Opinião

Legitimidade, limites e sucessão processual das ações de associações

Autores

  • Lillian Jorge Salgado

    é presidente do Instituto de Defesa Coletiva (IDC) pós-graduada em Direito Empresarial pela IEC/PUC-MG e integrante da Comissão de Defesa do Consumidor da OAB-MG e do Conselho Gestor do Fundo Estadual de Defesa do Consumidor de Minas Gerais.

  • Tamara Camarano Ruhas

    é pós-graduada em Direito Processual Penal pelo Instituto Damásio Educacional e pós-graduanda em Direito Processual Civil e em Direito Constitucional pelo Instituto Elpídio Donizetti.

19 de setembro de 2020, 17h35

Durante largo lapso temporal, a legitimidade ativa das associações para a propositura de ações coletivas foi objeto de muita polêmica e equívocos pela jurisprudência nacional. Muitos foram os tribunais brasileiros que aplicaram erroneamente o entendimento do Supremo Tribunal Federal sobre o tema, causando grande retrocesso para a tutela coletiva brasileira.

Toda a celeuma jurídica teve início em 2014, no julgamento do RE 573.232/SC, ocasião em que o STF estabeleceu que apenas os associados que, na data do ajuizamento da ação, haviam aderido ao polo ativo, mediante expressa autorização assemblear, poderiam ser beneficiados pela procedência da ação coletiva proposta por associação.

Essa confusão jurídica teve fim apenas em 2018, quando o STF julgou o RE 612.430/PR Tema 499, sedimentando o entendimento de que a exigência de autorização expressa dos associados para a propositura de ação coletiva por associação não se aplica às ações civis públicas, vez que, de acordo com o microssistema processual coletivo, tais ações possuem rito próprio, sendo, pois, dispensada à autorização específica ou assemblear dos associados.

Legitimidade das associações
A atribuição de legitimação ativa coletiva é questão de política legislativa que se liga à problemática da extensão subjetiva da coisa julgada, isto é, a opção do legislador quanto à legitimação para a tutela coletiva determina a estrutura do processo e reflete no seu resultado, definindo os cidadãos que serão atingidos pela decisão judicial e para os quais ela se tornará imutável.

A partir da regulamentação legal do processo coletivo no Brasil, com a instituição do chamado microssistema processual coletivo, o legislador brasileiro conferiu expressamente legitimidade ativa ad causam às associações civis, definidas como agrupamentos sociais organizados e constituídos para perseguir um objetivo de natureza coletiva lato sensu (ZUFELATO, 2016).

Tendo em vista as implicações legais decorrentes na natureza jurídica da legitimação conferida às associações, determinou o legislador brasileiro que essas possam atuar nas demandas coletivas na qualidade de substitutas processuais ou na qualidade de representantes processuais, a depender do objeto e do pedido pleiteado na ação. Nesse sentido são os ensinamentos da saudosa Ada Pelegrini Grinover (2015):

"Na verdade, as associações estão legitimadas às ações coletivas – conforme o pedido — ora como representantes, ora como substitutos processuais: como representantes, pelo artigo 5º, XXI, da CF, caso em que a sentença e a coisa julgada só podem atingir os associados (representados); mas também podem ser substitutos processuais, para além dos associados, se assim se apresentarem, com fulcro no artigo 82, IV, do Código de Defesa do Consumidor (c/c artigo 5º,V, da Lei da Ação Civil Pública)".

No caso do artigo 82 do CDC, todas as legitimações são extraordinárias, e o legitimado age em nome próprio na tutela de interesse alheio. E, se assim agir a associação (o que, frise-se mais uma vez, depende do pedido), a coisa julgada atuará erga omnes ou ultra partes (nos interesses difusos e coletivos).

Ou seja, a atuação das associações nas ações coletivas de consumo se dá mediante a legitimação extraordinária, isto é, mediante a substituição processual da coletividade de interessados que podem ou não ser individualizados, de acordo com a natureza do vínculo, fático ou jurídico, que os une. As associações possuem a faculdade de atuar em juízo na posição jurídica de substitutas processuais, nos casos de violação à direitos difusos, coletivos stricto sensu, ou individuais homogêneos, por força normativa do microssistema processual coletivo brasileiro (artigo 5° da LACP e artigo 82 do CDC), ou podem atuar na posição jurídica de representantes processuais de determinados sujeitos individuais que expressamente lhe conferiram poderes para defende-los em juízo, por força normativa da Constituição Federal (artigo 5º, inciso XXI). (ZUFELATO, 2016).

Em face das distinções apontadas, as ações coletivas de consumo começaram a ser confundidas com ações de representação pelos tribunais brasileiros. Com o julgamento do RE 573.232/SC [1] no STF, em sede de repercussão geral. A ACMP (Associação Catarinense do Ministério Público) ajuizou ação contra a União, atuando como representante processual dos promotores juntando, na petição inicial, as autorizações de seus associados buscando a complementação da gratificação eleitoral dos membros do Ministério Público.

Julgada procedente a ação, a sentença passou a ser utilizada como título executivo judicial por terceiros, não autorizadores da ação de conhecimento. Contra essas execuções de terceiros, a União interpôs recurso extraordinário (RE 573.232/SC) alegando a violação aos artigos 5º, XXI e XXXVI, e 8º, III, da CF/1988, argumentando que a sentença somente poderia ser executada pelos filiados que haviam autorizado o ajuizamento da ação de conhecimento.

O RE 573.232/SC foi parcialmente conhecido pelo plenário do STF, que analisou somente a violação ao inciso XXI, do artigo 5º, da CF/8/198, porquanto não houve pronunciamento, pelo TRF da 4ª Região, quanto aos demais dispositivos tidos por violados. Nesse sentido decidiu o STF, em sede de repercussão geral, que a associação, defendendo interesses de seus associados como representante processual, deverá juntar na demanda inaugural a ata de assembleia específica autorizando o ajuizamento da ação, ou a autorização expressa de cada associado para esse fim.

Em decorrência desta interpretação equivocada do precedente fixado pelo STF no RE 573.232/SC, vários tribunais brasileiros, incluindo o Superior Tribunal de Justiça, passaram a extinguir as ações coletivas, exigindo autorização assemblear para ações civis públicas para a defesa de direitos e interesses coletivos e difusos.

Solução do equívoco: RE 612.430/PR Tema 499
Em face da aplicação do RE 573.232/SC às ações civis coletivas, as associações atuantes na defesa dos interesses e direitos dos consumidores, juntamente com alguns renomados processualistas, engrenaram esforços para combater a interpretação errônea do precedente, visando provocar a manifestação do STF a fim de que este esclarecesse o equívoco.

Um dos principais expoentes desse movimento em prol das ações coletivas, foi a consagrada doutrinadora Ada Pelegrini Grinover, que buscou, de forma ferrenha, a efetividade da tutela coletiva, alcançando o feito de ter sido a primeira pessoa natural a ser admitida como amicus curiae, no julgamento do RE 612.430/PR, ante a sua representatividade.

O STF foi provocado a se manifestar para que fizesse a distinção entre os institutos da representação e da sucessão processuais, afastando a necessidade de autorização assemblear para as ações civis coletivas.

Em maio de 2017, a Corte Suprema, ao apreciar o RE 612.430/PR Tema 499, em sede de repercussão geral, por maioria desproveu o recurso extraordinário, declarando a constitucionalidade do artigo 2º-A da Lei nº 9.494/97:

"A eficácia subjetiva da coisa julgada formada a partir de ação coletiva, de rito ordinário, ajuizada por associação civil na defesa de interesses dos associados, somente alcança os filiados, residentes no âmbito da jurisdição do órgão julgador, que o fossem em momento anterior ou até a data da propositura da demanda, constantes da relação jurídica juntada à inicial do processo de conhecimento" [2].

O Plenário do STF fixou tese minimalista, por entender ser óbvia a desnecessidade de autorização dos associados nas ações civis coletivas. Tal polêmica foi, enfim, pacificada com o julgamento dos embargos interpostos pelos amicus curiae, em que o ministro relator Marco Aurélio de Mello entendeu pela necessidade de esclarecer que a tese firmada no Tema 499 (RE 612.043/PR) não se aplica às ações civis públicas.

Assim, a decisão dos embargos colocou fim na confusão jurídica, restando cristalino que o entendimento do Supremo quanto à necessidade de autorização expressa dos associados para a propositura das ações coletivas, pelas associações, aplica-se tão somente às ações coletivas ordinárias, em que as associações atuam como representantes processuais, não sendo aplicável, por corolário, às ações civis públicas, em que há a legitimação extraordinária. Assim, estão elas permanentemente autorizadas, a partir do seu primeiro ano de constituição, a agir em juízo, desde que seja esse o seu fim institucional, restando afastada por completo toda a controvérsia criada com o julgamento do RE 573.232/SC.

STJ corrigiu posicionamento equivocado
Após o julgamento do Tema 499 (RE 612.043/PR) pelo STF, o Superior Tribunal de Justiça corrigiu seu posicionamento, alinhando-se ao entendimento fixado pela Suprema Corte. E muito embora, em um momento passado, o STJ tenha proferido decisões que limitavam à tutela coletiva apenas aos associados autorizadores da ação de conhecimento, o atual entendimento dessa corte é no sentido da absoluta legitimidade das associações para as ações civis coletivas, independentemente da existência de autorização específica de seus associados.

A correção do entendimento do STJ pode ser verificada na decisão do RE 1.719.820/MG, na qual o ministro Marco Aurélio Bellizze afirma, categoricamente, que não há a necessidade de autorização dos associados para o ajuizamento da demanda coletiva, tendo em vista as disposições da Lei da Ação Civil Pública, bem como o próprio objetivo da tutela coletiva. Ademais, o magistrado afasta por completo a aplicação, às ações civis coletivas, dos precedentes do STF fixados no RE 573.232/SC e no RE 612.043/PR.

Outras decisões do STJ que demonstram a correção expressa de seu posicionamento são o RE 1.649.087/RS [3], o RE 1.554.821/RS [4] e o Agravo Interno no Agravo em Recurso Especial nº 1304797/RJ [5].

Sucessão processual
Um dos mais importantes desdobramentos da solução do equívoco quanto à legitimidade ativa das associações para as ações civis coletivas foi o reconhecimento expresso, pelo STJ, da possibilidade de sucessão processual de associações no curso da ação. Isso porque enquanto havia confusão jurídica acerca dos institutos da substituição e representação processuais, muitos tribunais brasileiros, incluindo o próprio STJ, haviam proferido decisões no sentido da impossibilidade de sucessão processual de associações no curso demanda.

Com o julgamento do Tema 499 e a consequente correção do posicionamento do STJ, esse tribunal superior passou a permitir expressamente a sucessão processual de associações no curso da demanda, haja vista que ficou assentado que no caso das ações civis coletivas a legitimação das entidades civis se dá por meio da substituição processual, razão pela qual não há que se falar em qualquer impossibilidade para realização da sucessão, haja vista que os beneficiários da demanda correspondem a toda a coletividade lesada. A sucessão processual é possível em razão de no processo coletivo vigorar o princípio da indisponibilidade da demanda, seja no tocante ao ajuizamento ou à continuidade do feito, com reflexo direto em relação ao Ministério Público que, institucionalmente, tem o dever de agir sempre que presente o interesse social e, indiretamente, aos demais colegitimados.

Nesse ínterim, como especialização do princípio da instrumentalidade das formas, o processo coletivo é também norteado pelo princípio da primazia do conhecimento do mérito, segundo o qual o processo somente atingirá sua função instrumental-finalística se houver o efetivo equacionamento de mérito do conflito. Em razão desta compreensão é perfeitamente possível a assunção do polo ativo da demanda por qualquer outro legitimado, inclusive outra associação, nos termos do que preconiza o artigo 5º, §3º, da Lei 7.347/85 [6] (Lei da Ação Civil Pública).

Assim, o STJ admite a sucessão processual de associações no curso da demanda, em razão da desistência ou impossibilidade de continuação no polo ativo pela entidade civil conforme decisão do RE 1.719.820/MG, in verbis:

"Oportuno ressaltar, ainda, que a Andec, associação originariamente autora da presente ação coletiva, foi dissolvida e processualmente sucedida pelo Instituto Defesa Coletiva, o que é plenamente possível, haja vista que o microssistema de defesa dos interesses coletivos privilegia o aproveitamento do processo coletivo, possibilitando a sucessão da parte tida por ilegítima pelo Ministério Público ou por algum outro colegitimado, mormente em decorrência da importância dos interesses envolvidos em demandas coletivas.

Esse entendimento é preconizado pelos arts. 5º, § 3º, da Lei da Ação Civil Pública e 9º da Lei da Ação Popular (…)" [7].

No mesmo sentido são as decisões do STJ nos RE 1.192.577/RS [8], RE 1372593/SP [9] e RE 1.177.453/RS [10].

Nos 30 anos de vigência do Código de Defesa do Consumidor, completados em neste 2020, o reconhecimento amplo da legitimação das associações no processo coletivo foi essencial para que a tutela coletiva de consumo alcance seus objetivos, que é justamente proporcionar o acesso à justiça a todos os lesados, seguindo o espírito do processo coletivo: protege um, protege todos!

 


[1] Representação. Associados. Artigo 5°, inciso XXI da Constituição Federal. O disposto no artigo 5°, inciso XXI, da Carta da República encerra representação específica, não alcançando previsão genérica do estatuto da associação a revelar a defesa dos interesses dos associados. Título executivo judicial. Associação. Beneficiários. As balizas subjetivas do título judicial, formalizado em ação proposta por associação, são definidas pela representação no processo de conhecimento, presente a autorização expressa dos associados e a lista destes juntada à inicial.

[2] Tema 499 – RE 612.043 – Relator Marco Aurélio.

[3] STJ – REsp 1649087/RS, Rel. Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 02/10/2018, DJe 04/10/2018.

[4] STJ – REsp 1554821/RS, Rel. Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 25/09/2018, DJe 04/10/2018.

[5] STJ – AgInt no AREsp 1304797/RJ, Rel. Min. Mauro Campbell Marques, Segunda Turma, julgado em 20/09/2018, DJe 26/09/2018.

[6] Art. 5º Têm legitimidade para propor a ação principal e a ação cautelar:

I – o Ministério Público;

II – a Defensoria Pública;     

III – a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios

IV – a autarquia, empresa pública, fundação ou sociedade de economia mista

V – a associação que, concomitantemente

(…)

§ 3° Em caso de desistência infundada ou abandono da ação por associação legitimada, o Ministério Público ou outro legitimado assumirá a titularidade ativa.

[7] STJ – Recurso Especial nº 1.719.820 – MG, Julgamento em 01/10/2018, publicação em 23/10/2018, Rel: MINISTRO MARCO AURÉLIO BELLIZZE.

[8] STJ – REsp 1192577/RS, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 15/05/2014, DJe 15/08/2014

[9] STJ – REsp 1372593/SP, Rel. Ministro Humberto Martins, Segunda Turma, julgado em 07/05/2013, DJe 17/05/2013

[10] STJ – REsp 1177453/RS, Rel. Ministro Mauro Campbell Marques, Segunda Turma, julgado em 24/08/2010, DJe 30/09/2010

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    é presidente do Instituto de Defesa Coletiva (IDC), pós-graduada em Direito Empresarial pela IEC/PUC-MG e integrante da Comissão de Defesa do Consumidor da OAB-MG e do Conselho Gestor do Fundo Estadual de Defesa do Consumidor de Minas Gerais.

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    é pós-graduada em Direito Processual Penal pelo Instituto Damásio Educacional e pós-graduanda em Direito Processual Civil e em Direito Constitucional pelo Instituto Elpídio Donizetti.

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