Opinião

Os limites de atuação dos Ministérios Públicos dos Tribunais de Contas

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13 de setembro de 2020, 6h05

Nos últimos dias, a imprensa repercutiu notícias a respeito de medidas judiciais tomadas pelo Distrito Federal e seu atual mandatário, em face de atos praticados no âmbito do Tribunal de Contas do Distrito Federal (TCDF) e que consistem: I) no exercício, pelos membros do ministério público que atuam junto àquela corte, de poderes de requisição, investigação e controle que não lhes foram conferidos pela Constituição Federal; e II) no recebimento indevido de remuneração com esteio na Lei Federal nº 13.024/2014, que instituiu gratificação por exercício cumulativo de ofícios aos membros do Ministério Público da União [1].

É que, há muito, os membros do Ministério Público daquela corte de contas, a despeito do entendimento já sufragado pelo STF e de toda a literatura jurídica e jurisprudência, arvoram-se em exercer prerrogativas e direitos conferidos exclusivamente aos integrantes dos Ministérios Públicos da União e dos Estados, invocando as disposições do artigo 129, VI, da Constituição Federal e as normas da Lei Complementar nº 75/1993 e da Lei nº 8.625/1993 para não só oficiar e determinar providências diretamente aos órgãos do Poder Executivo, e a despeito de qualquer conhecimento ou apreciação prévia dos conselheiros do próprio TCDF, mas também para pleitear e obter vantagens pecuniárias só conferidas aos integrantes dessas demais carreiras.

O tema não é novo e já foi por demais dirimido pelo Poder Judiciário, mas, diante das incompreensões que aparentemente ainda persistem por parte de alguns, descortina-se oportunidade para revisitar, à luz da Constituição Federal e dos precedentes do STF, inclusive em sede de controle concentrado de constitucionalidade, os limites de competência e jurisdição dos Tribunais de Contas no Brasil e as funções de seus respectivos Ministérios Públicos.

Como já assentado pelo STF, na ADI nº 789-DF e em outros tantos julgados, esses Ministérios Públicos com atuação especializada são órgãos que compõem a estrutura orgânica dos tribunais de contas, não possuindo autonomia administrativa e financeiro-orçamentária. Estão, portanto, inseridos na intimidade estrutural das cortes de contas e o constituinte originário, embora tenha concedido elevado grau de autonomia funcional aos seus membros, não os inseriu no arquétipo constitucional desenhado para os Ministérios Públicos da União e dos Estados-membros, de modo que a falta de previsão de prerrogativas institucionais revela a opção política no sentido de considerá-los como partes da organização exclusivamente interna dos tribunais de contas [2].

Ainda segundo o STF, por não disporem de fisionomia institucional própria e não integrarem o conceito de Ministério Público enquanto ente despersonalizado de função essencial à Justiça, e por terem sua atuação limitada ao controle externo, a cláusula de garantia prevista no artigo 130 da Constituição Federal não outorgou a esses ministérios públicos especiais os mesmos poderes de controle e investigação conferidos ao Ministério Público comum, de modo que esse preceito constitucional se projeta em dimensão de caráter estritamente subjetivo e pessoal, submetendo os seus integrantes ao mesmo estatuto jurídico dos membros dos Ministérios Públicos da União e dos Estados-membros apenas no que diz respeito a direitos, vedações e forma de investidura, na esteira dos artigos 128, §5º, I e II, e §6º e 129, §3º, da Constituição Federal.

Logo, não se aplicam aos integrantes dos Ministérios Públicos com atuação junto aos Tribunais de Contas, de maneira automática, os direitos e poderes institucionais previstos na Lei Complementar nº 75/1993 e na Lei nº 8.625/1993 e, por óbvio, os seus membros não podem instituir livremente suas atribuições, em desacordo com os limites fixados pelo constituinte, e ainda que com supedâneo nos argumentos de liberdade e independência funcionais, sob pena de violação ao princípio da legalidade estrita e de se estabelecer uma sobreposição de órgãos autônomos de controle externo, desprovida de necessária organicidade, no âmbito dos órgãos constitucionalmente previstos para esse fim, que são, no caso, os próprios Tribunais de Contas.

A atribuição constitucional para exercer o controle externo da Administração Pública, por meio de auditorias, inspeções e tomada de contas dos gestores de bens e recursos públicos, compete privativamente aos Tribunais de Contas, cumprindo ao procuradores do Ministério Público, na medida em que tenham ciência de fatos que estejam sob a jurisdição dessas cortes, solicitar a instauração dos procedimentos pertinentes de controle e fiscalização previstos em suas leis orgânicas e regimentos.

Não se trata de impedir a independência dos membros desses órgãos internos de fiscalização junto aos Tribunais de Contas, mas de observar a lei, sob pena de se caracterizar, e sem prejuízo da apuração de outros ilícitos, a prática de abuso de autoridade, na medida em que a Lei nº 13.869/2019 dispõe, em seu artigo 33, caput e parágrafo único, que constitui crime exigir informação ou cumprimento de obrigação, inclusive o dever de fazer ou de não fazer, sem expresso amparo legal, incorrendo também no delito quem se utiliza de cargo ou função pública para se eximir de obrigação legal ou obter vantagem ou privilégio indevido.

Assim, o artigo 52 do regimento do TCDF, ao disciplinar que serão aplicadas as disposições pertinentes a direitos, garantias, prerrogativas, vedações, regime disciplinar e forma de investidura estabelecidos na Constituição Federal e na Lei Orgânica do Ministério Público do Distrito Federal e dos Territórios aos membros de seu Ministério Público interno, padece de flagrante inconstitucionalidade, pois, não obstante trazer inovação que está em desalinho com o artigo 130 da Carta Magna e decisões do STF, acaba por configurar verdadeira afronta ao pacto federativo, na medida em que prevê a utilização subsidiária de normas de um órgão federal, sem a necessária recepção por lei local específica, com vista a conferir poderes e benefícios a servidores de outro ente federativo, no caso o Distrito Federal, com o estabelecimento, ainda, de obrigações e vantagens que causam impactos financeiros e orçamentários.

Na esteira desse raciocínio, e pelas razões já delineadas, a instituição, por meio da Resolução nº 304/2017, de gratificação de substituição para os procuradores do Ministério Público junto ao TCDF, a título de equiparação aos membros do Ministério Público da União, configura manifesta e irrecusável ilegalidade, não só por violação aos princípios que regem a Administração Pública, em especial os da legalidade, moralidade e impessoalidade, mas, sobretudo, por ofensa direta aos artigos 1º, 19, caput, IX e XII, 71, IV, e 84, IV, da Lei Orgânica do Distrito Federal, que, em suma, vedam a vinculação ou equiparação de qualquer espécie para efeito de remuneração de pessoal do serviço público e somente autorizam a fixação ou alteração dos subsídios por meio de lei.

É de se indagar, nesse sentido, qual a razão para que os membros do Ministério Público junto ao TCDF, guardiões que deveriam ser das contas públicas e que têm por obrigação funcional conhecer e aplicar as normas legais, em especial as financeiras e orçamentárias, tenham levado adiante essa pretensão, com vista a perceber vantagem, sem qualquer respaldo legal, no valor R$ 11.229,70 para cada 30 dias de substituição, e que representa um terço de seus subsídios, hoje na ordem de R$ 33.689,10 [3].

Sim, porque o artigo 130 da Constituição Federal, invocado como fundamento de validade para a resolução, jamais teve o alcance que se quis dar, sendo certo que o STF já se pronunciou sobre o tema, em sede de controle abstrato de constitucionalidade, há pelo menos 26 anos, de sorte que a ninguém é dado desrespeitar deliberadamente as decisões judiciais, sobretudo as que gozam de eficácia erga omnes, por simplesmente não concordar com elas, nem, tampouco, afirmar desconhecimento jurídico, ainda que por inépcia, para obter vantagens ilícitas e se desonerar das responsabilidades nos âmbitos civil, administrativo e penal.

Ademais, ainda que se pudesse admitir a interpretação sustentada pelos membros do Ministério Público que atuam junto ao TCDF, no sentido de gozarem, por simetria, de direitos e vantagens pessoais conferidos às carreiras do Ministério Público comum, é de fácil conclusão que a seção na qual se insere o referido dispositivo constitucional não faz referência à gratificação de substituição ou assegura qualquer equiparação remuneratória, garantindo apenas a vitaliciedade, a inamovibilidade e a irredutibilidade do subsídio, de modo a se depreender que a referida vantagem pecuniária, consoante prevê a Lei Orgânica do Distrito Federal, só poderia ser auferida, em observância ao princípio da reserva legal, mediante a edição de lei específica.

O deliberado descumprimento da lei, com a obtenção de vantagens indevidas, por aqueles que deveriam ter redobrada vigilância, ao passo de atrair a necessária investigação pelos órgãos de controle, de forma a aferir a legalidade, e a probidade, dos atos praticados, impõe a adoção das medidas judiciais pertinentes para o ressarcimento ao erário, e sem que caiba, à míngua de boa-fé, alegar a natureza alimentar dessas verbas e seu suposto caráter irrepetível, pois, é necessário frisar novamente, cuida-se de matéria já julgada e exaustivamente enfrentada pelo STF, não restando a menor dúvida sobre os seus contornos jurídicos.

Existem, ainda, outros tantos temas envolvendo a atuação dos Tribunais de Contas, e seus limites, que desafiam análise, a exemplo da possibilidade de emitir provimentos de natureza cautelar e decisões com caráter normativo e vinculante, bem como responsabilizar advogados públicos por suas manifestações jurídicas, imiscuir-se no controle sobre o mérito administrativo e, até mesmo, exercer exames estritos de legalidade e de constitucionalidade [4].

Os referidos assuntos serão abordados em um segundo artigo, em continuidade à reflexão que ora se propõe.

 


[1] Para a primeira situação, o Distrito Federal impetrou suspensão de segurança perante o STF, distribuída sob nº 5.416 – DF, cujo pedido liminar de contracautela foi concedido para obstar os efeitos de tutela antes concedida pelo TJDFT em mandado de segurança impetrado pelos membros do Ministério Público que atuam junto ao TCDF, e que tem por objetivo obrigar membros do Poder Executivo local a fornecer documentos e informações diretamente a eles e sem a participação ou deliberação do plenário do TCDF. A medida judicial baseia-se, então, em três premissas: (i) o Ministério Público de Contas é parte integrante do Tribunal de Contas; (ii) quisesse o constituinte que os procuradores dos MPs de Contas tivessem atribuições idênticas aos membros do Ministério Público da União e dos Estados, teria, logicamente, inserido no feixe de competência desses ramos do Ministério Público a função de oficiar junto às Cortes de Contas, o que não fez; (iii) a atividade de controle externo prevista no artigo 71 da Constituição Federal, inclusive quando dotada de caráter preparatório, cabe aos próprios Tribunais de Contas, não sendo compartilhada com os Ministérios Públicos de Contas integrados às suas estruturas.

 Foi proposta também a ADI nº 0733200-87.2020.8.07.0000, em trâmite no TJDFT, em razão do recebimento de gratificação sem amparo em lei distrital e instituída por meio de mera resolução interna do TCDF.

[2] No mesmo sentido a ADI 2.378, a ADI 3.315 e o RE 1.178.617.

[3] E não é só, pois, no caso concreto, há ainda a agravante de sequer poder se falar em substituído, pois a gratificação em verdade é usada para permitir, mediante a manutenção na estrutura do TCDF de gabinete antes usado por procuradora já aposentada, o recebimento de remuneração em razão de substituição ficta de cargo hoje vago, e que se soma ao recebimento, também previsto no âmbito daquele tribunal administrativo, de auxílio-moradia, cujo pagamento já se deu em passado recente inclusive com caráter retroativo e em parcela única, perfazendo, em alguns casos, valores acima de R$ 200 mil para cada beneficiado.

[4] Sobre os Tribunais de Contas, também tratamos da criação e necessidade de um órgão de controle e correição que possa, à semelhança do CNJ e CNMP, disciplinar o funcionamento e aplicar as sanções aos membros que se desvirtuarem de suas obrigações e praticarem abusos. Vide https://www.conjur.com.br/2017-abr-11/rodrigo-ferreira-tribunais-contas-necessitam-orgao-controle.

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