Opinião

Os seis problemas pragmáticos inerentes às assinaturas eletrônicas

Autores

  • Renata Lourenço F. dos Santos

    é mestre em direito pela Uerj pós-graduada em Direito Previdenciário pelo Ceped-Uerj advogada de Entidade Fechada de Previdência Complementar e advogada do Serpros – Fundo Multipatrocinado.

  • Pedro Linhares Della Nina

    é pós-graduado em Direito Empresarial e em Litigation pela FGV mestre em Ciências Jurídicas pela Universidade Autónoma de Lisboa–UAL doutorando pela própria UAL e advogado de Entidade Fechada de Previdência Complementar estando atualmente no Serpros – Fundo Multipatrocinado.

18 de setembro de 2020, 16h19

Por força do longo período de afastamento social imposto pelas autoridades, houve um crescimento exponencial da utilização dos meios tecnológicos nas relações jurídicas, seja pelos programas de reuniões telepresenciais, seja pela propagação dos smarts contracts, com seu registro em blockchain e lastro oneroso representado em bitcoins.

Para os eventos mais comezinhos, houve também o aumento do uso de ferramentas digitais. Como se sabe, os negócios jurídicos rotineiros devem ser obrigatoriamente firmados para demonstrar a manifestação de vontade. Se envolverem pessoa jurídica, a assinatura será em regra do seu representante legal/voluntário, único apto a representá-la juridicamente, nos moldes do artigo 116 do CC, que vinculará a própria entidade ao elo jurídico.

Ora, a assinatura eletrônica é uma dessas ferramentas que dispensam contato físico, impressões, digitalizações, reconhecimentos de firma e envio de correspondências e que podem garantir a manifestação clara e inequívoca da vontade, requisito de existência de negócio jurídico, além de garantir a autenticidade, integridade e temporalidade do documento.

No Brasil, desde 2001 a assinatura eletrônica, gênero do qual a assinatura digital é espécie, está regulada na Medida Provisória n.º 2.200-2 de 24/08/01 e suporta duas espécies distintas: assinatura digital, que utiliza a certificação oriunda da Estrutura de Chaves Públicas Brasileira ICP-Brasil; e assinatura eletrônica, que faz uso de registros particulares de validação e comprovação de documentação.

É usual que, em documentos assinados eletronicamente, haja um carimbo para evidenciar que existe a firma do signatário (muitos, inclusive, indicam qual o certificado utilizado e a data da utilização). Pois bem, trata-se do primeiro problema inerente à tecnologia, já que é imperiosa a verificação da assinatura, seja no painel de assinaturas, seja através dos sites confirmatórios [1], sendo certo que o referido carimbo não tem qualquer valor jurídico, representando mera indicação de que há a firma eletrônica. As informações constantes do painel de assinaturas ou obtidas no site verificador devem obrigatoriamente apontar os signatários, com sua respectiva identificação, data e hora da assinatura e certificado utilizado, possibilitando a individualização do signatário e atestando a validade de sua assinatura, cumprindo, portanto, requisito essencial à validade do negócio jurídico.

Sobre a aceitação desses documentos, há uma presunção de que são verdadeiros em relação aos signatários quando assinados digitalmente, mediante utilização de certificado disponibilizado pela ICP-Brasil, nos termos do artigo 10, parágrafo primeiro, da MP 2202-2, e do artigo 219 do Código Civil [2]. Vê-se, assim, o segundo problema detectado durante a pandemia, já que muitas pessoas, por resistência, repugnam meios tecnológicos.

Não cabe agir com discricionaridade plena quando utilizada a certificação disponibilizada pela ICP-Brasil, já que os documentos assinados digitalmente são considerados válidos e, portanto, têm de ser aceitos, diante da presunção relativa que os envolve. Convém destacar, somente poderão ser refutados se houver alguma prova em contrário de irregularidade, como vícios de vontade, falta de requisitos, entre outros, o que poderia ocorrer em qualquer contrato assinado em meio físico, em que poderiam ser identificados os mesmos vícios. Pode-se afirmar, inclusive, que o uso da assinatura digital inclusive facilita a identificação de muitos deles, o que resulta num contrato mais seguro, em termos jurídicos.

A utilização dos certificados emitidos por outras instituições certificadoras também é admitida, desde que seja essa a intenção das partes signatárias, nos moldes do artigo 10, parágrafo segundo, da MP 2202-2. Nessa hipótese existe discricionariedade quanto à aceitação da assinatura eletrônica. Esse foi outro problema percebido (no caso, o terceiro), já que as assinaturas eletrônicas com utilização de certificados não emitidos pela ICP-Brasil somente serão aceitas se houver acordo entre as partes, o que tende a ensejar resistência em sua utilização.

Há ainda um quarto problema que nem é uma grande mazela, mas verdadeiramente uma questão conceitual: o documento a ser assinado ou é eletrônico ou é físico, sendo certo que os dois meios não podem coexistir. Assim, deve existir uma definição prévia da forma a ser utilizada [3]. Ou ambos os contratantes e testemunhas assinam o documento digitalmente, ou ambos o fazem em meio físico, com utilização de todas as formalidades inerentes a cada modalidade contratual. Nos tempos atuais, portanto, com limitação de contato presencial e trabalho majoritariamente remoto, tornou-se imprescindível a atualização sobre o tema e, inclusive, o investimento na tecnologia necessária à utilização do meio digital de assinatura que as empresas entenderem mais conveniente à sua realidade.

O quinto problema identificado é fruto de uma questão interessante, já que pessoas jurídicas podem ter assinaturas eletrônicas e digitais, sendo peça importante e essencial para questões cadastrais na Receita Federal e em muitos órgãos públicos. Inclusive, no Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro há obrigatoriedade de registro de pessoas jurídicas para recebimento de citações e intimações [4], o que é muito criticado por tratar de forma homogêneas todas as PJs [5].

Porém, o ordenamento jurídico, com a devida vênia, não está preparado para que pessoas jurídicas manifestem diretamente suas vontades em negócios, tampouco a assinatura eletrônica será substitutiva de representação. Não há dúvidas de que os contratos firmados por meio de certificados digitais são válidos, desde que não violem os requisitos de validade dos negócios jurídicos, conforme já exposto.

Nesse ponto, necessário esclarecer que, apesar de uma pessoa jurídica estar apta para a sua representação via e-CNPJ e, em algumas hipóteses, como representação perante alguns órgãos públicos, estar obrigada a ela, especialmente na assinatura de contratos e outros negócios jurídicos, a representação da pessoa jurídica se faz na pessoa de seu administrador, definido em seus atos constitutivos, sob pena de nulidade do negócio jurídico.

Não há como se admitir, ao menos nesse estágio, que os contratos sejam firmados pela assinatura da pessoa jurídica, seja pela presunção da representação do Código Civil (já mencionada artigo 116), seja pela real impossibilidade de se saber se o administrador da pessoa jurídica, designado em seus atos constitutivos, é quem está firmando o documento ou, ainda, se a assinatura eletrônica foi autorizada pelo mesmo, que é quem detém poder de administração.

Em tese, não haveria impedimento para que os atos constitutivos da empresa expressamente autorizassem a utilização do certificado emitido em nome da pessoa jurídica como forma de representação. Contudo, não se identificou ainda uma atualização da documentação nesse sentido. A jurisprudência sobre a questão ainda é incipiente, não firmada de forma sólida em qualquer dos sentidos, como ocorre com relação às questões mais recentes submetidas à apreciação do Judiciário.

Por segurança jurídica, portanto, no atual cenário, a representação das empresas na assinatura de contratos em meio digital deve ocorrer com utilização do certificado emitido em nome de seu administrador, formalmente designado nos atos constitutivos da empresa.  

O último problema percebido (sexto, certamente o mais recente detectado pelos autores) é oriundo da múltipla utilização de assinaturas eletrônicas, isto é, pelo uso de certificados de origem distinta (ICP-Brasil e outro, emitido por instituição certificadora diversa).

Não há, salvo melhor juízo, qualquer impossibilidade fático-legal para se admitir que um único documento seja firmado por diversos agentes, utilizando, cada um, certificados de natureza diversa.

Podem existir, sim, alguns limitadores técnicos, que serão adiante explorados, sem qualquer presunção de esgotar o tema, vez que muitos dos limitadores são conhecidos com o tempo, mediante utilização massiva dos certificados digitais. Se o documento for assinado digitalmente, com utilização do certificado emitido pelo ICP-Brasil e, após, for inserida assinatura eletrônica, com utilização de outro certificado, o sistema ICP-Brasil realiza uma leitura no sentido de que houve uma alteração em documento já assinado e, portanto, como forma de proteção da manifestação de vontade anteriormente expressa, invalida a assinatura, que perde o seu valor jurídico.

Em testes, foi identificado que a recíproca não é verdadeira, eis que se o documento for assinado eletronicamente primeiro, com certificado não emitido pela ICP-Brasil, para, somente depois, receber assinatura digital ICP-Brasil, não há prejuízo às certificações, com a coexistência de todos os registros, uma vez que as grandes empresas certificadoras entendem o certificado emitido pela ICP-Brasil como confiável e o sistema automaticamente reconhece a assinatura sem considerar que a mesma representa uma alteração do sistema.

A dinâmica identificada confere com a lógica legislativa, considerando que é obrigatório o aceite a documentos assinados com utilização do certificado emitido pela ICP-Brasil, enquanto para os demais certificados, além da aceitação, caberia, ainda, verificação da certificação utilizada.

O fato é, infelizmente, desagradável, e  espera-se que haja a necessária adequação nas próximas atualizações do ICP-Brasil, ao menos no que se refere às maiores certificadoras, que podem ser entendidas como confiáveis por todo o sistema.

Com isso posto, feitas todas as explanações, é perfeitamente possível arrolar os seis problemas pragmáticos decorrentes do aumento da utilização das assinaturas eletrônicas:

a) A verificação de qualquer assinatura eletrônica dever ser realizada no painel de assinaturas ou em sites confirmatórios, não sendo possível validá-la somente com a verificação dos carimbos inseridos no local usual da assinatura;

b) Há presunção de que são verdadeiros os documentos em relação aos signatários desde que assinados digitalmente com utilização do certificado disponibilizado pela ICP-Brasil, nos termos do artigo 10, parágrafo primeiro, da MP 2202-2, e do artigo 219, do Código Civil;

c) As assinaturas eletrônicas não ICP-Brasil somente serão aceitas se houver acordo entre as partes, nos moldes do artigo 10, parágrafo segundo, da MP 2202-2;

d) Deve der definida a forma prévia, isto é: o documento a ser assinado é eletrônico ou é físico, não sendo possível que os dois meios se perpetuem;

e) Não se pode admitir que contratos sejam firmados pela assinatura de pessoa jurídica, seja pela presunção da representação do artigo 116 do Código Civil, seja pela real impossibilidade de se saber assinatura eletrônica foi autorizada por quem detém poder de administração; e, ao fim

f) É possível juridicamente a coexistência de diversos tipos de certificações de assinaturas eletrônicas. Porém, foi detectada a limitação técnica quando um documento é assinado com ICP-Brasil e, após, é firmado por um não ICP-Brasil, fazendo com que a primeira seja invalidada.

Não há dúvidas de que, pouco a pouco, as transações em papel tendem a ser eliminadas. E essa transição deve ser realizada priorizando a segurança jurídica. Os meios digitais podem garantir uma maior segurança no monitoramento, armazenamento e nos procedimentos necessários à celebração de um negócio jurídico, desde que possam conviver, de forma válida com as previsões constantes no ordenamento jurídico. As questões ora apontadas não serão as únicas sobre o tema, a utilização reiterada dos instrumentos certamente trará soluções a essas questões e outras surgirão. E, desde que as soluções priorizem as disposições previstas no ordenamento jurídico, estará priorizada a segurança dos negócios jurídicos, independentemente dos instrumentos tecnológicos utilizados.

 


[1] Na assinatura digital (ICP-Brasil) é possível utilizar o https://verificador.iti.gov.br/verifier-2.5.4/. Na assinatura eletrônica stricto sensu faz-se necessária a consulta ao site certificador.

[2] O artigo da MP faz menção ao artigo 131, do CC/1916, que se corresponde, integralmente, ao artigo 219, do CC/2002.

[3] Os smarts contracts – ou contratos inteligentes – nesse ponto já são alavancados, pois são frutos de meio eletrônico, não sendo possível dar juridicidade à sua conversão em papel.

[4] https://www3.tjrj.jus.br/SISTCADPJ/faces/index.jsp.

[5] Recentemente foi prolatado o parecer TJ/PRES/GBJAP/GBJAP03, acatado pela Presidência do TJ-RJ, que nada acrescentou, já que dispensa de registro no referido sistema as associações e as entidades sem fins lucrativos, "sendo-lhes tão somente facultado e extremamente recomendado o aludido cadastramento", verbis:

"Ementa: Aviso nº 43/2020. Necessidade de cadastramento das pessoas jurídicas no SISTCADPJ – Sistema de Cadastro de Pessoas Jurídicas – a fim de possibilitar a citação e a intimação eletrônica. Consulta formulada quanto à obrigatoriedade de cadastramento das associações e fundações sem fins lucrativos. Não enquadramento nas disposições legais que versam sobre a obrigatoriedade de cadastramento. Dever de adoção de postura cooperativa para possibilitar a efetividade do processo e o acesso efetivo à Justiça. Parecer sugerindo que a obrigatoriedade de cadastramento imposta às pessoas jurídicas nos sistemas informatizados, nos termos do Aviso nº 43/2020, não seja estendida às associações e fundações sem fins lucrativos, sendo-lhes tão somente facultado e extremamente recomendado o aludido cadastramento".

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  • é mestre em direito pela Uerj, pós-graduada em Direito Previdenciário pelo Ceped-Uerj, advogada de Entidade Fechada de Previdência Complementar e advogada do Serpros – Fundo Multipatrocinado.

  • é pós-graduado em Direito Empresarial e em Litigation pela FGV, mestre em Ciências Jurídicas pela Universidade Autónoma de Lisboa–UAL, doutorando pela própria UAL e advogado de Entidade Fechada de Previdência Complementar, estando, atualmente, no Serpros – Fundo Multipatrocinado.

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