Opinião

Todos merecem uma segunda oportunidade (até o TJ-SP)

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17 de setembro de 2020, 13h09

Dona Maria me procurou porque seu filho Pedro (nomes fictícios, histórias reais) foi preso perto da escola onde estudava vendendo duas trouxinhas de maconha. Recebia R$ 5 por unidade vendida.

Em audiência de custódia foi solto, após a qual recebeu a lição que tive a sorte de aprender ao vivo e em cores (colorido da alma e do coração) da saudosa Alexandra Szafir: todos merecem uma segunda chance, ninguém uma terceira. Arranjou emprego com registro na carteira de trabalho.

Respondido o processo, Pedro foi condenado pela prática de tráfico privilegiado e o juízo de piso substituiu a pena de prisão por duas restritivas de direitos. Continuou empregado.

Apesar disso, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo reverteu a decisão para afastar a redutora da pena, fixando o regime inicial do seu cumprimento no fechado.

Assim, a reforma da sentença inaugurou um trabalho hercúleo de infindáveis recursos da defesa para evitar que Pedro perdesse seu emprego: o STJ já concedeu ordem de Habeas Corpus para restabelecer a figura privilegiada, bem como já deu provimento a recurso especial para que o TJ-SP redimensionasse sua pena (reconhecendo-se a confissão espontânea de Pedro). No entanto, ainda não acabou.

Pedro, primário, que está empregado e, desde que foi solto em audiência de custódia, nunca mais envolveu-se com qualquer prática criminosa, está na iminência de voltar ao cárcere porque o TJ-SP decide fixar uma pena de um ano e 11 meses no regime semiaberto (leia-se: prisão).

Resultado disso foi a interposição de novo recurso especial pela defesa, suscitando o tipo de ementa que muitas vezes é usada como demonstração de um suposto abuso do direito de recorrer: "Recurso Especial em Embargos de Declaração em Acórdão do TJ-SP em Agravo Regimental em Agravo contra decisão Denegatória em Recurso Especial em Apelação".

Acontece que essa é a única forma de brigar pela manutenção de Pedro no emprego…

Veja-se que esse caso é como de qualquer outro réu condenado por tráfico que assola o sistema judiciário, mas a agrura de Pedro só se torna particular porque, lembrando da lição do juiz Benjamin Cardozo relatada por Alan Dershowiitz na obra "Letters to a Young Lawyer", nenhum caso é particularmente interessante até que seja objeto de reflexão e cuidado.

Portanto, é no prisma da individualidade do ser humano em carne e osso, indevidamente apagado pelas páginas frias dos autos processuais, que deve ser entendida a importância do julgamento, essa semana, do Habeas Corpus coletivo nº 596.603 pelo STJ.

Referido precedente foi na verdade um epílogo do desabafo feito pelo ministro Schietti em 16 julho durante um seminário virtual promovido pelo Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP), em que criticou severamente o TJ-SP pela fixação de prisão para pessoas condenadas por tráfico privilegiado.

No entanto, o ponto é que esse julgamento não pode ser mera notícia nas páginas do jornalismo jurídico, ou um push de andamentos processuais. Explico: o exemplo deste texto é a exceção do que ordinariamente resume-se a um traficante sendo preso e contribuindo trágica-insignificantemente à superlotação calamitosa dos nossos presídios paulistas.

A verdade é que Pedros geralmente são números. Fragmentos de estatística. Casos mais simples. Céleres. Menos penosos à máquina judicial. Entram na cadência estanque e protocolar das engrenagens. Pilhas e pilhas de processo. Metas do CNJ. Engolidos pela repetição monótona anestesiante que permite a invisibilidade de Pedros.

Dito isso, a regra de um caso como esse seria mais limpa, despercebida e, justamente por tudo isso, seria infinitamente mais mórbida, pois Pedro seria solapado de sua dignidade, de seus sonhos, e de aproveitar a oportunidade de uma segunda chance só para perceber que a mão que dá a chance (o Estado) é a mesma que a arranca depois de seu reerguimento, como se fosse uma brincadeira sádica de mau gosto.

Ou, se a humanidade de traficante não sensibiliza a alma do cidadão de bem, Pedro seria neutralizado de sua função cívica de contribuinte ao fisco, tudo para se tornar passivo do Estado, e um potencial recruta ao crime organizado que toma os presídios paulistas. Em bom português: é uma conta de padaria, e ela não fecha.

Nessa toada, o julgamento do Habeas Corpus coletivo é uma luz para essa dor muito humana e particular que é mais profunda e vai muito além da hermenêutico de artigos de lei. Muda vidas.

É penoso lembrar a angústia de Pedro quando recebeu minha notícia do julgamento da apelação, a qual foi temperada por termos técnicos jurídicos, como quem pretende esconder o odor de carne podre. Ele, na sua simplicidade pedagógica, perguntou: o juiz mudou de ideia e iria prendê-lo?

Assim, passou do tempo de o TJ-SP parar de lotar nossos presídios com casos os quais não demandam prisão — a crítica é dura, mas só porque o resultado dessa tendência é desastroso —, de forma a ser bem-vinda a percepção do STJ, abrindo o caminho para corrigir essa distorção.

Portanto, assim como Pedro, o TJ-SP também terá uma segunda chance para consertar o mundo que o rodeia: Pedro arranjando emprego e não traficando mais e o tribunal dando cara, vida e sentido à previsão da forma privilegiada do tráfico de drogas, evitando inícios de ciclos viciosos causados pelo nosso sistema carcerário que funciona como uma verdadeira escola do crime.

Agora, é importante lembrar que ministro nenhum age sem provocação: foram recursos especiais em embargos de declaração em acórdão do TJ-SP em agravo regimental em agravo contra decisão denegatória em recurso especial em apelação que pavimentaram essa rota reparadora de decisões e ressocializadora de pessoas.

Claro, não se ignora que a celeridade processual é uma virtude, que custos do judiciário e tempo dos juízes e juízas são problemas sérios — entretanto, a solução certamente não está em demonizar os instrumentos jurídicos que a defesa dispõe para evitar que Pedros não tenham a oportunidade de se reerguer (ressocializar nos termos que permeiam a nossa Constituição Federal e nossa Lei de Execução Penal).

No que toca ao Pedro, ele ainda tem seu futuro incerto e pode, sim, ao final, ser preso e perder o emprego. Portanto, o texto aqui acaba, mas a insistência não. Espero que ele também tenha um final feliz, e, sinceramente, que eu precise entrar com poucos recursos para tanto.

Enfim, que o TJ-SP, assim como Pedro, aproveite a chance que lhe foi dada de se reerguer.

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