Opinião

O Supremo Tribunal Federal e a liberação das mercadorias importadas

Autor

  • Daniela Floriano

    é mestre em Direito Tributário pela PUC-SP professora em direito tributário e aduaneiro em diversos cursos de extensão e pós-graduação pesquisadora do NEF-FVG e UFMG advogada e sócia do DFloriano Advogados.

14 de setembro de 2020, 9h05

Já são dois os votos desfavoráveis aos contribuintes no julgamento virtual do Tema 1.042, iniciado no último dia 4, que devolve ao STF a discussão acerca da possibilidade de liberação das mercadorias importadas sem o pagamento imediato das diferenças de tributos apuradas no procedimento de desembaraço aduaneiro.

No debate, que retorna à apreciação do Supremo em recurso extraordinário interposto pela União, sustenta-se a constitucionalidade em vincular a conclusão do despacho aduaneiro ao pagamento das diferenças de tributos apuradas pelas autoridades fiscais. Mesmo já constituída essa diferença por meio da lavratura de auto de infração, o pagamento seria essencial para a liberação das mercadorias uma vez que, somente assim, impõe-se "limites e proteção ao mercado nacional", conforme sustentou o procurador-geral da Fazenda Nacional, Paulo Mendes.

Para a Fazenda, conforme destacado em sustentação oral, ainda que o importador figure como sujeito passivo de uma autuação fiscal que se presta para constituir essa suposta diferença de tributos, a autorização para a liberação das mercadorias sem o pagamento implicaria na anuência das autoridades para a prática de concorrência desleal, autorizando, "de forma predatória"  como sustentou a citado Procurador , que produtos importados com preços mais baixos em razão do "não pagamento" dos tributos aduaneiros ingressassem no Brasil, prejudicando a indústria nacional.

É justamente nesse cenário de confusão de conceitos e premissas que alguns aspectos essenciais do debate precisam ser cuidadosamente ponderados.

De fato, na prática, o grande volume de interrupções dos despachos aduaneiros guarda direta relação com questionamentos formulados pelas autoridades fiscais acerca da classificação das mercadorias importadas. Ao buscar a reclassificação via de regra para um enquadramento mais oneroso —, a Receita Federal exige o pagamento da diferença dos tributos e, na hipótese de oposição do importador, deve lavrar o auto de infração (artigo 42, §2º, da IN 680/2006). Com a lavratura do auto de infração, tem-se, então, definitivamente constituído o crédito tributário, deslocando o debate originalmente iniciado na seara do Direito Aduaneiro para o campo do Direito Tributário. Em outras palavras: exige-se no auto de infração tributos e multas alcançados pela definição do artigo 113 do Código Tributário Nacional.

Não há, nesse contexto, como se sustentar o argumento da Procuradoria, acompanhado pelos ministros Marco Aurélio, relator, e Alexandre de Moraes no sentido de que, mesmo após lavrado o auto de infração para a cobrança da suposta diferença dos tributos aduaneiros, o pagamento se impõe necessário para fins de elidir a sonegação fiscal e proteger a indústria nacional.

É inquestionável o fato de que, uma vez constituído o crédito tributário, a discussão desloca-se da competência legal do Direito Aduaneiro para normas de Direito Tributário, não havendo mais o que se falar em retenção das mercadorias até o pagamento dos tributos. Inclusive, justamente por esse motivo que a legislação aduaneira, em especial o Decreto-Lei nº 1.455/1976, trata de forma diferenciada as hipóteses de importação passíveis de pena de perdimento estas, sim, que definitivamente se prestam para controle de fronteiras e proteção do comércio local das demais infrações com impactos exclusivamente tributários e passíveis de cobrança via autuações fiscais.

Ademais, sustentar que um importador autuado não pagará os tributos exigidos caso estes sejam efetivamente confirmados após, por exemplo, o trâmite regular do processo administrativo fiscal, é reconhecer a incompetência arrecadatória da própria União e não poderia justificar a satisfação imediata de uma obrigação que a própria legislação autoriza a interposição de defesa e a suspensão da exigibilidade do crédito tributário debatido (artigo 151, inciso III, do Código Tributário Nacional).

Afirmar, ainda, que o imposto de importação é tributo extrafiscal e que se presta para o controle, e não para arrecadação, e, por consequência, a autorização do desembaraço de mercadorias sem pagamento poderá prejudicar a indústria nacional, perfaz um raciocínio no mínimo ingênuo, na medida em que parcela considerável das mercadorias importadas sequer possuem similares nacionais, vide a quantidade de ex-tarifários vigentes.

Outro aspecto importante a ser destacado diz respeito ao movimento global dos países no sentido de certificarem seus importadores com vistas a facilitarem as transações comerciais internacionais. O Programa Operador Econômico Autorizado (OEA), por exemplo, encabeçado pela Organização Mundial das Aduanas (OMA) e apoiado pela OCDE, é pauta da política econômica brasileira e vai de encontro com a decisão que vem se firmando no julgamento do RE 1.090.591 ora em análise.

Com efeito, um dos pilares do referido programa reside justamente na desburocratização e agilização dos despachos aduaneiros, medida que em absolutamente nada impede ou restringe que esses processos sejam revisitados, em procedimentos próprios de revisão aduaneira e no período de cinco anos após o registro das declarações de importação.

Assim, pautar o Supremo pela orientação de que o pagamento de supostas diferenças de tributos apuradas no momento do desembaraço aduaneiro é requisito essencial para a liberação das mercadorias importadas evidencia-se um retrocesso, inclusive no contexto da Súmula STF 323. Em adição, alça ao tratamento desigual os importadores que foram parametrizados em canais de conferências e tiveram de adiantar, para posteriormente discutir, as supostas diferenças de tributos para terem liberadas suas mercadorias e aqueles outros que, importando os mesmos produtos, tiveram suas mercadorias liberadas em canal verde de conferência.

A isonomia em que se pauta o voto do ministro Marco Aurélio não reside, no caso, na equiparação dos produtos nacionais com os importados mas, sim, em proporcionar a isonomia das relações entre os próprios contribuintes importadores, os quais possuem a prerrogativa constitucional de se defender administrativamente de imposições tributárias sem estarem sujeitos à sanção política de terem retidas suas mercadorias até o pagamento dos tributos supostamente devidos.

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    é sócia-fundadora do escritório Daniela Floriano Advocacia e Consultoria Tributária, juíza do TIT-SP e professora no IBET, na PUC-Cogea e na Escola Paulista de Direito (EPD).

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