Opinião

O fim do voto de qualidade no Carf e a ADI nº 6.399/DF

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18 de setembro de 2020, 6h35

O Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) constitui órgão administrativo vinculado ao Ministério da Economia destinado a julgar processos de exigência de tributos administrados pela Receita Federal em segunda instância administrativa. Assume, com efeito, a função de entidade revisora de lançamentos tributários praticados pelas autoridades fiscais federais.

Trata-se de instituição que desempenha papel fundamental dentro do sistema tributário brasileiro, na medida em que assegura uma reavaliação dos aspectos formais e materiais do lançamento pautada por padrões técnicos de alto nível por parte do seu corpo de julgadores. Sua estrutura fundada em composição colegiada e paritária, formada por representantes do Fisco e do contribuinte, garante uma desejada pluralidade nos debates que respaldam as decisões do órgão.

Antiga fonte de controvérsia gira em torno do critério de desempate das decisões proferidas pelos colegiados do conselho. A composição atual de suas turmas ordinárias é formada por oito julgadores, sendo quatro representantes do Fisco e quatro representantes do contribuinte. Até abril de 2020, caso o julgamento terminasse com quatro votos favoráveis ao recurso e quatro contrários, à presidência da turma era atribuído um voto adicional, o de qualidade. Como o cargo de presidente das turmas e da câmara superior é reservado a representante da Fazenda Nacional, na prática, o desempate no julgamento competia exclusivamente a representante do Fisco.

Em abril deste ano, entrou em vigor a Lei nº 13.988, que restringiu, por meio do artigo 28, o campo de aplicação do voto de qualidade no Carf. A partir de então, em caso de empate no julgamento de processo administrativo de determinação e exigência do crédito tributário, não se aplica o voto de qualidade, resolvendo-se favoravelmente ao contribuinte.

A extinção do voto de qualidade para a maior parte dos processos julgados pelo Carf, estabelecida por referida alteração legislativa, deu causa à propositura de ações diretas perante o Supremo Tribunal Federal questionando a constitucionalidade da nova regra. Nesta oportunidade, teceremos breves reflexões a respeito da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 6.399/DF, proposta pelo procurador-geral da República.

Nessa ação, o autor defende a inconstitucionalidade formal do mencionado artigo 28 por vício no processo legislativo. De acordo com as razões apresentadas, o dispositivo em apreço não guardaria pertinência temática com o texto primário da lei. Além disso, tratar-se-ia de matéria de iniciativa reservada à Presidência da República, de tal forma que não poderia ter origem no parlamento.

Vale assinalar que a Lei nº 13.988/2020 é fruto da conversão da Medida Provisória nº 899/2019, que dispõe sobre a transação tributária. Durante o processo de conversão da medida provisória, foi incluída via emenda parlamentar a nova regra a respeito da extinção do voto de qualidade no Carf.

O texto original da Medida Provisória 899/2019 disciplina a negociação extrajudicial de créditos tributários constituídos e exigíveis, em dívida ativa ou não judicializados. Na visão da Procuradoria-Geral da República, a proposição que estabeleceu o fim do voto de qualidade no Carf, por abordar aspecto procedimental do julgamento de processo administrativo de determinação e de exigência do crédito tributário, representaria matéria estranha à que justificou a edição da medida provisória, revelando falta de pertinência temática. A suposta ausência de afinidade entre os dispositivos implicaria violação ao princípio democrático e do devido processo legislativo.

No entanto, embora as matérias não tenham identidade imediata, fato é que ambas versam sobre Direito Tributário e têm o potencial de provocar uma redução da litigiosidade, tendo sido esse objetivo, inclusive, uma das justificativas apresentadas na exposição de motivos da MP 899/2019.

Assim, não se pode negar que as matérias compartilham uma zona de intersecção relevante e cujo efeito — reduzir a litigiosidade — representa precisamente a finalidade do texto original. A circunstância de constituírem instrumentos distintos para se atingir tal objetivo não traduz elemento suficiente para tornar a regra que extinguiu o voto de qualidade elemento estranho ao conteúdo da medida provisória.

Tanto é assim que o parágrafo único do artigo 23 da Lei nº 13.988/2020 estabelece regra de natureza similar ao definir julgamento em instância única no contencioso administrativo de pequeno valor. Portanto, sob a perspectiva estritamente jurídica, não nos parece defensável a tese de que o artigo 28 seria inconstitucional por ausência de pertinência temática com o texto original.

No tocante ao segundo argumento, alega a Procuradoria-Geral da República, com base nos artigos 61, §1º, II, "e", e 84, VI, ambos da Constituição, que a elaboração de normas dispondo sobre criação e extinção de órgãos da administração federal ou sobre sua organização e seu funcionamento são de iniciativa exclusiva da Presidência da República — nas últimas duas hipóteses, mediante decreto. Por conseguinte, a alteração legislativa em exame não poderia ter sido concretizada mediante emenda parlamentar.

No entanto, a regra questionada não criou nem extinguiu órgão, tampouco versou sobre a organização ou o funcionamento da administração federal.

A estrutura e a competência do Carf não foram alteradas, mantendo-se intactas. O órgão continua desempenhando suas atividades da mesma forma como vinha antes da lei em questão. A existência ou não do voto de qualidade representa tão somente método de resolução quanto ao resultado de julgamento que termina empatado. Possui, assim, caráter procedimental e, a rigor, não interfere na organização ou no funcionamento da instituição.

Convém salientar, ainda, que o dispositivo em tela passou pela sanção do presidente da República, que endossou a mudança da regra. Submeteu-se, ainda, à análise da Advocacia-Geral da União, que não identificou inconstitucionalidade formal ou material. Portanto, sujeitou-se ao crivo do chefe do Poder Executivo.

Dessa forma, tendo em vista que não prosperam os argumentos formulados pela Procuradoria-Geral da República na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 6.399/DF no que se refere à inconstitucionalidade formal do artigo 28 da Lei nº 13.988/2020, espera-se que o Supremo Tribunal Federal decida pela improcedência do pedido.

Finalmente, vale destacar que a nova norma tende a corrigir o resultado de alguns julgamentos que, seja pelo valor ou por pressão política, acabaram sendo decididos a favor do Fisco e, consequentemente, obrigaram os contribuintes a iniciar inúmeras disputas judiciais com a apresentação de garantias milionárias, indo de encontro à estratégia do próprio governo de redução do contencioso e do crescimento econômico do país.

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