Opinião

Precisamos falar sobre o ônus da prova no processo penal

Autor

  • Arthur Martins Andrade Cardoso

    é advogado em São Paulo especialista em Direito Penal e Processo Penal pela Universidade Presbiteriana Mackenzie membro voluntário do Instituto Pro Bono (IPB) e associado ao Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM).

17 de setembro de 2020, 9h05

Muito se discute acerca do ônus probatório no processo penal. Digladiam-se comentadores do Direito se incumbe a quem alega o fato o ônus de prová-lo ou se cabe exclusivamente à acusação a carga probatória de todas as circunstâncias que imputa ao acusado.

A doutrina majoritária entende que:

"Cabe provar a quem tem interesse em afirmar. A quem apresenta uma pretensão cumpre provar os fatos constitutivos; a quem fornece a exceção cumpre provar os fatos extintivos ou as condições impeditivas ou modificativas. A prova da alegação (onus probandi) incumbe a quem a fizer (CPP, artigo 156, caput). Exemplo: cabe ao Ministério Público provar a existência do fato criminoso, da sua realização pelo acusado e também a prova dos elementos subjetivos do crime (dolo ou culpa); em contrapartida, cabe ao acusado provar as causas excludentes da antijuridicidade, da culpabilidade e da punibilidade, bem como circunstâncias atenuantes da pena ou concessão de benefícios legais" [1].

Ao revés, outros argumentam que:

"A primeira parte do artigo 156 do CPP deve ser lida à luz da garantia constitucional da inocência. O dispositivo determina que 'a prova da alegação incumbirá a quem a fizer'. Mas a primeira (e principal) alegação feita é a que consta na denúncia e aponta para a autoria e a materialidade; logo, incumbe ao MP o ônus total e intransferível de provar a existência do delito. Gravíssimo erro é cometido por numerosa doutrina (e rançosa jurisprudência), ao afirmar que à defesa incumbe a prova de uma alegada excludente. Nada mais equivocado, principalmente se compreendido o dito até aqui. A carga do acusador é de provar o alegado; logo, demonstrar que alguém (autoria) praticou um crime (fato típico, ilícito e culpável). Isso significa que incumbe ao acusador provar a presença de todos os elementos que integram a tipicidade, a ilicitude e a culpabilidade e, logicamente, a inexistência das causas de justificação[2].

Ousamos discordar do posicionamento majoritário, segundo o qual nos termos do artigo 156, in initio, do Código de Processo Penal (CPP), a prova da alegação incumbirá a quem a fizer, filiando-nos aos que entendem que o ônus da prova no processo penal é integralmente do acusador.

Isso porque o entendimento literal do dispositivo supramencionado fere de morte os ditames constitucionais e convencionais, impondo-se uma interpretação conforme a Constituição.

Explica-se.

É sabido que o processo penal tem uma finalidade retrospectiva, em que, através das provas colhidas, pretende-se criar condições à atividade recognitiva do juiz acerca de um fato passado [3].

Qualquer decisão só pode se basear nas provas colhidas licitamente no decorrer do devido processo penal.

E mais: os fundamentos legitimadores das decisões são o respeito às regras do jogo democrático, em especial a imparcialidade, o embasamento em provas e a motivação das decisões.

Necessário, então, desconstruir pensamentos inquisitivos pré-Constituição de 1988, que seguem vivos e mais fortes do que nunca.

Diga-se, outrossim, que não interessa a linha criminológica defendida, o que importa é o programa constitucional imposto, de matriz garantista.

Assim, é evidente que o ônus probatório à luz da Constituição Federal é todo do acusador. E não poderia ser diferente.

O sistema acusatório adotado pela Carta Magna impõe o afastamento do magistrado, sai a figura do juiz ator e entra em cena a figura do juiz espectador [4].

O magistrado é e tem que ser um ignorante (Aury Lopes Jr.), vale dizer, ele deve ignorar os fatos, cabendo ao acusador apresentar detalhadamente os fatos imputados ao acusado e provar a autoria, a materialidade e a ausência de causas de justificação, sob pena de improcedência do pedido condenatório [5].

Ao acusado, frise-se, não cabe provar nada, todo ônus é do acusador.

Ressalte-se que cabe à acusação a prova robusta dos fatos imputados para afastar o status de inocência do acusado (Princípio da Presunção de Inocência).

A defesa pode até ser singela, contentar-se em alegar a inocência e nada mais. Mesmo assim, quem tem que provar além da dúvida razoável é a acusação, uma vez que no processo penal dúvida é certeza da inocência do acusado.

Situação interessante e que traz à tona constantes erros práticos é a da alegação de causas excludentes de antijuridicidade pelo acusado. A quem cumpre provar?

Evidentemente que cabe à acusação provar a ilicitude da conduta.

A defesa, como dito, pode apenas negar ou singelamente apontar que houve um fato que excluiria a ilicitude da conduta, sem que com isso tenha que prová-lo.

Isso porque a defesa não tem que provar nada, se alega e não prova, perde uma chance probatória de convencimento do julgador [6], entretanto não pode haver qualquer ônus, até porque no processo penal a prova da culpa além da dúvida razoável é do acusador.

Imperioso salientar que a tática corriqueira da inversão do ônus da prova é inadmissível e afronta o texto constitucional. Não é porque se alegou uma causa excludente de antijuridicidade que a defesa tem que prová-la, ao revés, cabe à acusação derrubá-la, v.g., em caso de alegação de legítima defesa, caberá à acusação provar que não houve injusta agressão ou que esta agressão não era atual ou iminente ou, ainda, demonstrar que houve excesso na legítima defesa [7].

Assim, a toda evidência, parece que o senso comum teórico dos juristas [8] foi constrangido.

Tudo que foi dito aqui é o óbvio ululante, contudo, em tempos sombrios é necessário dizer o óbvio.

Ocorre que não basta o conhecimento teórico no plano das ideias, a resposta correta tem de ser implementada na práxis.

Por isso, conclamamos a todos a lutarem pela correta aplicação do ônus probatório no processo penal. Em especial, conclamamos a advocacia a lutar por essa causa, a fim de extirpar esse e outros ranços inquisitórios do sistema penal, fazendo jus à sua indispensabilidade à administração da Justiça e a seu juramento de defesa do Estado democrático de Direito, afinal a advocacia não é "profissão de covardes".


[1] CAPEZ, Fernando. Curso de processo penal. 24. ed. São Paulo: Saraiva, 2017. p. 407.

[2] LOPES JUNIOR, Aury. Direito processual penal. 16. ed. São Paulo: Saraiva, 2017. p. 357.

[3] LOPES JUNIOR, Aury. Op. cit., p.341-359.

[4] LOPES JUNIOR, Aury. Op. cit., p.341-359.

[5] LOPES JUNIOR, Aury. Op. cit., p.341-359.

[6] LOPES JUNIOR, Aury. Op. cit., p.341-359.

[7] Não se trata de prova de fato negativo, uma vez que cabe à acusação demonstrar positivamente elementos que afastem a incidência da excludente alegada. Para maior aprofundamento, vide: LOPES JUNIOR, Aury. Op. cit., p. 355-359.

[8] STRECK, Lenio Luiz. Dicionário de hermenêutica: quarenta temas fundamentais da Teoria do Direito à luz da Crítica Hermenêutica do Direito. Belo Horizonte: Letramento: Casa do Direito, 2017.

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    é advogado em São Paulo, especialista em Direito Penal e Processo Penal pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, membro voluntário do Instituto Pro Bono (IPB) e associado ao Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM).

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