Interesse Público

Improbidade administrativa para primeiros e terceiros

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17 de setembro de 2020, 8h00

As interpretações vigentes acerca do Direito Administrativo Sancionador, quiçá na contramão das tendências de ampliação de instrumentos de diálogo e de consenso no âmbito da Administração Pública, tem se revelado muitas vezes modulares ao Direito Penal do Inimigo.[1]

Spacca
Entendimentos construídos pela jurisprudência, a propósito da Lei de Improbidade Administrativa (Lei 8.429/92), ampliam seu espectro de abrangência e seu potencial sancionatório.  O último deles consagrou uma espécie de "pena de banimento dos quadros do serviço público".[2]

Com efeito, em matéria de improbidade administrativa, a jurisprudência dominante produziu uma ampla sorte de presunções que tiveram o efeito prático de assegurar a inversão do ônus de prova em benefício da acusação.

Alguns exemplos colhidos no repertório do Tribunal da Cidadania são: dano in re ipsa, dolo in re ipsa (genérico), ausência de nulidade processual por supressão da fase de defesa prévia, duplo grau de jurisdição obrigatório em caso de improcedência, inaplicabilidade do princípio da insignificância, indisponibilidade de bens pela via da tutela de evidência, inclusão da multa potencial no montante da constrição initio litis, extensão dos efeitos da Lei 8.429/92 ao exercício da função legislativa (o que significa dizer também à jurisdicional), inclusão do terceiro (beneficiário) no polo passivo da demanda, independentemente da existência de fundados indícios acerca do elemento subjetivo da conduta e de sua contribuição para o ilícito.

Nas Jornadas de Direito Administrativo do Conselho da Justiça Federal (CJF), realizadas no início de agosto de 2020, houve uma proposição de enunciado no sentido de que "o beneficiário do ato questionado na ação de improbidade administrativa não pode ser incluído no polo passivo da demanda, sem que haja fundados indícios de que tenha concorrido, com dolo ou culpa grave, para a sua consumação".

A proposição não foi aprovada — como de resto a quase totalidade daquelas apreciadas pela Comissão VI (Controle da administração. Improbidade administrativa. Legislação anticorrupção. Acordos de Leniência. Transações e consensualidade administrativa). Tal como registrou Francisco Zardo em recente webinário sobre Direito Administrativo Sancionador, realizado pela Escola da AGU, pelo Projeto Pé na Estrada (Raquel Carvalho, MG) e pelo Tribunal de Contas do Estado do Rio de Janeiro, todas as proposições que versavam sobre flexibilizações ou leniências em temas como "sanção, controle ou improbidade" foram rejeitadas nas Jornadas do CJF.

Não obstante, o tema do enunciado rejeitado, o do terceiro beneficiário direto ou indireto pelo ato de improbidade administrativa, tem repercussões práticas relevantes e que justificam o seu tratamento discursivo neste espaço da ConJur.

– Em que medida deve ser o beneficiário incluído no polo passivo da ação como sujeito ativo do ato de improbidade administrativa?

– Automaticamente, pelo simples fato de ter obtido algum ou qualquer benefício decorrente da conduta do agente público inquinada na ação de improbidade administrativa?

– Seria juridicamente correto inclui-lo no polo passivo, sem se cogitar dos elementos subjetivos e da sua contribuição para o ilícito, já que ambos devem ser exigidos para que os próprios agentes públicos respondam pela ação de improbidade administrativa?

A disposição legal típica é o artigo 3º da Lei 8.429/92, parte final, a ver: "As disposições desta lei são aplicáveis, no que couber, àquele que, mesmo não sendo agente público, induza ou concorra para a prática do ato de improbidade ou dele se beneficie sob qualquer forma direta ou indireta".

A despeito do cenário de presunções jurisprudenciais apontado na parte inicial deste texto (que em minha compreensão não se amolda à perspectiva da distribuição dinâmica do ônus da prova – art. 373 do CPC), é fato que o direito brasileiro repudia a responsabilidade objetiva em matéria punitiva.

Em tema de improbidade administrativa, o ministro Teori Zavascki legou-nos a lição de que "a responsabilidade do terceiro que induz ou concorre com o agente público na prática da improbidade, ou que dela se beneficia, supõe, quanto aos aspectos subjetivos, a existência de dolo, nas hipóteses dos artigos 9º e 11 da Lei, ou de culpa (grave), nas hipóteses do artigo 10. Não há, no sistema punitivo, responsabilidade objetiva. O terceiro, mesmo beneficiado, não pode ser punido se agiu de boa-fé, ou seja, se ‘mesmo com razoável diligência, comum aos homens médios, não teria percebido a ilicitude do ato gerador de seus benefícios.’”[3]

Deveras, se o agente público — primeiro sem o qual não se há falar em improbidade administrativa — deve ter o elemento volitivo de sua conduta analisado, afastando a possibilidade de condenação por mera presunção de culpabilidade, "não se mostra juridicamente razoável ou mesmo lógico, que o terceiro beneficiário do ato não sofra esta mesma análise. Não é possível ser mais rigorosos com o particular do que com o próprio agente público, foco central da Lei". [4]

Deve-se acrescentar, ainda, o fato de que não há litisconsórcio necessário entre o agente público e o terceiro (beneficiário) na ação de improbidade administrativa (Tese 9 da jurisprudência selecionada do STJ) — constatação que uma vez mais releva a imperiosidade de se justificar a razão de ser da presença do terceiro no polo passivo da demanda, fundamentalmente a partir da constatação da existência de evidências indiciárias concretas de comportamento indevido capaz de gerar repercussões diretas ou indiretas para o ilícito.

Assim sendo, uma vez ausentes os fundados indícios de participação dolosa ou pelo menos gravemente culposa[5] do terceiro na conduta reprimida pela ação de improbidade administrativa, ou uma vez ausente argumentação que atribua a ele explicitamente o cometimento de algum tipo de ilicitude (§6º do artigo 17 da Lei 8.429/92), a rejeição da ação ou a improcedência é medida que se impõe, a teor do §8º do artigo 17 da Lei 8.429/92.

Diria Rui Barbosa, em resumo, que "a lei que não protege nossos adversários [ou inimigos] não nos pode proteger".


[1] A Teoria do Direito Penal do Inimigo, criatura do autor alemão Günther Jakobs, é edificada sobre alicerces como: (a) flexibilização do princípio da legalidade, a partir da descrição vaga dos delitos e das penas; (b) antecipação da punição; (c) desproporcionalidade das penas; (d) relativização e/ou supressão de garantias processuais do acusado; (e) criação de leis severas direcionadas a estratos indesejados da sociedade (v.g., terroristas, delinquentes organizados, traficantes, criminosos econômicos). O inimigo é aquele que não se submete ou que reluta em fazer parte da ordem estatal, e por isso não deve usufruir do status de cidadão, podendo ter seus direitos e garantias relativizados. Sobre o tema, ver GOMES, Luiz Flávio. Direito Penal do Inimigo (ou inimigos do Direito Penal), disponível em https://www.conteudojuridico.com.br/open-pdf/cj029698.pdf/consult/cj029698.pdf). Acesso em 15.09.2020.

[3] ZAVASCKI, Teori Albino. Processo coletivo: tutela de direitos coletivos e tutela coletiva de direitos, 3. ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p. 121-122. Na mesma linha, ver as sustentações de Francisco Octavio de Almeida Prado, “a auferição de benefício foi adotado pela lei como elemento configurador de responsabilidade por ato de improbidade administrativa. Mas é importante salientar que a fixação dessa responsabilidade não pode prescindir do elemento subjetivo. É que sem o vínculo subjetivo inexiste a possibilidade de responsabilização por ato de improbidade.” (ALMEIDA PRADO, Francisco Octavio. Improbidade Administrativa. São Paulo: Malheiros Editores, 2001, p. 71); Cynara Monteiro Mariano, “o benefício que o terceiro tenha auferido, na dicção do art. 3º da Lei n. 8.429/1992, direto ou indireto, pressupõe inequivocamente uma atuação conjunta e deliberada do particular com o agente público, visando a um fim ilícito. Se assim for, não se admite partir da presunção da prática de ato de terceiro por ter sido beneficiado, direta ou indiretamente, por ato de agente público considerado como ímprobo. Há necessidade de demonstração cabal do elo existente entre a conduta do agente e a participação do terceiro/particular para o resultado produzido, sem o qual a mera presunção de responsabilização objetiva não se presta para legitimar sua inclusão no polo passivo da ação de improbidade, quer em litisconsórcio com o agente público, quer, muito menos, isoladamente.” (MARIANO, Cynara Monteiro. Reflexões sobre a responsabilidade do terceiro para a caracterização da improbidade administrativa. Revista do Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais. v. 36, n. 2, p. 12/22, jul./dez. 2018. Disponível em: https://revista.tce.mg.gov.br › index.php › TCEMG › article › download. Acesso em 15.09.2020); Marcelo Harger, “não basta a existência de um ato ilícito a beneficiar o particular. Obviamente, o beneficiário somente poderá ser punido se agiu dolosamente. É necessário que este saiba que o ato era ilícito”. (HARGER, Marcelo. Improbidade Administrativa, 2. ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2020. p. 151); Mauro Roberto Gomes de Mattos, “o particular que agir com lealdade e boa-fé, isento de dolo, retira a tipicidade da Lei de Improbidade Administrativa, não devendo figurar no polo passivo da lide.” (GOMES DE MATTOS, Mauro Roberto. O limite da improbidade administrativa, 3. ed, Rio de Janeiro, América Jurídica, 2006. p. 54).      

[4] NOBRE, Eduardo Maffia Queiroz. Beneficiário de improbidade precisa ter conduta analisada individualmente. Disponível em https://www.migalhas.com.br/depeso/203602/beneficiario-de-improbidade-precisa-ter-conduta-analisada-individualmente. Acesso em 15.09.2020.

[5] Esta afirmação é feita sem prejuízo da opinião do articulista, já manifestada em outros sítios, no sentido de que comportamentos culposos não se acomodam ao conceito constitucional de improbidade administrativa.

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