Opinião

O símbolo da Justiça: uma abordagem semiótica

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21 de setembro de 2020, 15h07

Introdução
Há muitas formas de produzir a aproximação na relação entre Direito e arte. Uma delas decorre do potencial contido na relação entre semiótica do Direito e semiótica da arte. Este caminho metodológico pode ser uma fértil empreitada, no sentido do desenvolvimento de uma abordagem que valoriza o fato dos juristas estarem sempre às voltas com ícones, índices e símbolos.

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O jurista pode se reconectar com este tipo de preocupação, quando se dá conta de identificar que há uma enorme carga simbólica contida em suas práticas cotidianas. Os juristas atuam em espaços marcados pelos signos da violência, da tradição e do ritual judiciário, circulam em fóruns que ostentam todo tipo de marca da identidade burocrática do processo judicial, caminham por espaços em que a arquitetura judiciária aponta para o imaginário da Justiça, realizam sessões em salas de audiência onde a demarcação de papéis institucionais define o sentido do raciocínio jurídico, atuam em sessões de mediação onde a forma circular e a espontaneidade presidem a cultura do autoentendimento como forma de solução de conflitos.

O estudo deste tipo de ambiente de atuação é apenas a ponta do iceberg de uma série de percepções sutis, que nos levam ao curioso, instigante e complexo caminho de compreensão da relação entre Direito e arte. Mas, quando se quer dar conta de percorrer este caminho, pode-se perceber que ele está marcado por enorme complexidade. Daí a importância de trabalhá-lo na perspectiva de quem adota seis teses centrais na relação entre Direito e arte, para operar esta conexão: 1) a tese da intersecção entre Direito e arte; 2) a tese da arte como experiência; 3) a tese do olhar sensível do jurista; 4) a tese da historicidade das representações da ideia de justiça; 5) a tese do caráter ritual das decisões de justiça; 6) a tese da pedagogia da sensibilidade para a promoção da cidadania e da educação em direitos humanos. Em seguida, procurar-se-á desdobrar, em breves palavras, cada uma destas teses.

1. A tese da intersecção entre Direito e arte
A tese da intersecção entre Direito e arte pode ser explorada na medida em que se valoriza o conjunto de estudos empreendidos por Algirdas Julien Greimas, Eric Landowski e Jacques Fontanille, na perspectiva da semiótica francesa. A semiótica do Direito é, entre nós, mais conhecida, mas a relação desta com a semiótica da arte ainda representa um caminho de desenvolvimento promissor. Assim, a tese da intersecção entre os campos de trabalho do Direito e da arte demonstra a profunda e complementar relação entre o Direito, as suas práticas históricas e as representações de justiça. O símbolo de justiça é, neste sentido, um resumo das ambições de um tempo, acerca de certas concepções de justiça, vigentes historicamente. Esse é, portanto, um caminho que permite um acesso ao sentido, ao peso simbólico e à carga semiótica contidas no símbolo da justiça.

2. A tese da arte como experiência
A tese da arte como experiência pode ser explorada na perspectiva filosófica do pragmatismo de John Dewey. Esta linha de compreensão nos afasta da tentação de transformar, no universo filosófico, a arte em pensamento — operando uma conversão indevida entre prática e conceito — para valorizar a abordagem pelo seu contrário, a saber, o pensamento presente na experiência da arte. Sua concretude aqui é o centro de gravitação de um olhar não museológico da arte integrada à vida, algo que a história da modernidade, aos poucos, acabou por obnubilar. Esse é um caminho que permite a reintegração entre vida e arte, reconexão necessária para a aproximação entre o universo das linguagens artísticas e o universo das demais linguagens.

3. A tese do olhar sensível do jurista
A tese do olhar sensível do jurista pode ser explorada na linha de compreensão da Escola de Frankfurt, considerando-se a especial contribuição de Walter Benjamin. Os estudos da Escola de Frankfurt voltados para a compreensão da sociedade moderna permitem identificar o processo de reificação do olhar. Neste sentido, a perda do olhar sensível é algo comum à vida social moderna, e não haveria de deixar de afetar também o olhar do jurista. Daí, a importante contribuição que o olhar artístico pode trazer ao olhar do jurista, para que não permaneça centrado na forma de um olhar tecnocrático para a realidade (o olhar da legislação, o olhar da linguagem técnica, o olhar da instituição), ampliando o seu horizonte de compreensão e encontrando nas obras de arte uma forma de reencontro com o(a) outro(a).

4. A tese da historicidade das representações da ideia de justiça
O imaginário da área do Direito é marcado pelo culto ao símbolo da justiça. No entanto, a presença do símbolo da justiça é algo tão próximo da vida cotidiana dos profissionais da área do Direito, quanto o seu sentido lhes é oculto. E, ainda mais, quaisquer explicações a este respeito tendem a recair na enganosa ideia da permanência trans-histórica do símbolo da justiça. Assim, retomar esta história não é apenas integrar-se ao percurso de afirmação deste símbolo, mas tropeçar em permanências e em transformações deste símbolo, enquanto peça de história. Mais ainda, é encontrar-se com obras de arte concretas — passando por um grupo seleto de obras assinadas por Giotto, Lorenzetti, Raffaello, Brenet, Victor Hugo, Picasso e Banksy —, para as quais o sentido da justiça pode estar aferrado a alguns traços de coloridos muito distintos, mas igualmente instigantes.

5. A tese do caráter ritual das decisões de justiça
A tese do caráter ritual pode ser alcançada, na esteira das reflexões de Antoine Garapon, ali onde o Direito se encontra com a forma. Neste ponto, ressalta-se que o conjunto de aparas que cercam o procedimento para o alcance de decisões de justiça não é algo arbitrário, mas sim ligado a papéis institucionais. Essa leitura permite detectar uma relação de intimidade entre a forma e o conteúdo, que dificilmente é identificada na maior parte das análises a este respeito. Assim, se o processo judicial é entendido como uma garantia, o ritual é visto como sendo o espaço simbólico cercado de regras — que define as condições para o alcance de resultados afeitos às exigências do símbolo da justiça.

6. A tese da pedagogia da sensibilidade para a promoção da cidadania e da educação em direitos humanos
A tese da "pedagogia da sensibilidade" valoriza a ideia — que vem sendo desenvolvida pelo autor há algum tempo — aponta diretamente para o campo da cultura dos direitos humanos e de seus desafios concretos. E isto, afinal, na medida em que a proteção da dignidade da pessoa humana envolve a atitude de recusa às injustiças, à opressão, às violências, às intolerâncias e aos barbarismos do cotidiano. Então, a ideia de justiça — apesar de "cultuada", simbolicamente, por nossa sociedade — é, ao mesmo tempo, "negada" reiteradamente pelo cotidiano das práticas sociais. Os profissionais da área do Direito têm a tarefa de restabelecer o elo social a cada novo conflito, reconstituindo a possibilidade do sentido social da vida, no conjunto das tarefas sociais. Assim, a tarefa de promoção da cidadania e da educação em direitos humanos passa a representar um desafio enorme, quando considerada a dimensão de transformação de mentalidades. Mas é exatamente isto que reclama a sensibilidade das linguagens artísticas, seja da fotografia, do cinema, do curta-metragem e de sua potência para a disseminação de uma cultura de direitos humanos.

Epílogo
Enquanto vanguarda no tratamento da relação entre Direito e arte, a aproximação interdisciplinar entre a semiótica do Direito e a semiótica da arte traz valiosas contribuições — seja à teoria, seja à prática do Direito — que se podem empreender na perspectiva da análise da pintura, da arquitetura, do teatro, da literatura, da fotografia e do cinema. Estas microrrelações estão aí, dadas ao interesse dos juristas, e podem ser exploradas como veios instigantes de promoção da cidadania, da justiça e da dignidade humana. O que a cultura do Direito deve recusar, e para isso o olhar vigilante é decisivo, é a conversão da subcidadania em padrão de cidadania (1), a justificação da injustiça como sendo a revelação da própria justiça (2), e o empobrecimento cultural que permita a renovação do risco de recaída no fosso da indignidade humana (3). E isto porque, em nossa realidade, encontram-se inscritos estes três laços como constantes históricas.

E, para lidar com estas três dificuldades, o estudo do símbolo da justiça encontra suficientes razões para ser incentivado em nossos tempos. Estas breves notas trazem uma notícia, que procura alentar os estudos e pesquisas neste campo, sendo que atendem ao intento de noticiar ao leitor a publicação do livro "Semiótica, Direito e arte: entre Teoria da Justiça e Teoria do Direito", recentemente lançado pela Editora Almedina (1ª. edição, 2020, 359 páginas), que conta com os prefácios de François Ost, Antoine Garapon e José M. A. Linhares.

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Autores

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    é professor associado do Departamento de Filosofia e Teoria Geral do Direito da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, membro titular do Grupo de Pesquisas Direitos Humanos, Democracia, Política e Memória do IEA/USP e pesquisador N-2 do CNPq. Foi presidente (2009-2010) da Associação Nacional de Direitos Humanos (ANDHEP), foi 2º. vice-presidente da Associação Brasileira de Filosofia do Direito (Abrafi-IVR, 2009-2016), oi visiting professor da Università di Bologna (Bologna, 2017), da Université Paris-Nanterre (Paris, 2018) e do Collège de France (Paris, 2019).

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