Improbidade em debate

Leniência leonina, (in)disponibilidade e eficácia vertical-horizontal de direitos

Autores

18 de setembro de 2020, 11h01

Spacca
Caso bastante peculiar chamou nossa atenção a ponto de nos instar a sobre ele escrever na coluna desta semana: o Conflito de Competência n. 174.121/TO, em curso perante o Superior Tribunal de Justiça.

Tratou-se, originalmente, de inquérito civil público instaurado para apuração de possível prática de ato de improbidade praticado pelo Secretário de Saúde do Município de Luzinópolis/TO, consistente em publicações, em redes sociais particulares, de eventos privados de que participou em meio à pandemia de COVID-19.

Antes que o aludido inquérito se convertesse em ação, foi celebrado acordo de não-persecução cível, homologado pela 1ª Vara Cível da Comarca de Tocantinópolis/TO (Processo n. 0003290-26.2020.8.27.2740), do qual constaram como compromissos: (i) obrigação de abstenção de condutas semelhantes à praticada; (ii) exoneração dos cargos de Secretário Municipal e de Gestor do Fundo de Saúde; (iii) obrigação de não assumir qualquer cargo comissionado ou função de confiança no território brasileiro até o final de 2020; (iv) suspensão dos direitos políticos pelo prazo de cinco anos; e (v) anuência para divulgação do referido acordo como forma de reparação do dano moral coletivo.

Encaminhado ofício à Justiça Eleitoral para ultimação dos efeitos atinentes à suspensão dos direitos políticos, nada obstante, o órgão especializado autuou o Processo n. 0006921-47.2020.6.27.8009 e, assentando sua competência em matéria eleitoral, proferiu decisão indeferindo a homologação, sob o fundamento de que:

Não se está aqui dizendo que o Juiz deva intervir nas tratativas, reescrever cláusula, sugerir modificações ou assumir o protagonismo do negócio jurídico, muito menos mitigar os poderes que o ordenamento jurídico outorgou ao Ministério Público para construir soluções consensuais para situações ilícitas.

O que faço neste momento é o controle jurisdicional do instrumento negocial, e só. E foi exatamente para ressaltar a missão do Poder Judiciário que o legislador ordinário, ao reformar e aperfeiçoar o processo penal brasileiro, ao editar a Lei n.o 13.964/2019, autorizou o Ministério Público a celebrar acordos de não persecução penal e cível, mas estabeleceu o dever de submeter o acordo ao controle jurisdicional obrigatório, pleno e efetivo. (…)

Portanto, estes são os parâmetros de que me valho para analisar o presente ANPC. E ao fazê-lo concluo pela impossibilidade de sua homologação em face da desproporcionalidade das sanções "convencionadas" com a conduta imputada como ilícita. (…)

Mesmo considerando a gravidade da conduta, o momento em que o suposto ilícito foi praticado, a indignação de quem perdeu pessoas queridas pela pandemia e o notório descaso com que a saúde pública é tratada por um grande número de gestores neste país não vislumbro proporcionalidade na sanção aplicada, especialmente se considerarmos a existência controvérsia jurídica real e concreta em torno da própria ilicitude da conduta.

Como se percebe da decisão oriunda do Juízo Eleitoral, o acordo em questão teria se revelado desproporcional e leonino, impondo ao agente público, ainda que com sua anuência, compromissos absolutamente gravosos se comparados à sua conduta.

O caso é mesmo bastante interessante e traz à tona inúmeras reflexões. A primeira delas diz respeito a saber — e este foi o cerne do conflito de competência alçado ao Superior Tribunal de Justiça — se o compromisso relativo à suspensão dos direitos políticos de fato atrairia a competência do Juízo Eleitoral para fins de homologação.

Temos para nós que não. Dado que nem sequer chegou a ser manejada ação de improbidade, o juízo competente para a homologação de fato é de fato aquele que receberia o feito houvesse ele sido intentado.

Tampouco há que se falar em repartição de competência a partir de uma segmentação dos compromissos assumidos em ajuste ou das sanções impostas em ação de improbidade. Ainda que soe um truísmo, basta constatar que, no caso, aviada que fosse a ação, dela poderia decorrer a suspensão de direitos políticos como sanção, o que não seria suficiente para acionar atribuições da Justiça Eleitoral.

Se não haveria ações distintas perante Justiças Comum e Especializada por força das categorias de sanções, decerto não há que se falar em homologações distintas a partir das categorias de compromissos assumidos. Do mesmo modo que o Juízo Eleitoral não poderia sindicar a dosimetria da pena de suspensão caso fosse adiante ação e condenação em improbidade, não pode fazê-lo quando a suspensão advém de acordo. Daí que acertada, a nosso ver, a decisão proferida pelo Superior Tribunal de Justiça, no sentido de reconhecer como competente o Juízo cível.

Não é, porém, porque não reconhecemos a competência do Juízo Eleitoral no particular que não louvamos o mérito da decisão dele oriunda. De fato — e eis aqui novas reflexões —, o caso, na medida em que se distingue de hipóteses mais frequentes, faz pensar sobre a (in)disponibilidade de direitos sob o prisma do agente.

Mais bem explicando, já houve casos que ensejaram rediscussão de parâmetros de acordos ao argumento de que as “sanções” neles contidas poderiam ter sido tímidas em frente às condutas praticadas. Aqui, ao contrário, a desproporcionalidade operou em desfavor do agente, impondo obrigações, a toda evidência, excessivamente gravosas.

Já dissemos noutra oportunidade que, no que se refere à homologação de acordos de leniência e de colaboração, a ingerência judicial deve ser reduzida. E assim pensamos por divisar nos critérios negociais, em boa medida, notas de discricionariedade1 que não poderiam ser apropriadas judicialmente, sob pena de passar a ser o Juízo o transator, como bem aponta Cândido Rangel Dinamarco:

Homologar significa agregar a um ato realizado por outro sujeito a autoridade do sujeito que a homologa. Ao homologar atos das partes ou dos auxiliares da Justiça, o juiz os jurisdicionaliza (Pontes de Miranda), outorgando-lhe a eficácia dos que ele próprio teria realizado. A homologação dos atos dispositivos das partes é um invólucro, ou continente, cujo conteúdo substancial é representado pelo negócio jurídico realizado por elas. Ao homologar um ato autocompositivo celebrado entre as partes, o juiz (…) limita-se a envolver o ato nas formas de uma sentença, sendo-lhe absolutamente vedada qualquer verificação da conveniência dos negócios celebrados e muito menos avaliar as oportunidades de vitória porventura desperdiçadas por uma das partes ao negociar. ‘Essas atividades das partes constituem um limite ao poder do juiz, no sentido de que trazem em si o conteúdo de sua sentença’ (Chiovenda). Se o ato estiver formalmente perfeito e a vontade das partes manifestada de modo regular, é dever do juiz resignar-se e homologar o ato de disposição do direito, ainda quando contrário à sua opinião. (…)2

O caso sob exame, nada obstante, põe as coisas sob outro prisma: pode a suspensão de direitos políticos integrar o objeto da transação em sede de leniência? Se sim, a gradação dessa disponibilidade admite sindicância judicial?

Sobre a primeira indagação, temos dúvidas sinceras. Por um lado, o artigo 15 da Constituição Federal não admite a suspensão de direitos políticos a partir de ajuste (o inciso IV, em matéria de improbidade, somente faz a previsão quando oriunda de condenação). Como espécie do gênero direitos fundamentais, os direitos políticos são indisponíveis e, por isso, em princípio seriam incapazes de ceder terreno à autonomia da vontade.

Por outro lado, sem embargo, acordos de colaboração têm demonstrado a possibilidade de transação inclusive sobre restrições à liberdade de locomoção, sendo que a retirada de determinados compromissos do catálogo de possibilidades de ajustes consensuais poderia promover um esvaziamento do instituto.

Não auxilia na superação do dilema o fato, já denunciado por nós, de o artigo 17, § 1º, da Lei n. 8.429/1992, ter tido sua regulamentação amputada por veto presidencial, ficando órfã a expressão “nos termos desta lei”. De todo modo, recorrendo à redação que havia sido dada ao artigo 17-A pela Lei n. 13.964/2019 anteriormente ao veto, observamos que as condições para o acordo de não persecução cível exigiam, “ao menos”, o integral ressarcimento do dano, a reversão da vantagem indevida à pessoa lesada e o pagamento de multa.

É verdade que mesmo o dispositivo vetado não limitava o âmbito de compromissos possíveis, mas priorizava obrigações tidas como indispensáveis, erigia a multa como sanção essencial alvo de disposição e impunha, em seu § 1º, que se levasse em consideração “a personalidade do agente, a natureza, as circunstâncias, a gravidade e a repercussão social do ato de improbidade, bem como as vantagens, para o interesse público, na rápida solução do caso.

Conquanto reconheçamos a necessidade, de nossa parte, de um maior amadurecimento da reflexão sobre o ponto, por ora admitiríamos sim a possibilidade de o ajuste de não persecução cível contemplar a suspensão de direitos políticos, e o fazemos de modo a apenas não sepultar o instituto — não é difícil imaginar que, rechaçada a possibilidade, acordos fossem celebrados apenas parcialmente, com ações seguindo sendo ajuizadas com o objetivo de cominação específica daquela punição.

Sem prejuízo, mesmo admitindo a possibilidade, entendemos que a suspensão de direitos políticos somente seria passível de integrar acordo como medida absolutamente excepcional e somente quando personalidade, circunstâncias e conduta ostentassem gravidade consentânea com o rigor da medida.

Naturalmente, o crivo sobre tudo isso haveria de ser judicial, de modo que — e já respondendo à segunda indagação que nos fizemos — assentimos com a possibilidade (na verdade, necessidade) de que o juízo homologatório realize um crivo criterioso e sóbrio acerca dessa proporcionalidade — como o fez, na situação narrada, o Juízo Eleitoral, ainda que incompetente.

Não estamos com isso a nos contradizer. Perseveramos na afirmação de que a margem de intromissão judicial nos ajustes é reduzida e tende a sê-lo ainda mais no que toca às vantagens obtidas pelo Estado. Apenas entendemos, na esteira da isonomia material e da paridade de armas, que a eficácia vertical-horizontal (o Estado cumula a condição de tal com a de transator) dos direitos fundamentais tem o condão de alçar a disposição sobre direitos políticos em ajustes consensuais ao grau de excepcionalidade que autoriza um maior cuidado judicial acerca de sua chancela, notadamente em situações em que, como no caso em comento, há uma desproporção tão gritante e indícios de um temor reverencial do agente municipal perante o Ministério Público.


1 SIMÃO, Valdir Moysés; VIANNA, Marcelo Pontes. O acordo de leniência na Lei Anticorrupção. Histórico, desafios e perspectivas. São Paulo: Trevisan Editora, p. 115.

2 DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de direito processual civil. Vol. III. 6ª ed. São Paulo: Malheiros Ed., 2009, p. 272-274)

Autores

  • Brave

    é sócio-fundador do Mudrovitsch Advogados, professor de Direito Público, doutor em Direito Constitucional pela USP e mestre em Direito Constitucional pela UnB. Membro do grupo de trabalho instaurado pelo Conselho Nacional de Justiça destinado à elaboração de estudos e indicação de políticas sobre eficiência judicial e melhoria da segurança pública.

  • Brave

    é sócio do Mudrovitsch Advogados, especialista em Direito Constitucional, mestre e doutorando em Direito pelo Instituto Brasiliense de Direito Público, professor de Processo Civil do IDP e vice-Presidente da Associação Brasiliense de Direito Processual Civil.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!