Tribuna da Defensoria

O mito da justiça penal igualitária no Brasil

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15 de setembro de 2020, 8h00

É cediço que, dentre os elementos estruturantes do Estado Democrático de Direito, encontra-se o princípio constitucional da igualdade. A lei penal deve, em respeito ao referido princípio, regular os interesses coletivos e ser construída e aplicada de forma isonômica. O distanciamento dessas premissas fere os vetores democráticos e origina um Direito Penal seletivo, utilizado indevidamente como forma de controle social e manutenção de privilégios de parcela da sociedade, e implica a criação de uma miríade de externalidades negativas, tais como a “cultura do medo”. O presente artigo serve de reflexão sobre a (in)existência de uma justiça penal seletiva no Brasil.

Estudos promovidos pela Defensoria Pública concluíram que 80% dos presos em flagrante no Estado do Rio de Janeiro são negros/pardos[1]. A população carcerária brasileira é formada 63,6% por negros/pardos. Os detentos apresentam baixo nível de escolaridade: 51,3 % não concluíram sequer o ensino fundamental, 14,9% fizeram o ensino médio e apenas 0,5% dos presos possuem ensino superior completo[2].

O mapeamento dos presos no Brasil demonstra empiricamente a existência de um Direito Penal seletivo e estigmatizante, cujas diferenças de tratamento se fazem presentes ao longo de toda a cadeia de formação e atuação da justiça penal, vale dizer: criação e aplicação desigual das leis.

A relação entre direito penal e desigualdades sociais não tem, entretanto, delimitação temporal ao mundo contemporâneo, nem tampouco restrição espacial à realidade brasileira. Rusche e Kirchheimer, fazendo um apanhado histórico sobre a  existência de uma justiça penal seletiva, são enfáticos em afirmarem que a legislação na Baixa Idade Média atingia diretamente os estratos sociais subalternos e que os Estados Absolutistas caracterizavam-se pelo uso arbitrário do poder punitivo, bem como demostram que os ideias iluministas também não conseguiram implementar uma igualdade material no sistema da justiça penal existente à época[3].

Quando em vigor a criminologia positivista, mais precisamente em 1939, Surtherland criou a modalidade criminológica intitulada white-collar crime. Seu objetivo era demonstrar que nenhuma das teorias anteriores à associação diferencial foi capaz de explicar a criminalidade dos poderosos e, portanto, não eram aptas a explicar o crime, mas seus estudos acabaram por apontar a possibilidade de uma desigualdade na justiça penal. Na década de sessenta do século passado, a criminologia experimentou fortes mudanças oriundas de um câmbio paradigmático ordenado pelos estudiosos da criminologia crítica. Afastaram-se as concepções etiológico-deterministas reinantes nas escolas positivas e enfatizou-se o papel das instâncias formais de controle, elevadas a categoria de fatores criminógenos. O marco desse novo enfoque foi o labelling approach, que foi sucedido, no final dos anos sessenta e na década de setenta, pela criminologia radical, de cariz marxista, que veicula a criminalidade às desiguildades sociais oriundas do sistema capitalista[4]. No final dos anos oitenta, alvoreceu a criminologia estrutural que, partindo da concepção "de que o crime pressupõe uma relação de poder, defende o estudo das relações estruturais verticais em que ele se manifesta"[5].

É certo que atualmente a legislação abrange também crimes cometidos pelos estratos mais elevados da sociedade, a exemplo da corrupção, crimes informáticos, crimes de trafico de influência e crimes ambientais. Existem ainda denúncias e até mesmo sentenças condenatórias em desfavor do alto escalão da sociedade brasileira, mas ainda assim continua a existir uma discrepância desproporcional entre os ricos e os pobres, conforme evidenciam as estatísticas oficiais acima apontadas. Diante da impossibilidade de se analisar todo o ordenamento jurídico brasileiro, optou-se por elencar ao longo desse artigo alguns exemplos paradigmáticos.

A decisão legislativa na escolha das condutas a serem taxadas como crimes e no estabelecimento das sanções que serão aplicáveis retratam que os socialmente desfavorecidos são tratados com bem mais rigor pela lei penal. A imensa maioria dos tipos penais previstos na legislação brasileira descreve condutas praticadas pelos estratos sociais mais desfavorecidos e, desta feita, pode-se afirmar que a escolha do legislador condiciona quem exercerá o papel de delinquente. Impende registrar que não se trata de oposição à criminalização de condutas nocivas à convivência social harmônica e lesiva de bens jurídicos de indiscutível importância. O que se critica é o tratamento desigual, haja vista que condutas também perturbadoras da paz pública, mas cometidas pelas camadas economicamente privilegiadas da sociedade não são taxadas como delituosas e, quando o são, não há a incidência de uma Justiça Penal tão estigmatizante[6].

Por outro lado, também importante frisar que não se defende a criminalização generalizada das condutas desviadas cometidas pelos favorecidos socioeconomicamente. Ao revés, o que se pretende é que haja a descriminalização de condutas que não merecem ser abarcadas pelo direito penal. Sabe-se que sua incidência deve ser restrita a situações extremas, que não possam ser suportadas pelos outros ramos do Direito. E assim pretende-se que o seja para todas as classes sociais. Objetiva-se que os problemas sociais sejam encarados como tais e não que sejam camuflados sob a tipificação de condutas delituosas. Nesse sentido, salutar a revogação da contravenção de mendicância, que vergonhosamente integrou o ordenamento brasileiro até o ano de 2009. Todavia, ainda permanece formalmente em vigor a famigerada contravenção de vadiagem (artigo 59 da LCP), que apenas se caracateriza quando o agente não dispõe de meios para prover sua subsistência. Dito de outro modo, o rico que não não trabalha, vive de rendas para as quais não contribuiu em sua constituição (muitas vezes herdadas ou recebidas por um golpe de alea), é ignorado pelo direito penal, ao passo que o pobre que não possui emprego (muitas vezes, por falta de oportunidade!), é contraventor. Os vetores democráticos agem de acordo com a vontade da maioria, mas isso não pode implicar transgressão à dignidade humana de um determinado grupo social.

Questionável, outrossim, é a conduta do legislador de conceder direito à prisão especial (artigo 295 do CPP), quando presos preventivamente (o que corresponde a 31% da população carcerária brasileira[7]), a algumas pessoas em detrimento de outras. Ao analisar-se o rol dos beneficiados, facilmente se visualiza que são os menos favorecidos, mais uma vez, os alvos de um tratamento mais rígido. Os presos ditos especiais não podem mesmo nem ser transportados juntos com os presos ditos comuns. Dentre os beneficiários da regra de exceção, constam os portadores de diploma em curso superior, que correndem a um ínfimo percentual dos detentos, caracterizada pelo já referido baixo nível de escolaridade. A norma que prevê a prisão especial retroalimenta, destarte, as injustiças sociais e consubstancia evidência do mito da igualdade da lei penal brasileira.

O legislador brasileiro selecionou um conjunto de delitos e os tipificou como hediondos. Os crimes assim etiquetados sofrem um tratamento bem mais rígido ao longo de toda a persecução penal. Observa-se que a imensa maioria dos crimes elencados no rol dos hediondos correspondem à criminalidade comum, o que atesta que o sistema penal age de forma seletiva em face da conflituosidade social. Já houve várias tentativas inexitosas de enquadrar o crime de corrupção na lista dos hediondos. A Lei 13.964 (conhecida como Pacote Anticrime) fez alterações na Lei 8072/90 (Lei dos Crimes Hediondos) e classificou até mesmo o delito de furto qualificado pelo emprego de explosivo ou de artefato análogo que cause perigo comum (artigo 155, § 4º-A) como hediondo, mas, mais uma vez, escamoteou-se dessa seleção os crimes usualmente cometidos pelos economicamente mais privilegiados .

Justifica-se que a taxação como hediondo tem ligação com a gravidade do delito, todavia, como já dito anteriormente, não se pode olvidar a danosidade social operada pelos crimes de corrupção. Nesse sentido, "A criminalidade politica e econômica dos detentores do poder ficam imunes, embora representem, em quase sua totalidade, a origem dos graves desacertos sociais contemporâneos"[8].

Após o advento do Pacote Anticrime, o crime de estelionato procede-se, como regra, mediante ação penal pública condicionada (artigo 171, §5° do CP). O fundamento para tal mudança foi a disponibilidade do interesse envolvido (patrimônio). Defende-se, que esta modificação deveria ter sido mais ampla e incluído os demais crimes patrimoniais cometidos sem violência ou grave ameaça. Resta o questionamento se o tratamento dissonante não seria mais uma demonstração da seletividade penal, haja vista que comumente existem diferenças sociais entre um estelionatário e um furtador[9].

É importante pontuar que o princípio da legalidade serve como indício de legitimidade, na medida em que se considera como Estado de Direito aquele que é regido por leis e os legisladores, por serem legítimos representantes do povo, criam as leis baseados na soberania popular e no respeito às diretrizes do ordenamento jurídico. Não se pode aceitar, todavia, que o mero respeito ao processo de elaboração da lei sirva como pretexto para se considerar legítima uma determinada tipicidade penal. Respeitado o aspecto formal do princípio da legalidade, vale dizer, obediência ao procedimento legislativo, pode-se afirmar que estamos perante uma lei válida. Impõe-se, entretanto, para que esta mesma lei atinja o patamar de legítima, que seja efetivamente confeccionada em consonância com o arcabouço axiológico vigente na sociedade na qual será aplicada. Afinal, o Brasil é (ao menos na previsão constitucional) um Estado Democrático de Direito e, para que esse título não seja mera letra da Constituição Federal, é necessário que as leis reflitam não apenas a vontade de da maioria, mas também respeitem as individualidades, direitos das minorias e, portanto, sejam materialmente isonômicas.

A Justiça Penal atua desigualmente não apenas na criminalização primária, o impacto do tratamento destoante pode ser auferido também na criminalização secundária, o que é refletido na atuação dos agentes públicos e perceptível em todas as fases da persecução penal.

A igualdade da lei penal, quer na sua confecção ou aplicação, constitui um ideal do sistema jurídico consubstanciado em um verdadeiro mito no contexto do ordenamento brasileiro, cujo descortinamento e crítica constituem pressuposto essencial para o resgate de um direito penal condizente com um Estado Democrático de Direito.

REFERÊNCIAS
BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal: introdução à sociologia do direito penal. 6. ed. 2 reimp. Traduzido por Juarez Cirino dos Santos. Rio de Janeiro: Revan, 2014

CONJUR. 8 em cada 10 presos no Rio são negros, diz estudo da Defensoria. Disponível em https://www.conjur.com.br/2020-ago-05/cada-10-presos-flagrante-rio-sao-negros-estudo, acesso em: 11/08/2020.

DEPEN (Departamento Penitenciário Nacional). Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias, atulizado em junho de 2017, disponível em: http://depen.gov.br/DEPEN/depen/sisdepen/infopen, acesso em 11/08/2020

GUIMARÃES, Claudio Alberto Gabriel. Constituição, Ministério Público e Direito Penal: a defesa do estado democrático no âmbito punitivo. Rio de Janeiro: Editora Revan, 2010

RUSCHE, Georg; KIRCHHEIMER, Georg. Punição e estrutura social. 2 ed. Traduzido por Gizlene Neder. Rio de Janeiro: Editora Revan, 2004

SANTOS, Cláudia Maria Cruz. O crime de colarinho branco (Da origem do conceito e sua relevância criminológica à questão da desigualdade na administração da justiça penal). Coimbra: Coimbra Editora, 2001.

SHECARIA, Sérgio Salomão. Criminologia. 6. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2014


[1] Disponível em https://www.conjur.com.br/2020-ago-05/cada-10-presos-flagrante-rio-sao-negros-estudo, acesso em: 11/08/2020.

[2] Os dados constam do relatório do Depen (Departamento Penitenciário Nacional), atulizado em junho de 2017, disponível em: http://depen.gov.br/DEPEN/depen/sisdepen/infopen, acesso em 11/08/2020. Os relatórios dos anos posteriores não trazem a distribuição dos presos por etnia/cor e grau de escolaridade.

[3] RUSCHE, Georg; KIRCHHEIMER, Georg. Punição e estrutura social. 2 ed. Traduzido por Gizlene Neder. Rio de Janeiro: Editora Revan, 2004, p., 36-37, 115, 122.

[4] SHECARIA, Sérgio Salomão. Criminologia. 6. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2014, p. 289.

[5] SANTOS, Cláudia Maria Cruz. O crime de colarinho branco ( Da origem do conceito e sua relevância criminológica à questão da desigualdade na administração da justiça penal). Coimbra: Coimbra Editora, 2001, p. 212.

[6] BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal: introdução à sociologia do direito penal. 6. ed. 2 reimp. Traduzido por Juarez Cirino dos Santos. Rio de Janeiro: Revan, 2014, p.176.

[7] O dado consta do último relatório do DEPEN (Departamento Penitenciário Nacional), disponível aqui.

[8] GUIMARÃES, Claudio Alberto Gabriel. Constituição, Ministério Público e Direito Penal: a defesa do estado democrático no âmbito punitivo. Rio de Janeiro: Editora Revan, 2010, p. 38.

[9] Por lealdade ao debate, é preciso fincar que existem vozes a sustentar que a modificação seria restrita ao crime de estelionato por questões de política criminal, com o intutito de de evitar a sobrevitimização, haja vista que, nesse delito, as vítimas temem serem julgadas como gananciosas ou ingênuas.

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