Opinião

O papel dos partidos e do STF na judicialização da política

Autor

  • Isaac Kofi Medeiros

    é doutorando em Direito do Estado pela USP mestre em Direito pela UFSC sócio do escritório Menezes Niebuhr Sociedade de Advogados pesquisador visitante na Sapienza Università di Roma membro da Academia Brasileira de Direito Eleitoral (Abradep) e político.

20 de setembro de 2020, 6h34

"…A cláusula pétrea de que nenhuma lesão ou ameaça deva escapar à apreciação judicial erigiu uma zona de conforto para os agentes políticos. Em consequência, alguns grupos de poder (…) acabam por permitir a transferência voluntária e prematura de conflitos de natureza política para o Poder Judiciário".
Discurso de posse do ministro Luiz Fux na Presidência do STF

Fenômenos duradouros costumam perdurar por conta de ciclos viciosos. Assim sucede quando as engrenagens de um sistema são dispostas de tal maneira que incentivam a continuidade de um determinado acontecimento repetidamente, várias vezes, podendo inclusive ser fortalecido a cada início de um novo ciclo. Eis a minha hipótese: partidos políticos e Supremo Tribunal Federal formam um ciclo vicioso institucional dessa natureza, que incentiva e agrava o fenômeno da judicialização da política num vórtice interminável, em que um ator empurra o outro num jogo de ganha-ganha em que ambos têm motivos de sobra para continuar jogando. Não é nenhuma hipótese nova, apenas quero demonstrá-la sob uma outra perspectiva, incentivado pela frase em epígrafe do ministro Luiz Fux, proferida por ocasião de seu discurso de posse na presidência do STF.

Considere os seguintes dados. Durante os governos tucanos, o PT foi o partido que mais apresentou ações diretas de inconstitucionalidade contra medidas governamentais ou originadas do Congresso, cuja coalizão dominante era governista. Ao total, foram 150 ações propostas entre 1995 e 2002. Agora invertamos a imagem no espelho. Durante os governos petistas, o PSDB e o DEM foram os partidos que mais apresentaram ações diretas de inconstitucionalidade contra medidas do governo ou de sua base no Congresso. Ao total, foram 116 ações propostas entre 2003 e 2016 [1]. Durante o governo Bolsonaro não é muito diferente. Partidos de oposição têm batido à porta do STF com uma certa frequência na tentativa de barrar a agenda governista.

Eis nossa primeira premissa. A oposição, que costuma ter uma bancada minoritária no Congresso, utiliza-se do Supremo Tribunal Federal como uma trincheira de luta política. O incentivo institucional é muito claro: o déficit político-numérico das bancadas minoritárias não se apresenta como um obstáculo dentro de uma arena composta por 11 pessoas apartidárias. Aos olhos do Supremo, ao menos em tese, minorias e maiorias parlamentares têm o mesmo direito de reivindicar a aplicação da lei e da Constituição, sem distinção. Logo, uma derrota sofrida no plenário do Congresso pode ser revertida no plenário do Supremo, onde os partidos com representação parlamentar brigam de igual para igual. Além das ações de controle de constitucionalidade, considere ainda que a Constituição estabelece que os mandados de segurança impetrados por parlamentares contra as mesas diretoras do Senado e da Câmara devem ser apreciados pelo STF. As oportunidades para transferir o debate para o Supremo Tribunal Federal são imensas.

Não é de hoje que esse tipo de fenômeno é criticado pela doutrina, principalmente no âmbito da teoria constitucional. As críticas são conhecidas, em geral são no seguinte sentido: a intervenção do STF no jogo político prejudica a democracia, porque uma instituição contramajoritária e não eleita se arvora no direito de tomar decisões por milhões de pessoas representadas pelos membros do Congresso Nacional. No entanto, mesmo quem concorda com esse ponto de vista diverge sobre quais instituições são responsáveis por esse fenômeno. Há quem diga que a culpa é dos partidos, outros que a culpa é do STF.

As linhas de raciocínio são mais ou menos essas.

Pró-partidos, contra STF: partidos políticos são essencialmente instrumentos de conquistas de poder, de constituição de hegemonia e, por via de consequência, vão empregar os meios disponíveis no "mercado político" para alcançar esse objetivo e emplacar vitórias pragmáticas e/ou programáticas, dentro dos limites da legalidade. Se há um Supremo Tribunal Federal responsivo, disposto a decidir sobre temas politicamente controvertidos, faz parte das regras do jogo o interesse dos partidos em submeter todo tipo de petição ao STF; afinal, há expectativa real de algum ganho objetivo e sairiam perdendo os partidos que se abstivessem da judicialização. Por essa lógica, quem deve impor limites à disputa política não são os partidos, mas o Supremo Tribunal Federal, na condição de guardião da Constituição, moderador etc. Em resumo, é um argumento "don’t hate the player, hate the game".

Pró-STF, contra partidos: o Supremo Tribunal Federal é, por definição, inerte. Ele reage de acordo com os problemas que são a ele submetidos. Nessa condição, a corte não pode deixar de fornecer respostas aos requerentes, sob pena de ofensa ao princípio da inafastabilidade da jurisdição. Segundo este raciocínio, os partidos agem de maneira incoerente: ora criticam o ativismo do STF, ora provocam a instituição quando lhes interessa. Diante disso, quem deve praticar autocontenção são os partidos, ou "a política", de modo geral, uma vez que o STF irá pronunciar alguma sorte de decisão toda vez que for provocado; basta, portanto, não provocá-lo. Esse argumento é usualmente invocado pelos membros do Poder Judiciário, sobretudo do Supremo, como foi utilizado pelo ministro Luiz Fux na sua posse como presidente do STF. Forneço alguns outros exemplos na nota de rodapé abaixo [2].

Perceberam o problema? Conjugados, os argumentos perfazem um círculo. O STF deixa de praticar autocontenção por entender que isso é uma responsabilidade política dos partidos, que ao seu turno deixam de praticar autocontenção por entender que isso é uma responsabilidade jurídica do STF. No entanto, a questão é muito mais do que um simples mal-entendido. Neste jogo, ambas as instituições saem ganhando.

Já falei sobre as vantagens disponíveis aos partidos políticos, nomeadamente a possibilidade de superar a dificuldade numérica no parlamento através da transferência do debate político ao STF, onde maiorias/minorias jogam no mesmo nível. Adicione a essa conta um outro elemento, de valor ímpar no campo da disputa partidária: holofote. Reiteradas vezes lideranças políticas ingressam com algum tipo de pedido no STF, mesmo sabendo que as chances de sucesso são mínimas, tudo para gerar alguma sorte de visibilidade pública sobre o nome do partido ou do parlamentar. São movimentos que por vezes importam mais pelo gesto, na linguagem do mundo político, do que pela sua efetividade no mundo jurídico, mas que acabam eventualmente sendo acolhidos pelo Supremo.

Os ganhos para o STF são notáveis. Em primeiro lugar, a corte ganha em expansão da jurisdição constitucional, de maneira a ampliar a influência da instituição sobre os rumos da vida pública nacional. Acresça-se a isso o amplo e pouco controlado poder de pauta do Supremo Tribunal Federal, que concede aos membros da corte um instrumento poderosíssimo de controle sobre a política. Considere, como exemplo, o fantasma do parlamentarismo guardado na gaveta do STF, invocado eventualmente durante crises do sistema político através da "sugestão" de se colocar em pauta uma ação de 1997 que discute a possibilidade de mudança do sistema de governo através de emenda constitucional — confira reportagens na nota de rodapé [3]. Os demais benefícios vêm de lambuja: prestígio da instituição, relevância política dos seus integrantes etc.

Suponho que o momento é interessante para que ambas as instituições possam assumir a corresponsabilidade pelo excesso de judicialização da política. Afinal, o discurso do novo presidente da corte passou um recado bem claro, que pode ser assimilado de maneira propositiva contanto que o STF faça a sua parte também. Os partidos, por exemplo, podem internalizar uma diretriz clara sobre os limites da regulação judicial da política, instituindo dentro dos seus fóruns deliberativos até onde deve ir o anseio por contornar o jogo majoritário. Paralelamente, lideranças políticas podem trabalhar na produção de leis que diminuam os incentivos de judicializações temerárias, como o bem-vindo PL nº 78/2018 em trâmite no Senado Federal, que dificulta a concessão de medida cautelar em controle de constitucionalidade, para evitar a chamada "ministrocracia" [4]. Se continuarem a agir da mesma maneira, partidos estarão entregando as chaves do Congresso Nacional ao STF sem ficar com uma cópia para si, porque o ativismo vantajoso de hoje é a insegurança político-jurídica de amanhã. Oposições mudam, viram governo, e quando virarem podem sair prejudicadas depois de tanto incentivarem o agigantamento de uma instituição contramajoritária.

O STF, a seu turno, deve fazer valer o seu papel institucional de proteger o texto da Constituição e aplicar a separação de poderes, apesar da tentativa dos partidos políticos de ampliarem os limites da jurisdição constitucional. A ideia propagada pelo ministro Fux de que todo acionamento do Supremo irá gerar uma resposta é verdadeira, mas essa resposta pode ser a autocontenção, a partir do reconhecimento de que a cláusula de separação de poderes por vezes impede o STF de oferecer um pronunciamento sobre o mérito de escolhas legítimas do Poder Legislativo. O STF deve estar preparado para dizer que, salvo violação literal da Constituição, não pode mudar as opções do Poder Legislativo ainda que queira fazê-lo. Defender a separação de poderes é defender a Constituição. Isso não é negativa de jurisdição. É jurisdição constitucional.


[1] Dados obtidos do projeto Supremo em Pauta da FGV Direito SP, conhecidos pelo autor através da obra "Batalha dos Poderes: da transição democrática ao mal-estar constitucional", de Oscar Vilhena Vieira. VIEIRA, O. V. A batalha dos poderes: da transição democrática ao mal-estar constitucional. 1. Ed. São Paulo: Companhia das Letras: 2018.

[4] O termo ministrocracia faz referência aos poderes individuais dos ministros de controlarem a pauta da Corte e da própria agenda política nacional. Conferir ARGUELHES, D. W.; RIBEIRO, L. M. Ministrocracia: O Supremo Tribunal individual e o processo democrático brasileiro. Novos estud. CEBRAP, vol. 37, n.1, 2018.

Autores

  • Brave

    é advogado, mestre em Direito do Estado pela UFSC, pesquisador do GConst — Grupo de Pesquisa em Constitucionalismo Político da UFSC e autor do livro "Ativismo judicial e princípio da deferência à Administração Pública" (2020).

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