Opinião

O reformismo tributário no afogadilho da pandemia

Autores

  • Onofre Alves Batista Júnior

    é pos-doutorando em Democracia e Direitos Humanos pela Universidade de Coimbra (Portugal) doutor em Direito Público pela Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) mestre em Ciências Jurídico-Políticas pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (Portugal) professor associado do Quadro Permanente da Graduação Mestrado e Doutorado da UFMG e sócio-conselheiro do Coimbra Chaves & Batista Advogados.

  • Marina Soares Marinho

    é sócia do Coimbra & Chaves Advogados professora de Direito Tributário e Financeiro da UFMG e da IEC/PUC/MG doutoranda e mestre em Direito Tributário pela UFMG.

15 de setembro de 2020, 16h52

Não restam dúvidas de que o complexo e disfuncional sistema tributário brasileiro merece ser reformado. Porém, atacar os efeitos [complexidade] sem tratar as suas causas [desequilíbrio federativo e regressividade na contribuição], pode promover mudanças equivocadas. Gera preocupações a forma pela qual as coisas estão avançando e a omissão quanto a pontos essenciais das alternativas apresentadas. Algumas delas são sedutoras, mas podem se dissolver em contato com a realidade; outras são verdadeiramente desajustadas.

A população, em tempos de grave crise econômica, acaba abraçando qualquer tábua de salvação; acabam entrando em qualquer bonde que pare na estação. Entretanto, reforma tributária não se faz assim. Os resultados podem ser catastróficos!

Antes de tudo, uma premissa se faz necessária para qualquer discussão de reforma, como já recomendava Paul Kirchhof:[1] não se deve aumentar nem diminuir a carga tributária final. Apenas um rearranjo nos tributos, revisão das incidências e nas materialidades atingidas é que deve ser feito, para que se possa evitar o oportunismo e a busca por interesses particularizados. Tão somente a busca por eficiência e por justiça deve existir e prevalecer. Em segundo lugar, a simplificação é recomendável, porque o tributo, tendencialmente, se torna mais complexo com o passar dos tempos.

Uma reforma bem conduzida pode, por exemplo, reduzir a carga incidente sobre o consumo (ou sobre a folha de pagamentos), fazendo pesar mais a incidência sobre a renda (ou sobre as heranças). Mas tudo isso sem aumentar a carga tributária final. Trata-se de um exercício de "tira daqui e põe ali". O Direito Tributário envolve tantos interesses antagônicos e dispares que não se pode perder o foco, ainda mais em um país onde sabidamente tributa-se mais o consumo (principal base de arrecadação de estados e nunicípios) que a renda e o patrimônio.

A simplificação, em geral, atende ao intuito de obter eficiência na tributação, bem como de redução nos custos para operacionalizar o pagamento de tributos. Por isso, muitas vezes, pode ser mais importante eliminar inúteis e caras obrigações acessórias do que tratar das matrizes de incidência. Ainda que as propostas em discussão impactem na quantidade existente de obrigações acessórias, parcela dessa burocracia não responde apenas à complexidade do ordenamento jurídico, mas à estrutura e aos procedimentos da própria fiscalização.

Por outro giro, as discussões não podem descurar da ideia de justiça fiscal, em sentido amplo. A Constituição não deixa espaço para dúvidas: a carga tributária deve ser progressiva, ou seja, não pode onerar de forma mais gravosa os mais pobres. É por isso que o peso dos tributos sobre o consumo (que predominam no Brasil) é tão criticado. Imagine que quem ganha mil reais consome mil reais, devendo pagar tributo sobre o consumo sobre toda sua renda, entregando valores que poderiam fazer face a uma vida mais digna. Quem ganha cem mil, por exemplo, pode consumir quarenta e poupar o resto. Esse montante que sobra não sofre a incidência dos tributos sobre o consumo e pode ser investido, fazendo a concentração de riquezas se agigantar. Se a capacidade econômica objetiva (capacidade de contribuir) é pressuposto para a tributação, está-se diante de verdadeiro confisco da renda dos mais pobres. E embora essa conclusão seja patente, não é fundamento das principais reformas discutidas: quando muito, relega-se à legislação complementar dispor sobre a compensação daqueles que não disponham de capacidade econômica [e a Lei Kandir ensina valiosa lição sobre omissão regulamentar e promessas vazias, que não devemos repetir].

Em uma federação, as propostas reformistas precisam enfrentar um complicador adicional. O equilíbrio da federação não pode ser abalado. O poder tende a se concentrar na União, razão pela qual o princípio federativo, servindo de contrapeso a essa tendência, deve ser tomado como dogma. O poder centralizado em Brasília despedaça a democracia e a separação vertical dos poderes é o mecanismo que, em um país continental, serve para prevenir abusos e afastar a tirania. Como advertia John Emerich Dalberg-Acton, "o poder corrompe; o poder absoluto corrompe absolutamente."[2]

 Em um Estado federal, não basta garantir a receita tributária de cada ente, mas o poder de tributar precisa ser mantido e compartilhado. Assim, reformas que tão somente garantam um determinado fluxo de recursos, mas que minem o poder de tributar dos entes federados, provocam uma minimização da autonomia dos Estados e Municípios e, por isso, são inconstitucionais. Afinal, vale repetir, o projeto democrático-descentralizador firmado pela Constituição de 1988 coloca o federalismo como princípio fundante, razão pela qual é cláusula pétrea da CRFB/1988, não podendo ser arranhado por propostas de reforma. Novamente, a história das reformas tributárias no país (grandes ou pequenas) recomenda cautela aos entes menores diante da possibilidade de concentração de mais poder, qualquer que ele seja, na União. A pandemia escancarou que, atualmente, as relações verticais travadas entre os entes federados são mais de competição do que de cooperação. Reforma é projeto nacional, exige confiança, o que falta em âmbito fiscal no Brasil.[3]

Essas são as discussões que precisam ser travadas em um processo reformista, que, por isso, precisa ser muito refletido e gradual. Por essa razão é que não se deve discutir reforma tributária no afogadilho, sob o influxo de pressões existentes em situações conjunturais negativas, mas passageiras!  O poder de tributar é, sem dúvida alguma, o poder de destruir, como já enunciava, em 1819, o presidente da Suprema Corte norte-americana John Marshall. Assim, em momentos de grave convulsão social e de crise aguda não se deve tocar no texto constitucional, sobretudo quando em jogo assuntos tão delicados como a tributação. Abre-se margem para golpes graves e fatais ao Estado de Direito.

Repisamos: não se discute a necessidade de reforma tributária. Alertamos, porém, que os cuidados nessa seara devem ser enormes. Os resultados de propostas atabalhoadas podem ser danosos e irreversíveis, especialmente diante de um contexto de forte crise, cujos efeitos ainda não são plenamente conhecidos. O reformismo entorpece e os cidadãos que aspiram segurança jurídica, muitas vezes em desespero, correm o risco de tomar o bonde errado. É consabido que uma caminhada de mil léguas começa pelo primeiro passo, como dizem os chineses. Provavelmente, após a fome coletiva de Mao, os mais sofridos deveriam adicionar a frase: "no sentido correto". Evidentemente, um passo no sentido errado pode nos fazer ter de dar 1.001 passos na direção correta.

A CRFB/1988, estabelece, em seu artigo 60, § 1º, que o texto constitucional não pode ser emendado na vigência de intervenção federal, de estado de defesa ou de estado de sítio. Por outro giro, o artigo 136 determina que o Presidente, ouvidos o Conselho da República e o Conselho de Defesa Nacional, pode decretar estado de defesa para preservar ou prontamente restabelecer, em locais restritos e determinados, a ordem pública ou a paz social ameaçadas por grave e iminente instabilidade institucional ou atingidas por calamidades de grandes proporções na natureza.

Não restam dúvidas no sentido de que estamos, nessa pandemia ocasionada pelo mortífero vírus, enfrentando uma calamidade grave e de grandes proporções. Esse, indubitavelmente, está sendo um dos graves desafios dessa geração. Nesse compasso, é que o Governo propôs e o Senado Federal confirmou o decreto de calamidade, no dia 20 de março (Decreto Legislativo nº 6/2020).

Nesse sentido, o artigo 60, §1º, interpretado teleologicamente, como requer a boa hermenêutica, afasta a possibilidade de emendas constitucionais em um momento de grave calamidade, como agora. Reformas estruturais, não podem ser guiadas pela aflição do momento. Mais do que isso, ainda não são plenamente conhecidos os efeitos que a pandemia promoverá sobre a economia e mesmo sobre a relações sociais. Não é possível ignorar que a tributação possui funções além da arrecadatória e, diante da falência de muitas empresas, do altíssimo desemprego, da modificação dos padrões de consumo, do aumento da demanda por serviços essenciais, dentre muitos fatores que ainda precisaremos considerar, a tributação terá que se adaptar para ajudar na reconstrução da sociedade. Também por isso devem ser afastados os movimentos reformistas em momentos de crise aguda, onde imperam impulsos imediatistas e onde, sobretudo, borbulham interesses particularizados. Vivemos um momento em que o futuro breve é ainda incerto e discutimos propostas de reformas formuladas bem antes de a calamidade pública de hoje ser conhecida. Como explica Misabel Derzi, tanto a simplificação quanto a complexidade podem gerar segurança jurídica — e em momentos de crise, a complexidade pode se tornar defensável pelas mesmas pessoas que em outros tempos a criticavam.

Reforma tributária não se faz sob o influxo das aflições do momento. Não se deve reformar os alicerces do estado tributário em momentos nos quais o erário passa por carências financeiras emergenciais. Os contribuintes, sedentos por reformas, ao apoiarem o reformismo do momento, poder estar andando léguas na direção errada.

Como já dizia o mestre Geraldo Ataliba, "tributo bom é tributo velho". Essas palavras são sabias, porque a complexidade do sistema tributário é tendencial. O direito tributário está sujeito à legalidade estrita e reforçada, por razões de segurança jurídica e para frear arroubos arrecadatórios do Estado. Por isso, a cada problema concreto que surge e a cada divergência de entendimentos não pacificada pelo Judiciário, a legislação costuma ser alterada para suprir aquela deficiência. Da mesma forma, benefícios são concedidos em virtude de pressões políticas. Assim é que o arcabouço jurídico vai se tornando complexo. As complexidades sempre surgem a posteriori. Por outro giro, reformas estruturais que não ataquem problemas estruturais não podem ser tomadas como simplificadoras.

Termos polissêmicos vão tendo seu entendimento consolidado ao longo dos anos pelos tribunais. O Judiciário tem seus necessários ritos, por isso é mais lento até do que o processo legislativo de feitura de leis. Foi assim que tributos inicialmente nem tão complexos, como o PIS/Cofins, foram sendo alterados e, também por isso, o Judiciário foi sedimentando sua compreensão sobre eles. Basta ver os recentes julgamentos que excluíram o ICMS da sua base de cálculo e os muitos que até hoje discutem, ao fim e ao cabo, o conceito de faturamento. Por isso, não se pode perder de vista que a segurança jurídica almejada muitas vezes só é atingida quando a interpretação das normas tributárias se pacifica nos tribunais. Ai sim, podem os contribuintes alinhar seus procedimentos e reconhecer quanto deve ser pago. Os precedentes são um retrato do desenvolvimento da interpretação de conceitos que seguirão sendo utilizados. Uma proposta de reforma tributária pode agitar ou sujar a água, fazendo recomeçar todo o processo gerador de insegurança. Apenas anos depois é que a jurisprudência vai se consolidar e dar segurança. Pior é que não faltam os projetistas de ideias disruptivas. Aí está o maior perigo, porque essas propostas podem gerar graves desequilíbrios. O reformismo impensado acaba sendo o cavalo de Troia do sistema tributário.

Por que se corre tanto com a Reforma e por que se iniciou com a tal CBS que tão somente unifica o PIS e a Cofins? A verdade é que não se quer resolver os problemas de eficiência e justiça do sistema tributário, mas tão somente compensar as derrotas sofridas nos tribunais e a perda de receita decorrente. O contribuinte, assim, com a reforma, ganha nos tribunais, mas não leva! A tributação era indevida e a proposta quer compensar uma receita que não deveria existir!

 Afinal, é evidente que o momento não é adequado para se discutir reforma tributária! É evidente que propostas disruptivas podem conduzir o país ao caos! reforma tributária, quase sempre, aumenta carga tributária: a história comprova.

Parece claro que as mudanças devem ser pontuais e graduais, ao menos até que se tenha um projeto amplo, que analise holisticamente a situação fiscal do país e se proponha a resolver outros dois problemas além da complexidade: a harmonização federativa e a regressividade da tributação brasileira (como um todo, e não apenas do consumo). É evidente que obrigações acessórias desarrazoadas e desnecessárias precisam ser eliminadas; é evidente que regimes tributários dispares devem ser unificados; é claro que privilégios inexplicáveis e contrários aos interesses públicos devem ser evitados etc. As distorções devem ser corrigidas com movimentos cirúrgicos pontuais e bem refletidos. Sobretudo, é preciso ter calma e cautela, porque temos pressa.

[1] Disponível em: <http://www.jura.uni-heidelberg.de/kirchhof/forschung/index.html>.

[2] Como já reza a lenda Viking: “o poder é sempre perigoso; atrai o pior e corrompe o melhor”.

[3] Basta verificar quantos são os processos em trâmite no Supremo Tribunal Federal envolvendo Estados e União e que discutem desde fórmulas de cálculo de dívidas até a transparência no fornecimento de dados de arrecadação de tributação partilhada

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  • Brave

    é sócio consultor do escritório Coimbra & Chaves Advogados, professor associado de Direito Público da graduação e pós-graduação da UFMG, pós-doutor em Democracia e Direitos Humanos pela Universidade de Coimbra, doutor em Direito pela UFMG e mestre em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Lisboa.

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    é mestre e doutoranda em Direito pela UFMG.

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