Opinião

O direito ao aborto e a portaria do Ministério da Saúde

Autores

  • Glauco Salomão Leite

    é professor de Direito Constitucional da UFPB (Universidade Federal da Paraíba) da graduação e do programa de pós em Direito da Universidade Católica de Pernambuco e da Universidade de Pernambuco. Foi pesquisador visitante na Universidade de Toronto (Canadá). Membro do grupo Recife Estudos Constitucionais (REC/CNPq).

  • Marina Falcão Lisboa Brito

    é advogada mestranda (bolsista Capes) do programa de pós-graduação em Direito da Universidade Católica de Pernambuco (PPGD/Unicap) pós-graduanda em Direito Administrativo pela PUC-MG membro da Comissão de Direito Administrativo e Comissão de Estudos Constitucionais da OAB-PE e membro do grupo de pesquisa Recife Estudos Constitucionais (REC/CNPq).

  • Natalia Bezerra Valença

    é advogada mestranda (Bolsista Capes) do programa de pós-graduação em Direito da Universidade Católica de Pernambuco (PPGD/Unicap) membro da Comissão de Estudos Constitucionais da OAB-PE e membro do grupo de pesquisa Recife Estudos Constitucionais (REC/CNPq).

21 de setembro de 2020, 16h15

"There is no state of emergency, no mass violation of traditional rights. To the casual visitor who doesn’t pay close attention, a country in the grips of an autocratic legalist looks perfectly normal. There are no tanks in the streets". (Kim Lane Scheppele [1])

No final de agosto, o Ministério da Saúde editou a Portaria nº 2.282, que dispõe sobre o procedimento de justificação e autorização da interrupção da gravidez a ser adotado no âmbito do SUS, fixando condições para a realização do aborto nos casos já permitidos em lei, incluindo a hipótese de gravidez resultante de violência sexual. Quais os impactos dessa portaria para o exercício do direito ao aborto legal? O que justifica a sua edição em vez de apresentação de projeto de lei para discutir o tema no Parlamento? Entendemos que essas perguntas precisam ser enfrentadas em um cenário marcado por corrosão de direitos através da utilização de expedientes normativos que distorcem, fragilizam ou esvaziam o conteúdo de leis, mas que apresentam um véu de aparente validade.

Não por acaso, esse ato ministerial foi publicado poucos dias depois do lamentável episódio em que uma menina de dez anos, grávida após recorrentes estupros sofridos desde os seis anos de idade e com risco de morte, encontrou dificuldades para realizar o aborto no Espírito Santo, tendo a interrupção da gravidez ocorrido apenas em Recife, sob críticas e protestos de grupos contrários — entre eles, alguns deputados estaduais que ocuparam a frente do hospital em que estava internada para tentar impedi-la de se submeter ao procedimento.

As condições criadas pela portaria para o procedimento abortivo exigem que a mulher preencha inúmeros formulários e termos de responsabilidade, forneça informações sobre o crime, como data, hora e local, sendo ainda advertida da possibilidade de responder por crime de falsidade ideológica, assim como pelo crime de aborto, caso não reste demonstrada que aquela gestação é resultante de estupro. Além disso, a portaria prevê a realização de visualização do feto ou embrião através de ultrassonografia pela gestante, caso esta assim deseje.

Tais regras são, atualmente, objeto de ações no STF (ADPF 737 e na ADI 6553). As ações levam em consideração não apenas a violação aos direitos e garantias fundamentais das mulheres atingidas pela portaria, como também pela inobservância dos limites ao poder regulamentar, previstos no artigo 84, IV, da CF, uma vez que as atribuições do Ministério da Saúde restringem-se à atuação relativa à saúde pública, mas a portaria dispõe sobre questões relativas ao Direito Penal. As normas criadas pela portaria, portanto, somente poderiam ser objeto de lei aprovada pelo Congresso Nacional e não de ato do Poder Executivo.

Em paralelo, na Câmara dos Deputados já tramitam dois projetos de decreto legislativo (PDL 385/2020 e o PDL 383/2020) que buscam sustar os efeitos da portaria, tendo em vista cuidar-se de clara tentativa de intimidação das mulheres que buscam acesso ao procedimento de aborto no SUS. Nesse sentido, os procedimentos estabelecidos pelo Ministério da Saúde representam uma série de obstáculos ao exercício de um direito assegurado à gestante.

Ainda de acordo com o PDL 383/2020, a portaria vai de encontro à Lei nº 12.845/2013, que garante à gestante atendimento humanizado e obrigatório em situações de violência sexual. Desse modo, a decisão do governo estabelece um estímulo à criminalização da gestante que busca ajuda, o que pode causar danos irreversíveis a sua saúde, além de desrespeitar as recomendações internacionais e a própria filosofia seguida pelo SUS no atendimento de casos semelhantes.

A vontade da mulher de praticar o aborto, ainda que nas hipóteses em que não é considerado crime, é objeto de críticas e julgamentos por quem defende a proibição do aborto em qualquer circunstância. O discurso de criminalização total do aborto, com sua base religiosa desconsidera, inclusive, as variáveis da violência sexual da qual, por vezes, a gestação é resultado, e o risco de vida que a gravidez pode significar para a mulher. Apesar da Lei Penal criminalizar o aborto provocado, algumas hipóteses, como se sabe, não são punidas, dentre elas, a situação em que a gravidez é resultante de crime sexual. O fundamento da excludente chamada de "aborto sentimental"  embasa-se numa interpretação princípio da dignidade da pessoa humana, da proibição de tortura e vedação a tratamento desumano ou degradante. Nesse sentido, entende-se que obrigar a mulher a levar adiante, contra a sua vontade, uma gestação decorrente de crime sexual seria semelhante a submetê-la à tortura.

Com a previsão legal de certas hipóteses de aborto, essas mulheres tinham a garantia de que a sua integridade física e a autonomia sobre seu próprio corpo seriam respeitadas: afinal, a lei lhes permite optar pela interrupção da gestação. As práticas e os discursos daqueles que são contra todas as situações de aborto representam, ao final, um grave risco para mulheres vítimas de estupro, quando se considera que no Brasil a cada dois dias uma mulher morre por aborto inseguro [2]. Os impedimentos e condicionantes previstos na portaria traduzem, assim, um risco adicional de elevação deste número, uma vez que desencoraja a mulher a buscar a realização do procedimento, de forma segura, em um hospital.

Tais fatos precisam ser analisados em um contexto mais amplo. O atual governo tem assumido posições que gravitam entre um forte liberalismo econômico, pregando intervenção mínima do Estado nos setores econômico e social, a uma pauta de valores ultraconservadora atrelada a um fundamentalismo religioso que orienta sua agenda de costumes, o que envolve a manipulação de temas como família, direitos sexuais, casamento e aborto. Porém, se é possível observar uma sintonia entre a agenda econômica do governo e as principais lideranças no Congresso Nacional como se viu com a aprovação da Reforma da Previdência —,  o mesmo não se nota em relação à agenda de costumes. Nesse cenário, observe-se que a fragmentação político-partidária e a ausência de coalizões estáveis favoráveis ao governo têm, na pauta conservadora de costume, provocado duas consequências importantes.  Em primeiro lugar, diante da fragilidade do suporte parlamentar, em muitos casos o governo tem optado pela edição de decretos, resoluções e portarias, que não se submetem ao controle congressual em um primeiro momento, e que, não raro, introduzem sutilezas na regulamentação infralegal que podem distorcer ou esvaziar leis existentes, camuflando-se numa validade formal apenas aparente. Em segundo lugar, essa estratégia não tem sido bem sucedida haja vista uma série de derrotas no Congresso Nacional, seja através da rejeição de medidas provisórias, derrubada de vetos e suspensão de decretos e outros atos normativos [3].

É exatamente isso que pode ocorrer novamente em relação à portaria aqui analisada. O caminho legislativo para alteração do Código Penal, e eventual alteração na disciplina legal do aborto, é mais complexo e demanda um apoio parlamentar sobre um tema politicamente sensível, sendo mais atraente o atalho do ato ministerial. A corrosão dos direitos e garantias fundamentais das mulheres, portanto, não decorre da extinção em si do direito ao aborto, e, sim, através da criação de entraves ao seu exercício nas dobras da lei.

Na outra frente, a judicialização dessa controvérsia a fez desaguar no STF, que, como se sabe, possui expressiva jurisprudência favorável a direitos e liberdades individuais de minorias, situando-se no polo oposto do governo. Convém lembrar que já passaram pelo plenário do tribunal temas como união estável homoafetiva, interrupção de gravidez de feto anencefálico, mudança de nome de pessoas transgênero sem necessidade prévia de procedimento cirúrgico, criminalização da homotransfobia, Escola sem Partido, entre outros. Nesses assuntos, o STF tem exercido adequadamente sua função contramajoritária, o que não deverá causar estranheza caso os ministros venham a anular a portaria do Mistério da Saúde. 

Essa controvérsia aponta para a necessidade em se observar com atenção a expedição de atos regulamentares que podem provocar graves desvirtuamentos na aplicação de leis em vigor, bem como na tomada decisões administrativas, normalmente ancoradas no uso da discricionariedade, mas que têm resultado na fragilização de marcos regulatórios e políticas públicas necessários à tutela de direitos fundamentais, em particular de minorias e grupos vulneráveis.

É nesse ambiente de aparente legalidade ou de uma roupagem jurídica que se tem falado em legalismo autocrático [4]. No limite, sob o verniz da juridicidade, corroem-se, silenciosamente, os pilares do constitucionalismo democrático, que exige uma delicada combinação entre vontade da maioria, direitos fundamentais e instituições independentes (e resilientes).

 


[1] SCHEPPELE, Kim Lane. Autocratic legalism. In: The University of Chicago Law Review, vol. 85, n. 2, march, 2018, pp. 575.

[3] BAPTISTA, Mariana. Um ano de relação Executivo-Legislativo no governo Bolsonaro. Disponível em: https://www.nexojornal.com.br/ensaio/2020/Um-ano-de-rela%C3%A7%C3%A3o-Executivo-Legislativo-no-governo-Bolsonaro.

[4] SCHEPELLE, Kim Lane. Autocratic legalism. In: The University of Chicago Law Review, vol. 85, n. 2, march, 2018, pp. 545-584.

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    é professor de Direito Constitucional do programa de pós-graduação em Direito da Universidade Católica de Pernambuco (PPGD/Unicap), professor de Direito Público da Universidade de Pernambuco (UPE) e da Universidade Federal da Paraíba (UFPB) e membro do grupo Recife Estudos Constitucionais (REC/CNPq).

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    é advogada, mestranda (bolsista Capes) do programa de pós-graduação em Direito da Universidade Católica de Pernambuco (PPGD/Unicap), pós-graduanda em Direito Administrativo pela PUC-MG, membro da Comissão de Direito Administrativo e Comissão de Estudos Constitucionais da OAB-PE e membro do grupo de pesquisa Recife Estudos Constitucionais (REC/CNPq).

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    é advogada, mestranda (Bolsista Capes) do programa de pós-graduação em Direito da Universidade Católica de Pernambuco (PPGD/Unicap), membro da Comissão de Estudos Constitucionais da OAB-PE e membro do grupo de pesquisa Recife Estudos Constitucionais (REC/CNPq).

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