do intérprete, a decisão pode ser outra ou qualquer. Como disse um importante professor, “ele escolhe, valora, mas ele terá que motivar”. Que bom! Ele escolhe e depois nos diz o porquê. Decide e depois fundamenta. Vi isso em uma tese. Depois nos queixamos.
Post scriptum 2: De mais a mais, todo esse imbróglio revela ainda, sem querer, um outro problema — permito-me dizer, recorrente — no STJ: o propalado sistema de precedentes e sua função e conceito. No caso do HC sob comento, o STJ fez distinguishing. Porém, qual era a ratio decidendi? Qual era o caso? Como se identifica ratione decidendi/holding de precedente no Brasil? Quais são os critérios? O que conta como “precedente vinculante”? Precisamos falar sobre isso também, permito-me dizer novamente. O STF, sobre o assunto, não tinha quórum para súmula vinculante. OK. Todavia, pergunto: só obriga se é SV da Suprema Corte? Se sim, tem de ser sempre assim, em todos os casos. Se não é assim, então também tem que ser em todos os casos. Mas, quando e em que termos uma decisão obriga? Eis um gap do sistema. Por isso, precisamos falar sobre isso.
Termos em que ofereço este texto para o debate. Como sempre, respeitoso.
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