Embargos Culturais

Oliveira Viana e o problema Rui Barbosa: as ideias fora do lugar

Autor

  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente pela USP doutor e mestre pela PUC- SP advogado consultor e parecerista em Brasília. Foi consultor-geral da União e procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

13 de setembro de 2020, 8h00

Estudar os autores brasileiros é preciso. Os mortos e os vivos. Autores e autoras. Os progressistas e os conservadores. Os de esquerda e os de direita. Os ímpios e os que se fortaleceram na fé. Entre esses últimos, Oliveira Viana (1883-1951), nascido em Saquarema, no Rio de Janeiro. Coincidência ou não, Saquarema foi o reduto do conservadorismo durante o Império, a ponto de os conservadores levarem esse apodo, em oposição aos luzias, que eram os liberais.

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Não me convenço de que a diferença fosse tão grande assim. Ao longo do Segundo Reinado, nada parecia tão liberal quanto um conservador no governo, e nada tão conservador como um liberal na oposição. A frase é da época. Bernardo Pereira de Vasconcelos, na década de 1830, ao mudar de partido, lembrou que foi um liberal, enquanto a liberdade era nova…. Tornou-se um conservador. Há muitos pensadores identificados com o conservadorismo que refletiram intensamente sobre temas ainda tão atuais. Exemplifico com Oliveira Viana, a quem voltarei em intervenções vindouras também.

Viana estudou no Pedro 2º (formando-se em 1900) e bacharelou-se em Direito (na antiga Faculdade Nacional, no Rio de Janeiro, turma de 1905). Sempre engatado em um cargo público, foi um dos principais nomes do Ministério do Trabalho, dirigido por Lindolfo Collor, no início da Era Vargas. Deve-se lembrar que Vianna é um dos pais fundadores de nosso direito do trabalho, inclusive do direito sindical. Em 1937 assumiu cadeira na Academia Brasileira de Letras. Católico, ligado à Legião do Sagrado Coração de Jesus, Viana deixou-nos uma intensa obra de investigação da realidade brasileira. Foi Ministro do Tribunal de Contas da União.

Há um ponto em Viana que me chama a atenção. Sua implicância com o que definia como "marginalismo", em sua expressão cultural, o que substancializava suas críticas a Rui Barbosa. É o tema da presente intervenção. Viana censurou duramente Rui, ainda que reconhecendo e enaltecendo muitos de seus méritos. Refiro-me à primeira parte do segundo volume de "Instituições Políticas Brasileiras", um livro aliciante para quem gostamos de direito público e de teoria da constituição.

Por "marginalismo" Viana definia uma fortíssima influência de uma cultura estrangeira sobre um pensador cuja visão de Brasil, e dos problemas brasileiros, e das soluções para o Brasil, predicariam nesse repertório estrangeiro. Eram ideias fora do lugar, o que nos lembra a avalição que Roberto Schwarz fez do legado de Machado de Assis. Essa situação — ideias fora do lugar — é recorrente no Direito, e merece muita explicação.

À época de "Instituições Políticas Brasileiras" (1949), para Viana, Rui simbolizava essa dissociação entre uma cultura sociológica consistente e o conhecimento da realidade social brasileira. Rui, na impressão de Viana, fora um homem de duas épocas: o Império e a República, uma formação monárquica e uma ideologia liberal. Viana indicava que a imensa biblioteca de Rui provava esse "marginalismo" cultural. Na biblioteca de Rui havia (há) montões de livros em várias línguas e, ao mesmo tempo, uma insignificante "brasiliana"; isto é, quase não havia (não há) livros sobre o Brasil. A consulta do catálogo dessa impressionante coleção de livros parece comprovar a assertiva.

Para Viana, o Brasil não interessava a Rui. Há no excerto um lamento. Quando da abertura da Casa de Rui Barbosa, como museu, e com a exposição de sua vasta biblioteca, Viana perguntou por um livro que havia presenteado a Rui: "Populações meridionais do Brasil". O livro, cuidadosamente editado por Monteiro Lobato, estava intacto. Viana entendeu que Rui não o leu. De Monteiro Lobato, a propósito, Rui conhecia e citava o Jeca Tatu.

A obsessão de Rui para com o direito também era um sintoma desse "marginalismo". Rui resumia o direito a uma tecnologia, desprezando a normatividade como uma ciência social. Segundo Viana, o que interessava a Rui era o texto legal, que confrontava com outro texto legal, em face dos quais mostrava reverência que lembrava os teólogos para com os versículos bíblicos. Rui dominava esses textos, que expunha com uma erudição incomparável, esmagando adversários no foro e seus opositores na política. Citava centenas de autores, sobre qualquer ponto ou assunto, por mais específico que fosse. Rui trabalhava com uma metodologia escolástica e formalista que, no juízo de Viana, era indicativo desse alegado “marginalismo”. O marginalismo” jurídico, segundo Viana, consistia em uma técnica de adaptação de um modelo jurídico e institucional estranho à nossa nacionalidade.  

Para Viana, Rui triunfou porque conhecia e citava autores estrangeiros, o que enfatizava seu talento verbal, seu prodigioso estilo, seu polifonismo wagneriano e sua orquestração vocabular. Culturalmente, no entanto, segundo Viana, Rui era um inglês. A Inglaterra era seu perfeito exemplo de sabedoria política. Rui pensava o Brasil nos termos e nos moldes ingleses. Essa obsessão foi mais tarde deslocada para os Estados Unidos, o que identificaria o interesse de Rui por Jefferson, Hamilton e Marshall, que ornavam seu panteão. Rui fez dos autores norte-americanos (Kent, Cooley, Dice) uma moda nacional. Entre nós, era o único que tinha familiaridade com esses autores. Rui dominava a cultura jurídica e política anglo-saxã. Interessante a biografia que Luiz Vianna Filho compôs sobre Rui, mostrando-nos que o ilustre advogado se contrapôs à cultura francesa, com um arsenal de anglicismos. O que, penso, fora feito do mesmo modo por Tobias Barreto, com seu germanismo. A cabeça nossa de brasileiros parece estar sempre longe.

De acordo com Viana, Rui transitava no litoral e na superfície dos problemas, atribulado por generalidades e abstrações, a exemplo de "povo soberano". Para Rui, segue Viana, só havia democracia à inglesa, bem como a única justiça que havia era a justiça inglesa, ornada por magistrados conservadores, com suas perucas. No entanto, concede Viana, havia em Rui também um sentimento muito vivo de nacionalidade brasileira, de grandeza e de prestígio do Brasil. Exemplifico com a passagem de Rui na Haia, onde pontificou com a tese da igualdade entre as nações. Rui, ainda concede Viana, era um espírito combativo, dono de um temperamento apaixonado e emotivo. Rui era um homem de ação, não era um homem de gabinete. Segundo Viana, estava mais para o apóstolo Paulo do que para Platão. Porém, obtempera Viana, Rui julgava o Brasil com critérios morais estranhos à consciência política de seu meio e de sua gente. Porém, reconhecia Viana, não havia força de argumentação dialética que se opusesse à de Rui.

Nesse sentido, Rui era um prevenido contra a cultura de glorificação do Estado.  Professava uma doutrina liberal, para a qual o Estado, no limite, era um mal necessário. Para Rui, o Estado era o inimigo da liberdade. Seu “marginalismo” influiu na construção de um regime político artificial, que predicava na Constituição de 1891, cuja autoria intelectual sempre se imputou a Rui, então ministro de Deodoro da Fonseca.

Viana acreditava que se Rui tivesse vivido um pouco mais (faleceu em 1923) teria conhecido as diferenças entre ciência do Estado e ciência da sociedade. Teria lido, conhecido, estudado e aderido ao realismo jurídico norte-americano. Viana entendia que Rui era uma inteligência compreensiva, que havia assimilado toda a cultura de seu tempo, que vivera sua época, e que por isso refletia suas crenças, aspirações e sentimentos. Não era intransigente.

Viana percebia duas expressões centrais no legado de Rui: um passivo perecível e um passivo eterno. Perecível a insistência no federalismo (Viana era um centralista acirrado), o artigo 65, § 2º da Constituição de 1891 (poderes dos estados federados), a duplicidade das justiças (a justiça federal era uma discussão permanente), o regime de partidos em um país que não contava com partidos, o sufrágio universal para a escolha da chefia do Executivo. Viana era um centralista. E também era cauteloso para com uma participação política popular mais efetiva. Mas há também uma expressão eterna. A Rui devemos um regime presidencial no qual radica um pode central forte, um Judiciário com competência para revisar atos do Legislativo e do Executivo, a par, naturalmente, da agenda das liberdades individuais e civis. Depende de como entendemos o problema. Os centralistas contestam Rui. Os federalistas o apoiam. Rui afirmou ser pela federação, com ou sem a Coroa.

Viana estava seguro da imortalidade de Rui, toda vez que invocava os temas da dignidade da pessoa humana, da justiça e da liberdade. Para Viana, a genialidade de Rui estava em seus ideais, e não nas instituições que criou ou que ajudou criar, o que derivava do desajuste de seu pensamento com a realidade nacional. Para Viana, Rui era um ser de outra espécie humana. Pertencia a uma humanidade longínqua. Era, talvez por milagre, a última espécie e o último sobrevivente dessa humanidade desaparecida e para sempre perdida. Viana, por sua vez, e agora a avaliação é minha, é um homem de seu tempo, atribulado pelos problemas e soluções de sua época, que merece o benefício do retrospecto, pela sinceridade como defendia suas ideias. Nessa terra de bacharéis, são poucos os que ousaram impugnar o maior símbolo do bacharelismo.

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