Opinião

Os limites de competência e jurisdição dos Tribunais de Contas

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20 de setembro de 2020, 12h12

Em artigo anterior, tratou-se do perfil constitucional conferido aos Ministérios Públicos junto aos Tribunais de Contas e dos limites de atuação de seus membros, apontando existirem também outras questões jurídicas acerca da competência e jurisdição dessas cortes administrativas que suscitam discussões doutrinárias e jurisprudenciais, como a possibilidade de emitirem provimentos de natureza cautelar e decisões com caráter normativo e vinculante, bem como responsabilizar advogados públicos por suas manifestações jurídicas, imiscuir-se no controle sobre o mérito administrativo e, até mesmo, exercer exames estritos de legalidade e de constitucionalidade. É o que se passa a analisar, nessa segunda parte e em complemento às considerações anteriores.

É cediço que os Tribunais de Contas, aos quais o constituinte conferiu importante missão, têm por competência realizar a fiscalização contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial dos órgãos da Administração Pública, o que abrange analisar aspectos de legalidade, legitimidade, economicidade e até mesmo razoabilidade de atos administrativos que gerem receita ou despesa pública. Essas cortes administrativas, contudo, julgam casos concretos e não estão autorizadas a dizer definitivamente o Direito, incumbência, como se sabe, conferida ao Poder Judiciário, e, havendo lesão ou ameaça de lesão a direito subjetivo ou, ainda, vícios de ordem formal, as decisões das cortes de contas podem ser revistas e anuladas, na esteira do artigo 5º, XXXV, da Constituição Federal.

Assim, embora se deva compreender, em atenção ao princípio da separação de poderes, que é vedada a interferência do Poder Judiciário na competência específica desses tribunais, consubstanciada em julgar as contas públicas, admite-se certo grau de intervenção com vista a coibir abusos, impondo-se, nesses casos, o necessário exame da proporcionalidade e razoabilidade das decisões e penalidades impostas, mesmo porque relacionado com a própria aferição da legalidade dos atos praticados em sede de controle externo, na medida em que o conceito de ilegalidade ou ilegitimidade, para fins de anulação de suas decisões, que nada mais são do que atos administrativos, não se restringe à violação frontal da lei, abrangendo não só a clara infringência do texto legal, como também o excesso ou desvio de poder, ou mesmo a relegação dos princípios gerais de Direito, pois, em qualquer dessas hipóteses, o ato padecerá de vício e se tornará passível de invalidação.

Com efeito, o controle de mérito, ou seja, aqueles aspectos da conduta administrativa sujeitos à valoração dos próprios agentes públicos, é privativo da Administração Pública e, logicamente, não se submete à sindicalidade dos Tribunais de Contas e sequer do Poder Judiciário. Não compete, portanto, aos membros das cortes de contas imiscuírem-se no controle do mérito administrativo, vale dizer, pretender decidir sobre a melhor forma de atuação do gestor público, quando for conferida a ele, de acordo com os critérios e limites prescritos em lei, a margem de escolha, o juízo discricionário, enfim, de valer-se dos aspectos de conveniência e oportunidade para a tomada de decisão e definição das políticas públicas, sob pena de ingerência indevida na atividade administrativa e de se comprometer a separação de poderes, erigida como cláusula pétrea no artigo 60, §4º, da Constituição Federal [1].

Tampouco cabe aos Tribunais de Contas exercer espécie de controle de constitucionalidade, com vista a negar validade ou impedir a prática de atos administrativos previstos em lei, sem que haja a necessária manifestação do Poder Judiciário. De acordo com a mais remansosa doutrina e jurisprudência, a exemplo dos Mandados de Segurança nºs 25.888, 25.986, 26.410 e 27.744, todos julgados pelo STF, o texto constitucional de 1988 introduziu radical mudança no sistema de controle de constitucionalidade, restringindo a amplitude do controle difuso e fazendo com que não se sustente mais a manutenção da Súmula nº 347-STF, sendo indubitável, sob a atual ordem constitucional, a impossibilidade de exercício de controle de constitucionalidade pelos Tribunais de Contas, órgãos de feição administrativa.

Nesse sentido, é de duvidosa constitucionalidade a previsão contida no artigo 1º, §2º, da Lei Orgânica do TCU (Lei nº 8.443/1992), também reproduzida na Lei Orgânica do TCDF (artigo 1º, inciso XV e §2º, da Lei Complementar nº 1/1994) e de outros Tribunais de Contas. Isso porque estabelece que a corte decidirá sobre consultas que lhe forem formuladas pela autoridade competente a respeito de dúvida suscitada na aplicação de dispositivos legais e regulamentares concernentes a matéria de sua competência, sendo que as respostas terão caráter normativo, constituindo prejulgamento da tese.

A competência para representar judicialmente e prestar consultoria jurídica à Administração Pública é, respectivamente, da Advocacia-Geral da União na esfera federal e das procuradorias de Estado, do Distrito Federal e dos municípios, órgãos centrais e permanentes do sistema jurídico dos poderes executivos das unidades federadas. Aos Tribunais de Contas, por sua vez, compete julgar os casos concretos, de forma que conferir às suas decisões, sobretudo em consultas que não levem em consideração as especificidades de cada caso, caráter abstrato-normativo, vinculando os agentes públicos, não só lhes retira a liberdade interpretativa, como estabelece espécie de aplicação apriorística e atemporal para casos futuros, sem que se faça o devido cotejo de todas as circunstâncias incidentes em novas situações.

Em nenhum momento atribuiu-se aos Tribunais de Contas, nos artigos 70 e seguintes da Constituição Federal, a competência para exarar decisões normativas ou mesmo para exercitar funções regulamentadoras das leis e realizar instruções complementares, não lhes competindo normatizar, por exemplo, procedimentos licitatórios ou regras sobre contratos administrativos. O que lhes cabe é interpretar as normas e, em cada caso concreto, verificar a regularidade das contas dos administradores e demais responsáveis por bens, dinheiros e valores públicos.

Outro tema sensível diz respeito ao exercício, e abrangência, do chamado poder de cautela no âmbito dos Tribunais de Contas e a possibilidade de se determinar, por meio de cognição sumária e medidas cautelares, a suspensão de editais de licitação e de contratos administrativos, ou mesmo, a indisponibilidade de bens de particulares, sob o fundamento de possível ilegalidade [2].

Atribuições constitucionais implícitas só são admitidas se houver compatibilização com o sistema de competências previsto na Constituição Federal e, no caso, o constituinte não foi omisso ao tratar, e delimitar, o poder de cautela a ser exercido pelos Tribunais de Contas, prevendo-o, em verdade, de forma explícita e com clara indicação do procedimento a ser observado.

Como é possível depreender da leitura dos incisos IX e X do artigo 71 da Constituição Federal, admite-se que os Tribunais de Contas exerçam poder de cautela, que consiste em assinalar prazo para que o órgão ou entidade adote as providências necessárias ao saneamento da ilegalidade e, se não atendido, determinar a sustação do ato impugnado, mediante comunicação da decisão, em seguida, à casa legislativa.

Ora, denota-se, então, que o constituinte permitiu que os Tribunais de Contas venham a determinar a sustação dos efeitos de atos administrativos ilícitos, embora não corresponda a anular o ato nem decidir, em caráter de definitividade, sobre sua legalidade. Contudo, o exercício desse poder, de cautela, encontra disciplina no próprio texto constitucional, ao prever que a sustação deve vir precedida do esgotamento do prazo antes conferido para que a autoridade pública dê fim à ilegalidade, e, só então, e com imediata comunicação da decisão ao Poder Legislativo, será possível se falar em eventual possibilidade de sustação [3].

Nos casos específicos de contratos, e de acordo com o §1º desse mesmo artigo 71 da Constituição Federal, a sustação caberá diretamente, por competência exclusiva, ao Poder Legislativo, e não ao Tribunal de Contas, que deverá solicitar ao Poder Executivo, de imediato, as medidas cabíveis. Em situação concreta, se a casa legislativa, no prazo de 90 dias, não efetivar essa medida, a corte de contas decidirá a respeito, o que, ainda assim, não significa dizer que gozará de atribuição para sustar o contrato, mas sim que poderá provocar novamente o Poder Legislativo para essa finalidade.

Nos exatos dizeres dos precedentes do STF, a participação dos Tribunais de Contas no processo de anulação, resolução ou resilição de contratos, na medida em que haja ou não elemento ilícito ou culposo como causa determinante para a sua extinção anormal, limitar-se-á a determinar essa providência à autoridade, pois esses poderes estão clara e inequivocamente delimitados nos dispositivos constitucionais referidos [4].

Temas semelhantes também são discutidos atualmente pelo STF, ainda com espeque no poder de cautela e na teoria dos poderes implícitos, e versam sobre a possibilidade de os Tribunais de Contas determinarem a indisponibilidade de bens de particulares e até mesmo proceder à desconsideração da personalidade jurídica de empresas que contratam com a Administração Pública.

Embora ainda se aguarde um pronunciamento definitivo, há manifestações em sentido favorável, mas, recentemente, no MS nº 35.506, que ainda pende de julgamento, o ministro Marco Aurélio de Mello consignou, ao conceder o writ, não reconhecer competências dessa natureza aos Tribunais de Contas, pois, ainda que admitido o poder geral de cautela, essa atribuição possui limites, dentro dos quais não se encontra o de bloquear, por ato próprio, dotado de autoexecutoriedade, os bens de particulares contratantes com a Administração Pública, nem, tampouco, sem respaldo normativo expresso e abertura de contraditório prévio, ou seja, sem a imprescindível existência de ato jurisdicional em respeito à cláusula constitucional da reserva de jurisdição, aplicar a desconsideração da personalidade jurídica no âmbito dos procedimentos administrativos  [5].

Do mesmo modo, e por fim, refoge à jurisdição das cortes de contas sancionar advogados públicos em razão de suas manifestações jurídicas. Em outras palavras, os advogados não podem ser responsabilizados, enquanto consultores jurídicos, por atos, de nítido teor comercial e gerencial, e que competem aos gestores públicos, sob pena, inclusive, de afronta ao artigo 5º, II, da Constituição Federal e conforme já decidido pelo STF no Mandado de Segurança nº 24.073-DF, em que se afirmou a incompetência constitucional e legal do TCU para julgar advogados por atos praticados no exercício regular da profissão "uma vez que não exercem função de diretoria ou execução administrativa, não ordenam despesas nem utilizam, gerenciam ou arrecadam, guardam ou administram bens, dinheiro ou valores públicos, não tendo assim potencial para causar perdas ou extravios ao erário no desempenho de suas funções", mormente porque, pelo Estatuto da Advocacia, a relação de emprego não retira deles a isenção técnica, nem reduz a independência profissional.

Até quando se cogita de atos com repercussões jurídico-administrativas mais evidentes, como a emissão de pareceres opinativos, a jurisprudência é assertiva em apontar que, em sede de controle externo, é abusiva a responsabilização de advogado público à luz de uma alargada relação de causalidade entre o seu parecer e o ato administrativo considerado irregular, salvo demonstração de dolo (má-fé), culpa ou erro grave (grosseiro e inescusável) submetida às instâncias administrativo-disciplinares ou jurisdicionais próprias. Apenas em situações excepcionais, é possível enquadrar o consultor jurídico ou parecerista como solidariamente responsável, sendo necessário, para tanto, que a peça opinativa ou o ato praticado, por erro grave, inescusável ou mesmo doloso, seja a razão clara e direta para a ocorrência da irregularidade [6].

Observa-se, diante das razões expostas, que os membros dos Tribunais de Contas, embora munidos da responsabilidade de fiscalizar as contas públicas e, com isso, contribuir para melhoria da gestão pública, precisam se atentar mais ao regime jurídico-constitucional que os cerca e aos limites de suas competências e jurisdições, sendo imperioso também, nos dias atuais e diante das justas aspirações da sociedade, repensar os critérios de escolha de seus integrantes e os meios de responsabilização pelos equívocos e excessos que eventualmente venham a cometer, pois, na verdade, são agentes públicos que lidam com bens preciosos, como os recursos públicos e também a dignidade e o patrimônio das pessoas, o que lhes impõe, além das cautelas indispensáveis, obediência à Constituição e às normas legais.


[1] Foi o que consignou o TJDFT no MS nº 0722591-16.2018.8.07.0000, ao anular decisão do TCDF no caso em que a corte, exorbitando sua competência, analisou questões técnicas de natureza ambiental e urbanística, desconsiderando decisão judicial proferida em ação civil pública e de forma a embaraçar o seu cumprimento, para questionar as licenças ambientais emitidas pelos órgãos competentes e pretender impor os seu próprios parâmetros de escolha e definição das políticas públicas de ocupação de áreas de preservação no Distrito Federal.

[2] No último dia 3 de setembro, o STF deu início a esse debate, em sede de agravos regimentais nos embargos de declaração da Suspensão de Segurança nº 5.306 e, mais especificamente, em caso que envolve decisão do Tribunal de Contas do Piauí em que se determinou a sustação dos efeitos de contrato administrativo e a retenção dos pagamentos devidos. O ministro Dias Toffoli concluiu que houve extrapolação das funções constitucionais dessas cortes e o ministro Alexandre de Moraes entendeu que seriam funções implícitas e necessárias ao cumprimento da missão conferida pelo constituinte, oportunidade em que o julgamento foi suspenso em razão do pedido de vista do ministro Luiz Fux.

[3] Esse foi o entendimento exposto, e vencido, pelo ministro Ayres Brito no MS nº 24.510-DF. O STF, como também se extrai de outros precedentes, a exemplo dos MS 34.446, MS 34.292, MS 34.291, MS 30.924 e MS 26.547, admite a existência de poderes de cautela implícitos em favor dos Tribunais de Contas, para que possam sustar procedimentos administrativos, a exemplo de um processo licitatório, mesmo antes de qualquer determinação ao gestor público, tudo com vista a garantir o resultado útil de suas decisões e impedir lesões ao erário.

[4] MS 23.550, rel. p/ o ac. Min. Sepúlveda Pertence, DJ 31/10/2001.

[5] Vide MS nº 32.494 e MS nº 34.392, no mesmo sentido.

[6] MS nº 24.631, Rel. Min, Joaquim Barbosa, julgado em 9.8.2007.

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