Escritos de Mulher

Negros e Justiça, palavras rivais?

Autores

  • Juliana Souza

    é advogada ativista antirracista pós graduada em Direitos Fundamentais e Processo Constitucional (IBCCRIM/Universidade de Coimbra); mestranda do Diversitas/USP e pesquisadora do NAPPLAC da FAU/USP; vice-presidente da Comissão Estadual da Jovem Advocacia da OAB/SP.

  • Camila Torres Cesar

    é advogada criminalista membro da Comissão de Igualdade Racial da OAB-SP e mestranda em Direito Político e Econômico pelo Mackenzie-SP.

16 de setembro de 2020, 10h05

Antes que o leitor se debruce sobre este texto, quero fazer um escurecimento por questões de ética e justiça: somos mulheres, somos negras e também advogadas. Afirmamos isso porque essas condições, que nos fazem ser quem somos, certamente poderão impactar a maneira como vemos os fatos.

Spacca
A realidade é que não queremos ser imparciais.

Mês passado uma sentença proferida pela juíza Inês Zarpelon, da 1ª Vara Criminal de Curitiba, ganhou notoriedade e provocou reações da sociedade, da mídia e do poder público.

Ao sentenciar um processo envolvendo vários acusados, ela apontou a raça de um deles, que é negro e sem antecedentes criminais, como critério para aumento de pena.

Em um dos trechos mais divulgados, ela diz "sobre sua conduta social nada se sabe. Seguramente integrante do grupo criminoso, em razão da sua raça, agia de forma extremamente discreta os delitos e o seu comportamento, juntamente com os demais, causavam o desassossego e a desesperança da população, pelo que deve ser valorada negativamente".

Spacca
Após a repercussão negativa de suas palavras e das notas de repúdio recebidas, a juíza emitiu nota de desculpas e disse que frase foi "tirada de contexto". Os fatos serão apurados em procedimento administrativo por determinação do CNJ (Conselho Nacional de Justiça) para determinar se a conduta da juíza infringe os deveres dos magistrados estabelecidos na Loman (Lei Orgânica da Magistratura) e no Código de Ética da Magistratura e se é passível de punição.

Esse episódio foi um gatilho imediato para rememorar algo que aconteceu há pouco menos de dois anos, mais precisamente no dia 10 de setembro de 2018, data em que a colega Valeria Lucia dos Santos foi indevidamente algemada e presa por determinação da juíza leiga que presidia uma audiência de conciliação no 3º Juizado Especial Cível de Duque de Caxias (RJ). (Re)Experimentamos, e acreditamos que não sozinhas, diversas sensações, e ainda que com desconforto fora feito o rotineiro esforço esforço para racionalizar e não esquecer.

Depois, a velha constatação: o sistema de Justiça reproduz e perpetua violências institucionais de lastro racial.

A advocacia não é rival de quem quer que seja e, assim como os demais atores do Judiciário, está desempenhando seu papel, como porta-voz de alguém que lhe outorgou tal missão. Mais do que isso, ela exige o cumprimento das leis, purga pelo exercício de direitos e, se preciso, denuncia arbitrariedades. O trabalho da advocacia se reverte não apenas em favor do seu cliente, mas de toda a sociedade, pois ajuda a preservar o Estado democrático de Direito nos moldes constitucionais.

Talvez por isso o Estatuto da OAB garanta que o(a) advogado(a) só pode ser preso em flagrante, por motivo de exercício da profissão, em caso de crime inafiançável e sempre com a presença de um representante da OAB (artigo 6º, IV, e §3º, Lei 8.906/94).

Assim, quando uma defensora se desentende com o conciliador acerca do trâmite da audiência, deixa a sala em busca do representante da OAB e, por sua insistência para retomar o ato precocemente encerrado, é algemada e conduzida para fora da sala, na presença de outros colegas, constata-se que algo está muito errado.

Em primeiro lugar porque eventual crime de desacato ou desobediência (ambos de menor potencial ofensivo) que se pudesse (?) enxergar em sua atitude não justificaria ordem de prisão, muito menos uso de algemas que, para quem quer que seja, só caberia na hipótese de risco de fuga ou risco à integridade física da pessoa ou terceiros, nos termos da Súmula Vinculante nº 11 do Supremo Tribunal Federal.

Além disso, a profissional que tentava exercer seu ofício estava na presença de seus pares, que, pelo que se teve notícia, nada fizeram para impedir a violação de suas prerrogativas. A falta de apoio de pares em um momento tão arbitrário leva a refletir se não estamos nos calando quando devemos bradar.

Advogar é muitas vezes travar batalhas solitárias, por vezes estar do lado mais vulnerável e exposto, mas, ainda assim, posicionar-se, indignar-se. Quando a advocacia é tolhida, quando a defesa é cerceada, todos nós somos silenciados.

Como já adiantamos, nossa condição não nos permite afastar a constatação de que, além de um colega com prerrogativas violadas, estava ali uma mulher negra com direitos assolapados.

Episódios como esse fazem recordar que ser mulher e negra é portar, como comprovam os dados, condição menos favorável. Por mais que se estude igual, se trabalhe igual, é doloroso saber que ainda estamos sujeitas a ser a pessoa mais vulnerável da sala ou aquela que será questionada, ainda que de forma não verbal, sobre sua capacidade ou direito de estar ali.

Essa situação novamente nos explicitou a necessidade da abertura do diálogo e da implementação de ações concretas para a efetiva igualdade racial, vez que o cenário atual é gritante em nosso país e mundo afora.

Todas as pessoas, especialmente as não negras, temos um papel central na construção de um ambiente mais igualitário. Reconhecer o problema é essencial para que possamos tratá-lo.

A decisão da juíza ou o tratamento desrespeitoso dispensado à colega Valéria não são exceção ou caso isolado.

O racismo e suas representações são construídos através de ideologias, atitudes, práticas e processos sociais. No imaginário social brasileiro, negros são potencialmente mais perigosos e criminosos do que branco[1], o que vai resultar em maior número de abordagens policiais (com ou sem morte), presunção de culpa em processos e penas mais altas. Não é de hoje que defensores públicos, advogados e entidades de direitos humanos denunciam a seletividade do sistema penal, que se reflete diretamente no perfil da população carcerária.

O fator raça está sempre presente, nesse caso a julgadora "apenas" documentou seu impacto para cálculo de pena. Como diz Adilson Moreira, a aparente neutralidade do discurso não elimina o racismo contido em muitas decisões judiciais. Nesse sentido, de acordo com pesquisa paulista, negros são os mais condenados por tráfico e com menos drogas apreendidas, estudo que analisou quatro mil sentenças de 2017; a maioria das apreensões é inferior a 100g e 84% dos processos tiveram testemunho exclusivo da polícia [2].

Não existe contexto admissível para utilizar o critério raça em uma sentença penal. Pessoas antirracistas devem estar dispostas a impactar seu próprio cotidiano para aliar discurso e prática. Não é benesse, caridade ou favorecimento, mas tão somente um dever civilizatório!

Autores

  • é advogada, ativista antirracista, pós graduada em Direitos Fundamentais e Processo Constitucional (IBCCRIM/Universidade de Coimbra); mestranda do Diversitas/USP e pesquisadora do NAPPLAC da FAU/USP; vice-presidente da Comissão Estadual da Jovem Advocacia da OAB/SP.

  • é advogada criminalista, membro da Comissão de Igualdade Racial da OAB-SP e mestranda em Direito Político e Econômico pelo Mackenzie-SP.

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