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Pedro Monteiro: A confissão no acordo de não persecução penal

14 de setembro de 2020, 19h24

Por Pedro Monteiro

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Como se sabe, o acordo de não persecução penal veio ao ordenamento jurídico brasileiro como mais um instituto despenalizador, apresentando-se em uma ampliação da chamada justiça penal negociada no processo penal, acompanhado de outros institutos já previstos na legislação, como a transação penal, suspensão condicional do processo e a colaboração premiada.

Mas é preciso refletir e decidir qual postura todos nós, operadores do direito, adotaremos com o "novo" acordo de não persecução penal. Afinal, seu impacto em nosso ordenamento jurídico é gigantesco, abrangendo a possibilidade de sua aplicação em mais de 70% dos crimes previstos na legislação penal.

É dito isso pelo simples motivo: como se não bastasse que os demais institutos despenalizadores, como a transação penal e a suspensão condicional do processo, fossem impostos no jogo processual de forma extremamente unilateral, ou seja, praticamente obrigando o acusado a aceitar os termos propostos de forma totalmente impositiva, sem margem para discussão (cultura que deve ser mudada com a expansão da justiça negocial), nos deparamos com a exigência do requisito da confissão para a possibilidade de formalização e homologação do acordo de não persecução penal. Grave erro!

Um dos maiores motivos para quem filia-se a corrente contrária da evolução e ampliação da justiça penal consensual em nosso ordenamento é justamente pelo fato de que estaríamos adentrando em dissonância com os direitos fundamentais e com as garantias constitucionais, servindo essas supostas violações como propulsoras da relativização destes direitos, o que afrontaria o Estado democrático de Direito.

Nesse sentido, Vinícius Gomes já elencava algumas críticas aos direitos e garantias que eventualmente seriam violados com a justiça penal negociada, entre eles, a violação do direito ao silêncio. "Para tanto, importante mencionar as principais críticas perfilhadas em torno da justiça negociada, como os possíveis abusos praticados pelos órgãos acusatórios, a desjudicialização do conflito, a violação do direito ao silêncio, da presunção do estado de inocência, da verdade real e o desequilíbrio da balança entre os atores processuais."[1]

De forma complementar Rodríguez Cabezudo, "pode-se destacar como crítica a justiça penal negociada, a potencialização da confissão como a 'rainha das provas' e fundamento único para uma condenação. Entretanto, apesar de ambas possuírem semelhanças, como o não exercício de um direito processual, e o reconhecimento em favor da parte adversa, na confissão o acusado tem conhecimento e aceitação dos fatos, mas não necessariamente quanto às consequências jurídicas. Na justiça negociada, a admissão da culpa não é elemento essencial, caracterizando-se pelo livre acordo de vontade quanto a determinadas respostas legais ao que foi imputado. [2]

Ou seja, a partir do momento em que um dos institutos despenalizadores tem como requisito a confissão do acusado, não estamos apenas relativizando os direitos fundamentais e garantias constitucionais (o que estaria dentro da normalidade, pois estão sendo relativizados em detrimentos da observância de outros direitos e garantias no caso concreto), estamos suprimindo, sem chance de substituição destes respectivos direitos para conservar o Estado democrático de Direito. Vejamos:

Quando tratamos de acordo de não persecução penal, em regra, sequer há a persecução penal no momento da proposta. O procedimento se encontra em uma fase pré-processual. Então, se nos encontramos em uma fase pré-processual, onde não há nenhuma análise do mérito para que o acordo de não persecução penal seja realizado, qual a relevância da confissão para a homologação do acordo de forma posterior pelo juízo competente?

Há uma flagrante ilegalidade diante de tal exigência do referido requisito previsto no artigo 28-A CPP, sendo de suma importância frisar aqui a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, aprovada em 22.11.1969, em São José da Costa Rica, com a garantia prevista no artigo 8º, §2º, g, que foi recepcionada pela CRFB/1988 no artigo 5º §2º, vejamos:

“Artigo 8º. Garantias Judiciais 2. Toda pessoa acusada de delito tem direito a que se presuma sua inocência enquanto não se comprove legalmente sua culpa. Durante o processo, toda pessoa tem direito, em plena igualdade, às seguintes garantias mínimas: g) direito de não ser obrigado a depor contra si mesma, nem a declarar-se culpada.”

É evidente que a confissão como requisito legal para a confecção, formalização e homologação não possui nenhuma utilidade legalmente constituída, tendo em vista que no momento da homologação o Juiz não poderá analisar e valorar o mérito da confissão, devendo apenas fazer uma análise da voluntariedade e formalidade legal do instituto acordado previamente entre as duas partes.

Com a suspensão do Juiz das Garantias, (Liminar na Medida Cautelar ADIn’s nºs 6.298, 6.299, 6.300 e 6.305 do ministro. Fux), a situação é agravada, pois em caso de eventual descumprimento do acordo entre as partes, o acusado será submetido a julgamento pelo mesmo juiz responsável pela homologação do acordo, ou seja, o mesmo magistrado que analisou os requisitos do acordo de não persecução penal anteriormente ajustado: inclusive a confissão.

Ora, justamente por isso é que a homologação do acordo foi enquadrada pelo legislador como de alçada do juiz de garantias, o que impediria o conhecimento do conteúdo da composição pelo juiz da instrução. Talvez para os procedimentos vindouros — quando e se declarado constitucional o conteúdo normativo do artigo 3º-B do Código de Processo Penal — esta questão se perca. Todavia, até que isso aconteça, é necessário se analisar as coisas como elas são. É preciso repisar que o ANPP é um negócio jurídico processual entre partes: de um lado situado o investigado, assistido por seu defensor, e, do outro, o Ministério Público. Como se percebe, não há espaço para coautores ou partícipes nesta relação negocial personalíssima, de modo que, qualquer declaração nela proferida, se utilizada em âmbito processual — quer em instrução, quer em fase de sentença —, contra o outro corréu que não pôde pactuar o acordo violará diretamente o contraditório e a ampla defesa. [3]

A situação consegue piorar quando a confissão feita pelo acusado para a formalização e homologação do acordo de não persecução penal possa envolver algum eventual futuro corréu. Ou até mesmo em casos que há um concurso de pessoas no cometimento do suposto crime, tornando a relatividade dos direitos fundamentais e das garantias fundamentais ainda mais incisivas, provocando uma enorme ferida na legalidade do acordo de não persecução penal, diante da inobservância do princípio do contraditório e da ampla defesa do "corréu" ou futuro investigado.

Urge salientar também que no acordo de não persecução penal, as condições acordadas entre as partes e posterior cumprimento independe de formação de culpa, não ocasionando nenhum registro em ficha criminal, pois não há sentença condenatória e, consequentemente, reincidência. Sem contar que a pena jamais será privativa de liberdade.

Percebe-se que não há motivos concretos e muito menos legais para que se exija a confissão do acusado como requisito para possibilitar o acordo de não persecução penal.

Vou ligeiramente mais longe em relação ao enfraquecimento do Estado Democrático de Direito com a relativização dos direitos fundamentais e das garantias constitucionais por meio da confissão no acordo de não persecução penal, pois justifica o desdobramento demonstrado a seguir. Atente-se ao § 6º do art. 18-A: “Homologado judicialmente o acordo de não persecução penal, o juiz devolverá os autos ao Ministério Público para que inicie sua execução perante o juízo de execução penal".

Ao propor, formalizar e homologar o acordo de não persecução penal, observa-se que o legislador impôs que fosse remetido ao juiz da Execução Penal para monitoramento do cumprimento do acordo realizado entre as partes. Ou seja, o monitoramento do acordo é remetido para ser acompanhado em uma Vara de Execução Penal, como se o acusado estivesse cumprindo uma pena, que seria uma sequência lógica caso estivéssemos discutindo confissão em um processo penal tradicional com posterior sentença condenatória, porém não é o caso.

Com base nessa sequência de raciocínio, percebe-se que a confissão não pode ser requisito para o acordo de não persecução penal, diante da flagrante violação da Garantia Constitucional prevista no artigo 5º LXIII da CRFB/1988, vejamos: “LXIII – o preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado, sendo-lhe assegurada a assistência da família e de advogado;”

Afinal, se o Juiz irá apenas verificar a voluntariedade e a legalidade formal da formalização do acordo, não há relevância para a exigência da confissão para homologação do acordo de não persecução penal.

Urge salientar que não se trata de uma crítica à justiça penal negociada. A reflexão provocada é acerca da flagrante inconstitucionalidade da exigência da confissão como requisito para oferecimento do acordo de não persecução penal. A relatividade dos direitos fundamentais e das garantias constitucionais é evidente na justiça consensual. Porém, na percepção deste subscritor, está longe de ferir o Estado Democrático de Direito, devido aos princípios do Direito Civil (Contratos) que regem os institutos despenalizadores, sendo indiscutivelmente possível aplicá-los no âmbito da justiça penal, para fins de demonstrar que há na justiça consensual pilares extremamente sustentáveis para equilibrar sua constitucionalidade em consonância com todo o ordenamento jurídico brasileiro.

Assim, no ponto de vista deste subscritor, especificamente quanto a exigência da confissão prevista no artigo 28-A, caput, do CPP, fica evidente um grande vício material, por afronta à CF/1988.

Pedro Monteiro é sócio do escritório Araujo & Sandini Advogados Associados, Advogado Criminalista, Especializando em Ciências Criminais pelo Complexo de Ensino Superior de Santa Catarina – CESUSC, Especializando em Direito Penal Econômico pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais – PUC/MG e Presidente da Comissão de Segurança Pública e Assuntos Prisionais da 30ª Subseção da OAB/SC

 

[1] GOMES, Vinícios Gomes de. Barganha e justiça criminal negociada: análise das tendências de expansão dos espaços de consenso no processo penal brasileiro. Ibccrim, São Paulo, 2015

[2] CABEZUDO RODRÍGUEZ, Nicolás. El Ministério Público y la justicia negociada em los Estados Unidos de Norteamérica. Granada: Comares, 1996

[3] https://www.conjur.com.br/2020-jun-08/nicolai-ferreira-valor-confissoes-anpp. Acesso em: 07 de setembro de 2020