Opinião

Autoridade parental e vacinação obrigatória

Autor

  • Jones Figueirêdo Alves

    é desembargador emérito do Tribunal de Justiça de Pernambuco (TJ-PE) mestre em Ciências Jurídicas pela Faculdade de Direito de Lisboa membro da Academia Brasileira de Direito Civil e do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFam) membro fundador do Instituto Brasileiro de Direito Contratual (IBDCont) advogado consultor e parecerista.

21 de setembro de 2020, 19h11

As percentagens sofríveis de acesso da família brasileira a bens, consumo, educação, cultura e saúde, entre outros direitos fundamentais, estão sempre a exigir incrementos oriundos de políticas públicas de inclusão social. Designadamente, quando se trata de uma cobertura vacinal para as imunizações infantis, esse índice está apenas em 51,6%, comprometendo a prevenção de doenças, antes erradicadas pela vacinação em massa no país.

O Programa Nacional de Imunização (PNI) do Ministério da Saúde, considerado um dos melhores no mundo, tem registrado índices precários e reducionistas. Embora sido eliminadas a varíola, a poliomielite, a rubéola, a síndrome da rubéola congênita, o tétano materno e o tétano neoparental, do cenário de saúde pública do país, o programa indica, agora, redução severa do percentual de crianças vacinadas: 1) "não alcançando, pela primeira vez em 20 anos, as metas para nenhuma das principais vacinas indicadas a crianças de até um ano"; e 2) anotando-se piores índices de cobertura em sete das nove vacinas destinadas a esse atendimento [1].

O tema da vacinação em seu papel social de proteção, inclusive como marco civilizatório, ganha novo momento quando colocada novamente em discussão a sua obrigatoriedade. Em uma vertente, a escolha dos pais pela não vacinação como opção ideológica e informada, conduzida por suas formas de expressão de consciência, de convicção filosófica ou de exercício de privacidade. N'outra, uma vacinação infantil obrigatória, tal como inscrita no artigo 14, §1º, do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069/1990, de 13 de julho) [2], em decorrência da proteção integral ditada pelo artigo 227 da Constituição e, sobremodo, de demais normas especificas de políticas sanitárias preventivas de doenças infecciosas.

Diante disso, assinala-se de oportuno e elevado significado o reconhecimento da repercussão reral em sede do Recurso Extraordinário, com agravo, de nº 1267879, por recente decisão de 6 de agosto, manifestada pelo ministro relator Luís Roberto Barroso.

O Tema de nº 1.103 observa o seguinte questionamento:

"Saber se os pais podem deixar de vacinar os seus filhos, tendo como fundamento convicções filosóficas, religiosas, morais e existenciais".

Conforme o relator, o tema apresenta repercussão geral, especialmente do ponto de vista social, político e jurídico:

"1) Social, em razão da própria natureza do direito pleiteado e da importância das políticas de vacinação infantil determinadas pelo Ministério da Saúde;

2) Político, tendo em conta o crescimento e a visibilidade do movimento antivacina no Brasil, especialmente após a pandemia da Covid-19, o que tem contribuído para diminuir a cobertura imunológica da população brasileira; e

3) Jurídico, porque relacionado à interpretação e alcance das normas constitucionais que garantem o direito à saúde de crianças e da coletividade, bem como a liberdade de consciência e de crença".

Não há negar a importância da decisão tomada em plenário virtual do STF, quando impende saber também se o elevado déficit da regularização das vacinações obrigatórias deverá ou não ser enfrentado pelo Estado e, de outro lado, estabelecer ou não responsabilidades parentais ainda não apuradas.

A questão teve origem quando os pais de uma criança ingressaram com recurso extraordinário ao Supremo, após o Tribunal de Justiça de São Paulo haver determinado em acórdão, atendendo a representação ajuizada pelo Ministério Público paulista, a busca e apreensão da criança para a vacinação obrigatória, caso não realizada em prazo assinado.

Os pais resistiam vaciná-la, apoiados em fundamentos de sua filosofia vegana e sob a premissa contrária à adoção de tratamentos médicos invasivos. O menor O.Z.C., agora com três anos, não fora submetido a qualquer tipo de vacinação, o que segundo o Ministério Público implica: 1) ofensa a seu direito à proteção da vida e saúde, particularmente em relação às doenças infecciosas; 2) tratar-se a vacinação de obrigação imposta pela lei aos pais; e 3) que a omissão traduz risco à saúde de outras crianças e da coletividade.

O relator do processo, desembargador Fernando Torres Garcia, presidente da Seção Criminal do Tribunal de Justiça São Paulo, votou no sentido de ser feita no prazo de 30 dias corridos, contados da intimação da decisão, a ser feita por meio de seu defensor constituído, a regularização da vacinação obrigatória da criança O.Z.C., junto a posto de saúde ou estabelecimento similar, sob pena de suspensão limitada do poder familiar para que o Conselho Tutelar, por meio de busca e apreensão, proceda à regularização ora determinada.

O julgador destacou, em seu voto:

"(…) A adoção de comportamentos contrários ao regime geral de vacinação trouxe um severo declínio da população com cobertura imunológica, traduzindo-se em aumento da exposição a risco de contágio de doenças infecciosas como, por exemplo, o sarampo. Segundo estudo publicado por Ana Paula Sayuri Sato, pesquisadora do Departamento de Epidemiologia da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo, constatou-se que: “Desde a década de1990, as coberturas vacinais infantis estavam acima de 95%, o que indica boa adesão da população à vacinação. No entanto, a partir de 2016, essas coberturas têm declinado cerca de 10 a 20 pontos percentuais. Isso era inesperado e veio acompanhado do aumento da mortalidade infantil e materna" [3].

Noutro giro, dirigido ao eixo temático da pandemia da Covid-19, em termos de vacinação compulsória, impende lembrar que esta se encontra prevista pelo artigo 3º, inciso III, letra "d", da recente Lei nº 13.979, de 6/2/2020, que dispõe sobre as medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus. responsável pelo surto de 2019. Ali está previsto, nos fins da lei, que poderão ser adotadas, entre outras medidas, a determinação de realização compulsória de vacinação e de outras medidas profiláticas [4].

Pois bem. Definir a vacinação como uma política pública de diminuir os riscos de doenças, em dimensão constitucional do direito à saúde, com a implementação de mecanismos de atuação do poder público que assegurem a vacinação como um dever de Estado, é o que se coloca agora em debate considerando-se, em contraponto, a autonomia parental em face de suas responsabilidades com os filhos menores.

A questão é recorrente, chamando-se à colação, por relevante interesse, o importante estudo "Autonomia Parental e Vacinação Obrigatória", de Fernanda Schaefer [5], lançado, ano passado, na obra "Autoridade Parental. Dilemas e Desafios Contemporâneos".

No artigo, a autora indica, de imediato, que nosso país alcançou em 2017 uma das maiores taxas de imunização da população-alvo no mundo (99,8%), conforme estudo do Instituto de Métricas e Avaliação de Saúde (IHME), da Universidade de Washington [6]. Certo, ademais, como ocorre em outros países, que "a taxa de vacinação, desde 2013, vem caindo, o que preocupa as autoridades sanitárias e faz ressurgir epidemias que antes estavam sobre controle, como a poliomielite e o sarampo" (p. 245).

Seu estudo, com interessantes abordagens, situa-se, antes de mais, na "compreensão das novas dimensões da autoridade parental", quando, antes da Constituição de 1988, a tradição da privacidade familiar e do próprio Direito de Família, "dava aos pais o direito de coisificar os filhos".

No passo seguinte, com a (re)personalização do Direito Civil, Fernanda Schaefer associa o poder familiar vinculado pelo artigo 227 da CF ao melhor interesse da criança e do adolescente e, nesse fim, por ele exercido. De efeito, realçou que o poder familiar se caracteriza, como aludiu Maria Berenice Dias em seu "Manual de Direito das Famílias" [7], por ser "menos um poder e mais um dever", conferindo-se àqueles filhos menores, a condição de sujeitos de direito.

Adiante, o estudo empreende incursões em situações precedentes no país e no exterior, quando a recusa à vacinação importou situações diferenciadas, ora por não se acreditar na eficácia (Jacareí-SP, 2014), ora em razão de crenças e direito de escolha (Michigan-EUA, 2017), ou ainda para saber se "a obrigação de vacinar é necessária", diante do Decreto Lorenzi (Itália, 2015).

Imbricado o binômio vacinação e não vacinação às responsabilidades parentais, quando se acha vinculado ao exercício da autoridade parental, na assimetria lógica e fundamental do poder-dever, resta apurar possível ou não exercitar, efetivamente, o desempenho de um "direito à não vacinação dos filhos".

O tema revolve ainda, por certo, questões substanciais alusivas: 1) à dimensão da "paternidade responsável", onde não se pode cogitar negligência manifesta, extraído esse instituto do teor do artigo 227 da CF; e 2) ao alcance do exato dever de assistência dos pais aos seus filhos (artigo 229, CF).

No ponto, nesse último alcance da lei, poder-se-á entender uma imperativa e indissociável adesão dos pais à vacinação dos seus filhos menores como figura inerente do dever de assistência? Ou esse dever de assistência paterna estaria, afinal, desvinculado do artigo 14 do ECA, com sua natureza mandatória de vacinação infantil (artigo 14, §1º), segundo o qual "o Sistema Único de Saúde promoverá programas de assistência médica e odontológica para a prevenção das enfermidades que ordinariamente afetam a população infantil…"?

Há, de fato, um manifesto interesse social na afetação das questões antes referidas ao regime da repercussão geral, com maiores influxos de definição aos precisos limites da autonomia parental no exercício do poder familiar.

Aliás, a significação do "poder familiar", que nosso Código Civil veio adotar em 2002, substitutiva do "pátrio poder" do Código Civil de 1916, vem sendo, modernamente, substituída pela expressão "autoridade parental”, ou, mais precisamente, pelo instituto das "responsabilidades parentais". Em Portugal, a Lei nº 61/2008, alterando o Código Civil de 1966 quanto ao regime jurídico do divórcio, instituiu um sistema de responsabilidades parentais. E na França, com as alterações da lei que reformou o Direito de Família, também feita a opção pelo instituto da autoridade parental, como referência ao melhor funcionamento jurídico dos deveres paternos.

Com exatidão, diz-nos Paulo Lobo que "o conceito de autoridade, nas relações privadas, traduz melhor o exercício de função ou de múnus, em espaço delimitado, fundado na legitimidade e no interesse do outro".

O consagrado jurista sublinha que "'Parental' destaca melhor a relação de parentesco por excelência que há entre pais e filhos, o grupo familiar, de onde deve ser haurida a legitimidade que fundamenta a autoridade". Assim, "o termo 'paternal' sofreria a mesma inadequação do termo tradicional. A discussão terminológica é oportuna, pois expressa a mudança radical operada no instituto".

De fato, a exata medida da alteração do instituto jurídico está no elemento dual de o interesse dos pais se achar condicionado ao interesse do filho, em sua realização como pessoa e, sobretudo, em sua proteção mais abrangente. Afinal, não se pode admitir como única obrigação dos pais, a obrigação alimentar.

Aqui retorna Maria Berenice Dias, quando afirmou: "Reconhecer, como historicamente sempre aconteceu, que a única obrigação do pai é de natureza alimentar, transforma filhos em objeto, ou melhor, em um estorvo do qual é possível se livrar mediante pagamento de alimentos".

Efetivamente, as responsabilidades do poder parental compreendem a assunção e o atendimento a todos os deveres dele extraídos. Criar é um cuidado jurídico, com todas as atenções impostas pela ordem axiológica da natureza das coisas. Bem é dizer que a autoridade parental não se subsume à simples afirmativa da paternidade e, na consequência, ao dever de prestar alimentos. Cuida-se de um poder-dever parental cujo substrato é de ordem constitucional e cuja dimensão envolve as mais diversas situações nas relações entre pais e filhos.

Segue-se, também, pensar que o direito das crianças constitui um novo ramo jurídico do Direito, cuja autonomia está a merecer maiores incursões doutrinárias e da própria ordem jurídica.

A esse propósito, sublinha a jurista portuguesa Clara Sottomaytor, que "um ramo de direito de afirmação recente, como o Direito das Crianças revela a preocupação crescente do Estado de um novo sujeito de direitos, apagado pelo caráter abstrato dos conceitos utilizados na ciência jurídica e por sociedades centralizadas nos interesses dos adultos" [8].

Diante das premissas antes elencadas, tem-se inegável a necessidade de perpectivização de um sistema de respostas constitucionais que dialoguem, como um sistema de vasos comunicantes, entre o exercício da autoridade parental e os interesses dos filhos menores, à conta de politicas publicas de saúde e de uma vacinação obrigatória, ditada como proteção social de todos, infantes ou não.

Aliás, quando a Lei nº 6.259/1975 instituiu o Programa Nacional de Imunizações (PNI), dispondo sobre a vacinação obrigatória, ditou também previsão de medidas legais estatuais.

As indagações serão agora bem respondidas, com segurança, no julgamento da Repercussão Geral de nº 1267879, com autos conclusos ao relator na última sexta-feira (18/9).

O Supremo Tribunal Federal dirá, enfim, sobre as questões constitucionais ali suscitadas, como a casa permanente da família constitucionalizada.

 

[1] ISTO É, nº 2.644, de 16.09.2020. Reportagem de capa: A fúria negacionista, pp. 36-41. MINISTÉRIO DA SAÚDE. Lei nº 6.259/1975: Programa Nacional de Imunizações. Decreto nº 78.231/1976: Regulamenta o Programa Nacional de Imunizações.

[2] ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE. Lei nº 8.069/1990 – ECA. “Artigo 14 § 1º. É obrigatória a vacinação das crianças nos casos recomendados pelas autoridades sanitárias”. Impende registrar que essa disposição, originária como parágrafo único, é prevista exatamente há 30 anos.

[3] Acórdão TJSP. Conferir Web: https://saude.mppr.mp.br/arquivos/File/Caop_Informa/O_que_dizem_os_tribunais/ACORDAO_TJSP_VACINA.pdf

[4] LEI Nº 13.979/2020. Web https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/lei-n-13.979-de-6-de-fevereiro-de-2020-242078735.

[5] SCHAEFER, Fernanda. Autonomia parental e vacinação obrigatória. In: TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado. DADALTO, Luciana (Coord.). Autoridade Parental. Dilemas e Desafios Contemporâneos. SP: Editora Foco, 2019, 321 p., pp. 245-261.

[6] Web: https://vizhub.healthdata.org/sdg/

[7] DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias, São Paulo: Editora RT, 2016 p. 457.

[8] SOTTOMAYOR, Clara. Temas de Direito das Crianças. Coimbra: Edições Almedina, 2014, 355 p., p. 21.

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    é desembargador decano do Tribunal de Justiça de Pernambuco, integra a Academia Brasileira de Direito Civil, membro do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM) e membro fundador do Instituto Brasileiro de Direito Contratual (IBDCont).

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