Diário de Classe

Poder Judiciário e perfis institucionais desejáveis

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12 de setembro de 2020, 8h00

Nesta última quinta-feira (10/9), a partir de uma notícia veiculada pelo próprio site do Consultor Jurídico, Lenio Streck problematiza um tema importantíssimo para o constitucionalismo e para a democracia brasileira em sua coluna Senso Incomum: o que fazer diante de um julgamento cujo resultado gere empate no Supremo Tribunal Federal.

Streck é direto e, de forma polida, vai ao ponto ao apresentar sua crítica ao que disse o ministro Fachin: para além de reescrever o que diz o Regimento Interno desta Corte, rever o in dubio pro reo no caso de empate em julgamentos proferidos pelo STF significa uma tentativa de revisitar a história institucional do direito brasileiro e da própria civilização.

O que isso tem a ver com a minha coluna de hoje? Nesta última semana, durante a aula de Direito Constitucional que conduzo, ao ensinar aos alunos e a às alunas sobre o foro por prerrogativa de função (que é destinado aos congressistas), alguém me perguntou: mas, professora, qual a diferença entre ser julgado por um "Tribunal comum" (com todas as respeitosas aspas que a fala da pessoa requer) e ser julgado pelo Supremo Tribunal Federal? Por que seria uma vantagem ser julgado pelo STF?

Deixando de lado agora a reconstrução que fiz sobre a importância do Estatuto do Congressista, especialmente em termos de garantias e imunidades, a grande verdade é que a pergunta que foi a mim direcionada produziu inquietações hermenêuticas mesmo após a aula. E, assim, o texto de Streck sobre a questão do empate em julgamentos do STF mobilizou de uma vez por todas a escrita deste Diário de Classe: afinal, como a composição da Corte impacta seus julgamentos?

A pergunta-provocação vai além. Nesta semana também vivenciamos uma mudança na presidência de nossa Suprema Corte. Sai o ministro Dias Toffoli; entrou em seu lugar o ministro Luiz Fux. E o que disse o presidente da República sobre o acontecimento? Que a mudança oportunizava o diálogo, pois, sobre o ministro Luiz Fux, "em muitos momentos, quando o chefe do Executivo procurou o STF, por muitas vezes em decisões monocráticas [ele] muito bem nos atendeu, em outros momentos até nos surpreendeu com sua capacidade de se antecipar a problemas e já apresentar solução antes mesmo que o procurássemos".

Não é a primeira vez que o presidente se pronuncia sobre a composição do STF. Já que a Presidência da República tem a prerrogativa política de indicar nomes para a composição da nossa Suprema Corte, já em 2019, também acompanhamos outra manifestação presidencial, afirmando que indicaria para o cargo de ministro alguém "terrivelmente evangélico".

O que a coluna de Streck, a pergunta do aluno e as manifestações do presidente Jair Bolsonaro têm em comum? Tudo isso de algum modo se conecta com a qualidade da prestação jurisdicional, isto é, sobre como o Supremo Tribunal Federal decide. A diferença é que tanto Streck quanto o aluno nos instigam a refletir sobre isso, a pensar criticamente sobre o que se espera do STF, para além de um empate, para além de sua composição, para além de uma troca de presidência.

Antes de desenvolver um pouco mais o argumento, deixo aqui um alerta. Meu posicionamento não é ingênuo. Sou ciente de que, fatalmente, trocas na presidência do Tribunal impactam e que vieses influenciam julgamentos. Se não fosse assim, não faria sentido eu ter escrito um livro para criticar o ativismo judicial. Se não fosse assim, não faria sentido adotar, como pressuposto teórico, uma matriz que se preocupa com a decisão judicial (a Crítica Hermenêutica do Direito).

Mas também tenho um lugar de fala: como professora e parte da comunidade jurídica, reconhecendo tudo isso, minhas perspectivas estão direcionadas para o tanto de avanços hermenêuticos-institucionais que a reflexão crítica pode causar, na tentativa de afastar as consequências desse fatalismo que assombra nossa democracia. O projeto democrático (fundado na garantia de igualdade), o Estado de Direito e o constitucionalismo vão muito mal quando dependemos da composição da Corte. Pior ainda em tempos como os que vivemos, de sessões virtuais. E isso precisa ser dito. Muitas vezes. Por mais insuperável que pareça a questão.

Fechando o parêntese e voltando ao ponto central, tudo isso também me fez lembrar de dois momentos importantes na história do constitucionalismo norte-americano, relacionados ao papel exercido pela Suprema Corte. O primeiro deles diz respeito ao julgamento de West Coast Hotel vs. Parish (1937); o segundo, ao de Brown vs. Board of Education (1954).

O julgamento de West Coast Hotel vs. Parish (1937) faz parte de um contexto. Com dificuldades de implementar o New Deal — porque a Suprema Corte barrava, por inconstitucionalidade, suas medidas, evocando o posicionamento firmado em Lochner vs. New York (1905) –, Franklin D. Roosevelt faz lobby junto ao congresso, propondo um “Court-Packing Plan”, segundo o qual, para cada juiz da Suprema Corte que tivesse mais de 70 anos, seria nomeado um juiz extra, o que faria com que a Corte passasse de nove para dezesseis juízes.

Quando os Justices tiveram conhecimento do projeto de Roosevelt, dois meses depois, no julgamento do caso West Coast Hotel vs. Parish (1937), que envolvia a polêmica do estabelecimento do salário mínimo, mudaram o entendimento por um voto, proferido pelo Justice Owen J. Roberts. O episódio ficou conhecido como: "the switch in time that saved nine"[1] ("a mudança em tempo que salvou nove", mantida primeiro em inglês para preservar a sonoridade).

Em Brown vs. Board of Education (1954), a segregação racial volta à pauta da Suprema Corte. Em julgamento anterior, Plessy vs. Fergusson (1986), seu posicionamento já tinha dado amparo constitucional à questão, consagrando a doutrina do “separados, mas iguais”. Com a entrada do Justice Warren na composição da Corte, em um julgamento muito difícil, o desfecho muda radicalmente (causando um overruling).

Contudo, a Suprema Corte entende a importância do caso para a história norte-americana e decide ser necessária uma decisão unânime, a fim de que os argumentos contrários não sirvam de estímulo e razões ao descumprimento de sua determinação[2]. Apesar disso, o fim da segregação racial no País só aconteceu muito mais tarde, através da união de esforços dos três braços do Estado.   

Esses dois casos revelam que decisões proferidas pela mais alta corte de um país podem mudar sua história: trazem fortes impactos sociais. E é exatamente porque a Suprema Corte poderia ter decidido ao contrário nesses dois casos (que servem como mera ilustração) que precisamos, cada vez mais, poder olhar para o Judiciário, mas especialmente para esse tipo de corte — de última instância —, como instituição. E, como tal, tendo um perfil institucional desejável.

Sim, um voto em um processo judicial de julgamento colegiado importa. Um voto importa porque ele pode desempatar um julgamento. Só que não apenas por isso. Mas porque, em processos deliberativos seriamente conduzidos, com alto grau de disputa argumentativa, com argumentos jurídicos sendo postos à prova entre ministros, um voto poderia ter o condão de modificar outros, por seus fundamentos. Um voto pode ser a melhor resposta para um caso concreto. Entretanto, cada um voto corresponde ao STF, como instituição. Ou pelo menos deveria ser assim.

Assim, quanto à pergunta que me foi feita em sala de aula, gostaria de poder responder ao aluno que, em termos de qualidade na prestação jurisdicional,  não há diferença entre ser julgado originalmente pelo STF ou por outra instância jurisdicional, porque, em nenhuma das hipóteses, haverá atravessamentos políticos. Também gostaria de dizer a ele que não importa se o Ministro escolhido pelo Presidente será "terrivelmente evangélico", porque seu voto não terá uma fundamentação "terrivelmente evangélica". E que a mudança do presidente do Tribunal não impacta a relação com a Presidência da República, porque, por mais que sua nomeação tenha sido fruto da indicação do Chefe do Executivo, quando passa a compor a instituição Judiciário, seu compromisso é com o direito (com a Constituição e com a legislação democraticamente produzida), e não em ser a pessoa de confiança do presidente da República.

Mas, enquanto convivermos com o excesso de decisões monocráticas (que povoa todo o sistema judicial brasileiro); com julgamentos virtuais para casos de grande repercussão nacional; com perspectivas de diálogos que não sejam institucionais, colocando o Supremo Tribunal Federal no papel de estar à serviço de quaisquer dos outros Poderes (políticos) no atendimento de suas demandas, ainda que aparentemente revestidas de interesse público, infelizmente, nenhuma daquelas respostas será possível.   

[1] TRACHTMAN, Michael G. The Supremes’ greatest hits: the 37 Supreme Court cases that most directly affect your life. Revised & updated edition. New York: Sterling Publishing Co. Inc., 2009. p. 106-108.

[2] KLARMAN, Michael. Brown vs. Board of Education. In: ______. Unfinished Business: Racial Equality in American History. Oxford: Oxford University Press, 2007. p. 147-164. (capítulo 9).

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