Opinião

Algumas considerações sobre a responsabilidade civil do Estado

Autores

12 de setembro de 2020, 16h15

Introdução
O Estado de Direito não pode escapar à responsabilização pelos atos praticados por seus agentes (e por terceiros sob custódia obrigatória do Estado) que geram danos injustos a terceiros. É dizer, o Estado não é apenas aquele que aplica aos seus cidadãos o ordenamento jurídico, mas, sobretudo, aquele que o aplica a si mesmo, inclusive para, quando for o caso, suportar o ônus que impõe.

Nesse diapasão é que a República Federativa do Brasil, desde 1946, tem definido, em suas Cartas Constitucionais, a responsabilidade civil das pessoas jurídicas de direito público, entre elas, especialmente, a União, os Estados-membros, o Distrito Federal e os municípios, como de caráter objetivo, portanto, independente de culpa, em razão de danos causados a terceiros e imputáveis à conduta dos seus agentes.

Pela dicção da Carta Política em vigor, a responsabilidade objetiva é apanágio não apenas das pessoas jurídicas políticas e das pessoas administrativas de direito público, mas também das entidades privadas que prestem serviço público. É o que se obtém do artigo 37, §6º, da Norma Ápice. Dita responsabilidade, contudo, não é absoluta. Fundada na teoria do risco administrativo, e não do risco integral, como solidamente assentado na jurisprudência da Corte Judiciária Máxima, pode ser alijada. Às causas desse alijamento da responsabilidade patrimonial extracontratual objetiva do Estado e das demais entidades acima aludidas, denomina-se, comumente, excludentes de responsabilidade.

Antes de abordar, pontualmente, um específico e recentíssimo julgado da Suprema Corte brasileira (do último dia 5), impende firmar, inicialmente, uma baliza fundamental: a exclusão da responsabilidade estatal haverá, independentemente da denominação que se confira a essa ou aquela situação, somente e sempre que demonstrado restar a inexistência de liame causal entre a conduta do agente público e o eventus damni. A assertiva é relevante para que se perceba que o afastamento da responsabilidade não se dará em face, simplesmente, do "rótulo" atribuído à situação geradora do dano, mas só dimanará da concreta inocorrência do nexo de causalidade material entre a atuação do agente e o dano injusto a terceiros.

Análise do julgado RE 60880 – MT
Conforme já mencionado, adverte-se que o assunto será tratado especialmente no horizonte do recentíssimo julgado RE 60880 – MT, de relatoria do ministro Marco Aurélio Mello, em que se discutia a responsabilidade do Estado, in casu, o de Mato Grosso, por crime de latrocínio cometido por detento que cumpria pena em regime fechado e fugiu de presídio. Os ministros decidiram que "nos termos do artigo 37, §6º da Constituição Federal, não se caracteriza a responsabilidade civil objetiva do Estado por danos decorrentes de crime praticado por pessoa foragida do sistema prisional, quando não demonstrado o nexo causal direto entre o momento da fuga e a conduta praticada". O julgamento foi finalizado no último dia 5 e o voto condutor foi proposto pela divergência de Alexandre de Moraes. O placar foi de 6 a 4.

O recurso extraordinário foi interposto pelo governo mato-grossense contra decisão do TJ-MT, que responsabilizou a administração estadual pela morte decorrente do latrocínio cometido por detento sob sua custódia e condenou o governo estadual a indenizar a família do falecido pelos danos morais e materiais sofridos, bem como ao pagamento de pensão. Segundo aquela corte, diante do histórico criminal do autor do latrocínio, existia para a administração estadual o dever de zelar pela segurança dos cidadãos em geral.

No recurso extraordinário, o governo de Mato Grosso impugnou o entendimento esposado pelo Tribunal de Justiça do Mato Grosso. Segundo o ente público estadual, inexiste liame/nexo causal entre a fuga do preso e o ato criminoso por ele perpetrado, eis que ele (o detento) se evadiu do presídio em novembro de 1999 e, três meses depois, em fevereiro de 2000, praticou o latrocínio. Assim, alegou que o crime deve ser considerado ato de terceiro, capaz, por si só, de excluir a responsabilidade do Estado em indenizar a família da vítima. No julgamento do RE, o ministro Alexandre de Moraes, que abriu divergência, aduziu:

"Infere-se que (i) o intervalo entre fato administrativo e o fato típico (critério cronológico) e (ii) o surgimento de causas supervenientes independentes (v.g., formação de quadrilha), que deram origem a novo nexo causal, contribuíram para suprimir a relação da causa (evasão do apenado do sistema penal) e efeito (fato criminoso)".

E continuou:

"Como bem acentuado pelo Ministro ILMAR GALVÃO, no RE 172.025 (DJ de 19/12/1996), no qual discorria sobre pedido indenizatório contra o Estado “porque foragido de prisão, quase três meses após a fuga, praticou latrocínio, cuja vítima fora o marido da autora, ora recorrente”, a falha no sistema de segurança dos presidiários situa-se ‘fora dos parâmetros da causalidade".

A argumentação construída por Alexandre de Moraes nos remonta, inevitavelmente, à teoria do dano direto (também chamada de teoria da interrupção do nexo causal), que alcançou muito prestígio na doutrina e jurisprudência brasileiras. Seu fundamento legal encontra escora no artigo 403 do Código Civil, in verbis:

"Artigo 403  Ainda que a inexecução resulte de dolo do devedor, as perdas e danos só incluem os prejuízos efetivos e os lucros cessantes por efeito dela direto e imediato, sem prejuízo do disposto na lei processual".

Acolhida pelo STF num emblemático acórdão de 1992 sobre a responsabilidade civil do Estado, também em um crime praticado por fugitivo (RE 130.764), sua principal formulação teórica no Brasil é atribuída a Agostinho Alvim, que escreveu sobre o tema na vigência do Código Civil de 1916. O RE 130.764 cuidava de pedido de indenização formulado em face do estado do Paraná. Um grupo composto por oito criminosos assaltou a residência dos autores e, em seguida, o seu estabelecimento comercial. Entre os integrantes da quadrilha, um escapara de penitenciária estadual havia 21 meses. O fugitivo era de elevada periculosidade, mas não fora devidamente vigiado ao ser transferido a um hospital para tratamento de saúde. O Tribunal de Justiça do Estado do Paraná reconheceu a "falha na missão de guarda do preso" e sua relação direta como os prejuízos demonstrados pelos autores, destacando, quanto a esse aspecto, que o fugitivo agira na "qualidade de mentor, líder ou chefe do bando".

O STF deu provimento ao recurso extraordinário com base na ausência de nexo de causalidade entre a omissão atribuída ao Estado e o dano sofrido pelos autores. Com apoio nas lições de Wilson de Melo da Silva e de Agostinho Alvim, o ministro Moreira Alves entendeu ser a teoria do dano direto e imediato, "também denominada de teoria da interrupção do nexo causal", a adotada no ordenamento pátrio, e decidiu que o dano "resultou de concausas, como a formação da quadrilha, e o assalto ocorrido cerca de vinte e um meses após a evasão", no que foi acompanhado pelos demais ministros [1].

A função precípua da subteoria da necessariedade seria determinar se uma dada condição é necessária, ou, pelo contrário, interruptiva do nexo de causalidade em relação a certo dano, sendo que, segundo o jurista, o fato natural também poderia diluir o vínculo de causa e efeito:

"Em face da teoria da necessariedade da causa, rompe-se o nexo causal, não só quando o credor ou o terceiro é autor da causa próxima do novo dano (solução de Mosca, na sua teoria da causalidade jurídica), mas ainda quando a causa próxima é fato natural (teoria de Coviello, segundo a qual o fato natural rompe o vínculo)" [2].

De mais a mais, há "uma ideia reforçada por outra", que se traduzem no conceito de "necessariedade". A explicação para o emprego da expressão "efeito direto e imediato", afirma o civilista, "consiste em demonstrar que o dano remoto dificilmente pode prender-se à inexecução de modo tal que não possamos atribuir ao concurso de outras causas" [3].

No caso trazido a lume, não se pode falar de responsabilidade do Estado ou de qualquer agente público. A razão é óbvia: o elástico lapso temporal de três meses dilui a possibilidade de existência de nexo de causalidade direta material entre os prepostos da Administração e o evento danoso. Este decorreu de causa totalmente alheia à conduta estatal. Em outras palavras: o critério cronológico e a aplicação de teoria do dano direto (e imediato) conduzem à interpretação de que, in casu, não há dever de indenizar por parte do Estado de Mato Grosso.

 


[1] O caso voltou a ser apreciado pelo STF em ação rescisória ajuizada pelos autores, os quais alegavam, segundo relatório do acórdão que a julgou, afronta ao artigo 5º, LV, da Constituição Federal, pois não lhes foi dada oportunidade para demonstrar nos autos que “não apenas um, mas a maioria dos assaltantes era de foragidos do sistema penitenciário do Estado do Paraná”. O STF entendeu pela inocorrência de erro de fato, não se verificando no acórdão qualquer desenvolvimento específico quanto à questão da causalidade. Cf. STF, Tribunal Pleno, AR 1.376, relator. ministro Gilmar Mendes, j. em 09/11/2005, DJ de 22/09/2006, p. 28.

[2] ALVIM, Agostinho. Da inexecução das obrigações e suas consequências, 4 ed. São Paulo: Saraiva, 1972, p. 372.

[3] Ibidem, p. 359-360.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!