Opinião

A derrota por W.O. da democracia esportiva

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19 de setembro de 2020, 7h14

Às vésperas da primeira eleição da era pós-Nuzman no Comitê Olímpico do Brasil, a democracia esportiva é novamente posta à prova. O embate entre a necessidade de mudança e a manutenção do status quo estão provocando um terremoto esportivo.

A gestão esportiva, não é de hoje, vem sendo questionada pela sua falta de transparência e democracia participativa, não raro havendo gestores há décadas na presidência de confederações. Isso sem falar naqueles que saíram presos pelas portas dos fundos.

Como reação a esse sistema ainda embriagado pelo patrimonialismo, a Lei Pelé evoluiu impondo àquelas entidades que recebem recursos públicos federais de qualquer natureza, seja da Administração direta ou indireta, uma série de medidas voltadas a aumentar transparência, participação dos atletas nos processos decisórios e rotatividade no poder, instituindo as normas insertas nos artigos 18 e 18-A da Lei 9.615/1998, conhecida como Lei Pelé, não em razão de uma homenagem ao grande ídolo do futebol, mas em função de o mesmo ocupar o cargo de ministro do Esporte no governo Fernando Henrique Cardoso.

Um dos evidentes propósitos da lei era impor uma gestão mais profissional às entidades desportivas, criando uma série de regras de boa governança, incorporadas paulatinamente à rotina das entidades, antes acostumadas a gestões quase domésticas.

Não foi diferente com o Comitê Olímpico do Brasil, que, após a prisão de seu ex-presidente Carlos Arthur Nuzman, viu-se compelido a adotar regras de gestão corporativa, aderindo, inclusive, a termo de ajustamento de conduta junto ao extinto Ministério do Esporte, em que se comprometia a adotar as regras impostas nos artigos 18 e 18-A da Lei 9.615/1998, que, entre outras coisas, impunham a participação de atletas e a limitação de mandatos de seu presidente, além de padrões mínimos de transparência.

Mas as mudanças vieram tarde e não foram capazes de impedir que atos de gestão temerária praticados ainda durante a era Nuzman, e jamais apurados, jogassem o Comitê Olímpico numa disputa tributária milionária que coloca em risco sua própria existência, conforme amplamente divulgado pela imprensa.

Como consequência, o COB tornou-se devedor do Fisco, deixando de cumprir justamente uma das condições essenciais a uma gestão responsável, cujo compromisso havia assumido junto à União, qual seja, a condição de adimplência fiscal e trabalhista, prevista no artigo 18, IV, da Lei 9.615/1998.

Vale aqui trazer à luz que, embora distante da efervescência do futebol, o esporte olímpico vem galgando espaço e recursos, principalmente públicos, Olímpiada após Olímpiada, recebendo hoje a cifra estimada de aproximadamente R$ 275 milhões neste ano, advinda do repasse do percentual de 1,73% de todas as apostas dos concursos de prognósticos, conforme determinado pelo artigo 16 da Lei 13.756/2018.

Mas nem todos esses recursos públicos advindos das loterias seriam suficientes para salvar o COB, o que levou a União a abandonar uma marcha de moralização do esporte, alterando entendimento consolidado de compulsoriedade das observâncias às regras de governança dos artigos 18 e 18-A, para adotar uma tese jurídica ousada para salvar o esporte da bancarrota.

Segundo o Parecer Jurídico 396/2019 ConJur/MC/CGU/AGU, em razão de a novel Lei Federal 13.756/2018 prever o repasse como uma espécie de transferência obrigatória, a ausência de cumprimento dos requisitos dos artigos 18 e 18-A da Lei nº 9.615/1998 não seria causa impeditiva para que as entidades beneficiadas na lei deixassem de receber esses recursos, já que seriam próprios das entidades nela contempladas.

Friso aqui que há um evidente problema de hermenêutica. Não há antinomia entre a destinação obrigatória de transferência da verba pública e o estabelecimento de condições para seu recebimento. Primeiro porque o artigo 18 da Lei 9.615/1998 é categórico ao afirmar "somente serão beneficiadas com isenções fiscais e repasses de recursos públicos federais da administração direta e indireta" aquelas entidades que cumprirem as condições lá elencadas, não se podendo esquecer que a Caixa Econômica Federal é uma empresa pública, componente da administração indireta.

Segundo porque os recursos distribuídos são públicos, conforme acórdão TCU 3162/2016, que dispôs que os "recursos que o COB recebe por força da Lei 9.615/98 são recursos públicos federais, e não recursos privados". Por esse motivo é que compete ao TCU, nos termos do §6º, artigo 56, da Lei 9.615/98, fiscalizar a aplicação dos recursos repassados ao COB, ao CPB e à CBC decorrentes da arrecadação dos concursos de prognósticos e loterias federais e similares, conforme entendimento já consolidado no âmbito dos Acórdãos do TCU nº 2112/2004 — Plenário e 479/2005 — 2ª Câmara.

Se por um lado a novel construção legal da Advocacia-Geral da União caiu como uma luva para o Comitê Olímpico do Brasil, que viu se desobrigado de comprovar sua regularidade fiscal, por outro, ela enterrou anos de luta de atletas e outros abnegados que lutaram por um esporte mais democrático e transparente.

Ao permitir que o COB receba os recursos públicos à revelia do cumprimento das condições descritas nos artigo 18 e 18-A, da Lei Pelé, a União rompeu com uma tendência de maior interferência na autonomia desportiva, constitucionalmente prevista.

Mas a tempestade perfeita está se formando, pois, a despeito da complacência do Ministério da Cidadania liberando o Comitê Olímpico do cumprimento de normas cogentes, a Instrução Normativa 1700 da RFB, em seu artigo 15, prevê que somente farão jus à isenção fiscal de Imposto de Renda e Contribuição Social sobre Lucro Líquido aquelas entidades desportivas quites com o Fisco, o que não é o caso do Comitê Olímpico. É o famoso se correr o bicho pega, se ficar o bicho come.

Os prejuízos à modernização da gestão esportiva são enormes. A título de ilustração, o Comitê Olímpico do Brasil encontra-se desobrigado, em razão da nova interpretação jurídica, à limitação de mandatos de seu presidente, à obrigação de constituir colégio eleitoral com representatividade de pelo menos (um terço) dos votos de atletas e ao estabelecimento de critérios de gestão transparente, inclusive quanto a dados econômicos e financeiros, contratos, patrocinadores, direitos de imagem, propriedade intelectual e quaisquer outros aspectos de gestão, entre outras obrigações voltadas à boa governança.

Por arrastamento, também se encontram desobrigados de cumprir os requisitos legais dos artigos 18 e 18-A Comitê Brasileiro de Clubes (CBC), Comitê Paralímpico Brasileiro (CPB), Confederação Brasileira do Desporto Escolar (CBDE) e Confederação Brasileira do Desporto Universitário (CBDU), já que também recebem os recursos por força de lei.

Pelo jeito, a ressaca da era pós-Nuzman ainda está longe de acabar, e mesmo a açodada tentativa do Ministério da Cidadania de salvar o Comitê Olímpico de suas próprias mazelas cultivadas por anos de gestões patrimonialistas pode não ter o efeito desejado, já que ainda é preciso conversar com o leão, nem sempre tão amigável.

As tentativas do poder público de salvar o Comitê Olímpico da bancarrota causada por gestões desastrosas varridas para debaixo do tapete, se por um lado parecem justas, por outro nos remeterão novamente à era dos cartolas.

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