Opinião

O Brasil em busca da tão perseguida universalização do saneamento básico

Autor

  • Juliano Heinen

    é procurador do estado do Rio Grande do Sul e doutor em Direito Público pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

13 de setembro de 2020, 14h14

No texto anteriormente publicado aqui na ConJur, falamos sobre os desafios de se "desenhar o ‘mercado" do saneamento básico no Brasil. Agora, pretendemos alcançar ao leitor a experiência norte-americana, que é muito rica a ofertar bons e não tão bons resultados, o que prova que o saneamento básico não é um setor em que "tudo são flores", ou melhor, em que apenas "basta enterrar canos".

Ao longo dos tempos, muitas experiências foram testadas nos Estados Unidos, nas suas várias cidades e localidades. Especialmente nas décadas de 80 e 90, houve uma grande mudança no setor, especialmente pelo aumento do rigor dos níveis de qualidade e no aumento das metas na prestação das atividades relativas ao saneamento básico. Vamos expor algumas dessas perspectivas, para, então, elaborar proposições ao Estado brasileiro.

Antes de tudo, devemos deixar um alerta: o Estado norte-americano não titulariza a prestação das atividades essenciais à coletividade, de modo que a concepção francesa de serviço público e a sua delegação aos agentes privados adotada pelo Brasil não faz sentido de ser aplicada no país americano. Em suma, as atividades de saneamento básico seguem a noção dos public utilities e da regulation, seja esta última estatal ou feita pelo contrato. Em termos específicos, tais atividades seguem uma lógica privada, mas regulada e fiscalizada pelo Estado, pelas agencies ou pelas commissions. Voltemos ao tema do saneamento básico.

Em 1974, a fim de estruturar uma ampla normatização no tema, foi editado o The Safe Drinking Water Act, que estabeleceu standards, ou seja, parâmetros gerais de como os agentes de mercado que atuavam no setor deveriam se comportar. A partir desse marco normativo, o Estado norte-americano passou a fixar padrões mais e mais rigorosos. Ao longo do tempo, percebeu-se que concessionárias menores, ou seja, de pequeno e médio porte não conseguiam mais cumprir com estas exigências normalmente aquelas que atendiam até 50 mil habitantes. As empresas maiores conseguiram atender municípios pequenos, porque atuavam em economia de escala e tinham maior lastro econômico, sem contar que passaram a centralizar sua expertise técnica. De outro lado, muitos municípios passaram a auxiliar os prestadores.

Outro fator que se concebeu para dar conta de cumprir com os padrões de prestação do serviço foi a regionalização da prestação. Prestadores de pequeno e médio porte passaram a se unir para racionalizar recursos. E isso incluía uma série de arranjos, como a combinação de organizações de serviços públicos, arranjos de serviços de atacado, acordos cooperativos e gerenciamento de satélites de sistemas múltiplos. Tudo isso pode ser alcançada por meio de arranjos do setor público e privado. Claro que não é difícil imaginar que existiam uma série de barreiras para que a regionalização ocorresse, como os entraves políticos e institucionais [1]. Outro grande impacto do aumento da concorrência do setor privado tem sido estimular as agências públicas de água a se envolverem em programas de autoaperfeiçoamento, como o estabelecimento de referências de desempenho, modificação de práticas de trabalho, implementação de educação de pessoal e melhoria de certificação.

A privatização dos serviços públicos somente foi uma experiência exitosa quando os agentes privados estavam sob o julgo de uma regulação ampla, mas eficiente. Muitos prestadores passaram a acelerar seus investimentos em novas tecnologias ou subcontratar força de trabalho. Ou, ainda, passaram a treinar melhor seus funcionários e corrigir as suas práticas.

Outra experiência que deu certo nos Estados Unidos consistiu na terceirização do gerenciamento de estações de tratamento individuais, sistemas de transporte e outros serviços para empresas privadas, a fim de atender aos níveis de efetividade e de qualidade cada vez mais rigorosos. Essa experiência pode demonstrar, a depender da matriz econômica e dos custos inseridos, que o sistema pode ser mais racional se operado por múltiplos prestadores. E, para tanto, a modelagem contratual da concessão deve, desde a licitação, ter previsão nesse sentido se, claro, econômica e operacionalmente viável [2].

Também a opção pela prestação em grande escala foi bem-sucedida nos Estados Unidos. Para tanto, as municipalidades ou as grandes empresas que adquiriram uma série de prestadores menores conseguiram melhores taxas de eficiência, tanto em relação ao aspecto técnico, como em relação ao aspecto econômico [3]. Contudo, a experiência somente se mostrou exitosa quando era possível a conexão da prestação, ou seja, não havia seccionamento na execução do serviço. A contiguinidade garante a operação e a ampliação do sistema com o mesmo padrão técnico, com mais baixa assimetria informacional e com maior economia de escala e de escopo.

Outra perspectiva aplicada em muitos lugares dos Estados Unidos foi a "the design-build-own-operate-transfer arrangement (DBOOT)", que, em tradução livre, significa a possibilidade de transferir ao agente privado toda a gama de prestações relativas ao saneamento básico: projeto, construção, propriedade da infraestrutura, operação e possibilidade de o privado efetuar acordos de transferência da execução do contrato. Há, aqui, uma maior discricionariedade de atuação do agente privado na seleção das melhores práticas para conseguir alcançar as metas exigidas pelas agências governamentais, reduzindo o seu custo.

Partindo dessa e de outras realidades, quais poderiam ser as soluções possíveis, nos limites e possibilidades que o arranjo jurídico-normativo brasileiro estabelece? Retomando o que já dissemos, há três componentes a serem mensurados na prestação dos serviços públicos de saneamento:

a) O custo de manutenção e de operação das instalações já existentes;

b) Os investimentos para ampliação das estruturas, a fim de se atingir os níveis de universalização e integralidade fixados pela Lei nº 14.026/2020;

c) O valor da tarifa a ser paga pelo usuário.

A partir dessas três premissas, as quais dialogam intimamente entre si, é que se devem pensar os arranjos jurídico e econômicos que podem bem trazer soluções e eficiência no setor. Mas um alerta: a fase de planejamento a qual julgamos a mais relevante neste processo deve detalhar com precisão as varáveis econômicas e os indicadores que fornecem uma resposta à (in)eficiência de cada matriz regulatória. Quer-se dizer, então, que um arranjo jurídico e econômico ao setor deve ser previamente avaliado a partir de indicadores econômicos, por exemplo.

Para se conseguir eficiência na prestação do serviço, o que será fundamental, há a necessidade de se avaliar uma série de áreas e ações no setor. Por exemplo, em relação aos recursos humanos, há de se estabelecer a melhoria da resolução de disputas e a capacitação de funcionários. Nos Estados Unidos, mais especificamente em Phoenix, no ano de 1995, uma empresa de consultoria constatou que a eficiência passava por estes objetivos: "A cidade identificou vários objetivos claros no processo: desenvolver equipes capacitadas e autodirigidas; garantir que nenhum funcionário perca involuntariamente um emprego na cidade; manter ou melhorar os níveis de atendimento ao cliente, padrões de qualidade do produto e proteção ambiental; e se tornar um serviço de abastecimento de água 'melhor da classe', com operações econômicas" [4].

Em verdade, a opção feita pela cidade norte-americana foi substituir a manutenção reativa por uma estratégia de manutenção planejada (planned maintenance strategy). Logo, provou-se que a melhoria das condições da prestação do serviço de saneamento básico não passa necessariamente pela privatização ou não, mas muito mais pela eficiência de um bom projeto de engenharia.

Então, a título de conclusão, são os processos e a estratégias de qualquer companhia, seja estatal ou não, que garantem a eficiência na prestação. E essa estratégia deve estar aliada a uma regulação e fiscalização intensas.

 


[1] HAARMEYER, D. L. Privatizing Infrastructure. Los Angeles: The Reason Foundation, 1993.

[2] HOWE, C. W. Protecting public values in a water market setting. University of Denver Water Law Review. Denver: University of Denver, primavera de 2000.

[3] Veja o caso de Bensalem, Pensilvânia. Em 1999 o município adquiriu uma série de empresas menores – quase 40 – aumentando sua eficiência.

[4] COMMITTEE ON PRIVATIZATION OF WATER SERVICES IN THE UNITED STATES WATER SCIENCE AND TECHNOLOGY BOARD DIVISION ON LIFE AND EARTH STUDIES. Privatization of water services in the United States. An assessment of issues and experience. Washington, D.C.: National Academy Press, 2002, p. 61 – tradução livre.

Autores

  • é procurador do Estado do Rio Grande do Sul, doutor em Direito (UFRGS), professor de Direito Administrativo e autor da obra "Curso de Direito Administrativo" (Ed. Juspodivm).

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