Por um Direito Eleitoral comprometido com a Constituição: há trigo no meio do joio!
11 de setembro de 2020, 15h11
O Brasil é um país marcado pelo autoritarismo, onde as relações sociais se estruturam de forma vertical e aqueles que se situam no topo enxergam o Estado como patrimônio seu. Desde sua formação, a violência tem sido a regra nas relações entre governos locais e cidadãos, fruto de um contexto no qual o poder que os caudilhos e coronéis exerciam em suas fazendas acabava por extrapolar as cercas e incidir sobre toda a população.
Em uma época na qual cerca de um quarto da população brasileira era composta por pessoas escravizadas e a imensa maioria dos brasileiros e das brasileiras morava no campo [1], o poder dos coronéis mantinha um extraordinário contingente humano à margem da autoridade estatal. Eram largos espaços alheios ao Direito oficial, uma realidade que colocava em campos opostos o que Raimundo Faoro chama de Brasil legal e Brasil real [2].
A abolição formal da escravidão, em 1888, e a proclamação da República, no ano seguinte, trouxeram muitas mudanças institucionais, mas não foram suficientes para alterar a lógica de dominação vigente. As estruturas sociais se mantiveram firmes, assim como a confusão entre espaços públicos e privados, realidade diretamente refletida nas eleições.
Em um país onde a esmagadora maioria das pessoas era analfabeta (em 1872, cerca de 25% dos homens e 18% das mulheres eram alfabetizados [3]), o percentual de eleitores ao longo de toda a República Velha era baixíssimo. No pleito presidencial de 1898, o primeiro no qual todos os estados participaram, o universo de eleitores (apenas homens alfabetizados, lembre-se) montava a 2,7% da população, proporção que se manteve relativamente estável nas décadas seguintes. Evidentemente, a participação política não era uma prioridade [4].
Durante longo tempo, as eleições funcionam como uma estratégia para legitimação do poder, donde a vitória a qualquer preço se coloca como uma meta para todos os envolvidos nas disputas. Assim, mantém-se viva a noção de governo como um espaço de poder pessoal. Arranjar empregos públicos, construir estradas nas terras dos amigos ou assegurar a primazia nos contratos administrativos são condutas vistas como naturais em um contexto no qual o público e o privado se confundem a ponto de não mais se perceber distinção entre eles [5]. Eleições e corrupção seguem como parceiros inseparáveis.
O tempo passou e, com ele, inúmeras mudanças vieram. O segredo do voto, o sufrágio feminino, os mecanismos de fiscalização, uma Justiça Eleitoral atuante e um sistema jurídico normativo robusto, entre outros fatores, transformaram radicalmente este cenário. Mas não foram suficientes para expurgar definitivamente velhas — velhíssimas — práticas, culturalmente arraigadas nas disputas eleitorais e na gestão da coisa pública.
É fato que persiste no Brasil uma cultura que confunde público e privado, que faz com que muitos busquem cargos eletivos com claro propósito de atender a projetos pessoais de poder, pelo que se valem de todos os artifícios — lícitos ou não — para lograr êxito nas eleições. Porém, até onde essa aparente tendência atávica ao desvio eleitoral repercute na maneira como os candidatos e as candidatas, eventualmente acusados pela prática de ilícitos, devem ser tratados? Essa desconfiança disseminada autoriza que o Direito e o Processo Eleitorais sejam orientados segundo um modelo punitivista, que, em nome da garantia de lisura nos pleitos, coloca em risco direitos e garantias fundamentais dos réus?
Adianta-se a resposta: é possível falar em um Direito e um Processo Eleitoral orientados pela defesa de direitos fundamentais individuais, preocupados em assegurar as garantias constitucionais reconhecidas a todos — em que se incluem candidatos e candidatas acusados pela prática de ilícitos eleitorais, sem que isso implique em colocar em risco uma luta histórica contra a corrupção e o clientelismo.
O que se chama genericamente de corrupção eleitoral engloba todo tipo de conduta que possa vir a falsear o resultado do pleito, seja pela manipulação dos instrumentos de apuração, seja pela manipulação da vontade do eleitorado. Em qualquer dos casos, o equilíbrio que deve existir — ao menos idealmente — entre as pessoas candidatas é quebrado, ampliando-se as chances daquelas que se valem de meios escusos.
É evidente que nenhuma democracia pode sobreviver se contaminada por esse tipo de vício, afinal, regimes democráticos pressupõem a plena capacidade de cidadãos e cidadãs expressarem suas vontades e influenciarem no processo decisório [6]. Considerando que um dos fundamentos do Estado brasileiro é a defesa da democracia, pode-se afirmar com toda convicção que todo e qualquer instrumento voltado a assegurar sua plena expressão deve ser utilizado.
Seria possível, então, concluir que a mera dúvida acerca da lisura de um candidato ou candidata deveria implicar em seu afastamento cautelar da disputa, de modo a preservar o equilíbrio democrático do pleito? Embora o histórico que acompanha as eleições no Brasil, como visto linhas acima, induza a uma resposta positiva, essa não é a melhor solução.
Analisando a questão sob a perspectiva dos direitos fundamentais, vê-se que, em verdade, há um conflito potencial a ser equacionado. Afinal, se é imprescindível assegurar respeito ao princípio democrático, valor constitucionalmente consagrado, também é necessário cuidar de garantir a integridade dos direitos individuais dos acusados, onde se incluem a presunção de inocência, a ampla defesa ou a paridade de armas, por exemplo.
Ora, asseveram várias vozes, o interesse coletivo deve sempre prevalecer sobre o individual, especialmente em matéria eleitoral, pois o que está em jogo são interesses maiores. Será mesmo?
A teoria dos direitos fundamentais ensina que não existe, em abstrato, hierarquia entre direitos dessa natureza. Seja qual for a categorização utilizada, individuais ou coletivos, sociais, políticos ou de liberdade, todos são direitos de idêntico status. Eventuais sopesamentos só podem ser feitos diante de casos concretos, sempre de forma justificada, a evidenciar a possibilidade de a um direito ser momentaneamente atribuído peso inferior [7].
Semelhantes noções surgem no contexto da valorização dos direitos fundamentais, que vem na onda do constitucionalismo humanista do pós-guerra, centrado na defesa do ser humano [8]. Uma defesa que deve se dar em qualquer situação, inclusive quando a pessoa se vê na condição de ré em um processo, momento em que precisa se ver protegida contra o risco de arbítrio no exercício do poder punitivo estatal. Afinal, ao menos em tese, ninguém perde a condição de humanidade ao ser acusado da prática de algum ato ilícito. E nem mesmo em caso de condenação.
Ninguém se espanta com discussões acerca da aplicação de uma hermenêutica orientada pelos direitos fundamentais em campos como o Direito Administrativo ou o Processo Civil. O Direito de Família foi profundamente reformulado a partir da incorporação desta perspectiva. Até áreas aparentemente estranhas a discussões centradas na valorização de direitos fundamentais, como o Direito Empresarial, foram virtuosamente afetadas pela expansão de uma hermenêutica constitucional.
Quando se fala do Direito Eleitoral, tal discussão ganha um peso ainda mais significativo, posto que área voltada a assegurar a plena eficácia de um conjunto de direitos fundamentais, quais sejam, os direitos políticos. Assim, qualquer decisão que tenha por consequência restrições à elegibilidade afeta, inevitavelmente, esfera de direitos fundamentais. Logo, todo cuidado precisa ser tomado, assegurando-se ao réu no processo eleitoral estrito respeito às garantias constitucionais. E isso não pode ser lido como atentado contra a democracia ou acobertamento de desvios. Afinal, lembre-se, a defesa de direitos fundamentais pode demandar a redução do peso relativo de outros, nunca seu aniquilamento.
Olhada cuidadosa sobre a tradição jurisprudencial do Tribunal Superior Eleitoral mostra que, em regra, há um razoável cuidado em conduzir os processos, em especial os que tenham por objeto a análise de condutas que possam acarretar perda de mandato eletivo e aplicação de pena de inelegibilidade, assegurando que garantias mínimas sejam observadas. O estudo dessa mesma jurisprudência mostra que isso não implica em absolvições em série, pelo contrário. São inúmeras as condenações, em todos os níveis, com consequentes restrições a direitos políticos.
A defesa da democracia e a luta contra a corrupção eleitoral não podem ser feitas por meio da supressão de direitos fundamentais. A lógica punitivista, tão em moda nestes tempos, não é caminho adequado para corrigir distorções históricas, culturalmente arraigadas e que, sem qualquer dúvida, precisam ser expurgadas. Nenhum processo judicial pode servir de campo para perseguições pessoais, vinganças privadas ou "justiçamentos". Democracia pressupõe respeito aos direitos fundamentais. De todos e todas.
[1] PAIVA, Clotilde A. et alii. Publicação crítica do Recenseamento Geral do Império do Brasil de 1872. Núcleo de Pesquisa em História Econômica e Demográfica – NPHED. Faculdade de Ciências Econômicas. UFMG. Disponível em < http://www.nphed.cedeplar.ufmg.br/wp-content/uploads/2013/02/Relatorio_preliminar_1872_site_nphed.pdf > Acesso em 17 mai. 2018.
[2] FAORO, Raymundo. Os Donos do Poder. Formação do patronato político brasileiro. 3. ed. São Paulo: Globo, 2001, p. 353-354.
[3] PAIVA, Clotilde A. et alii. Publicação crítica do Recenseamento Geral do Império do Brasil de 1872.Op. cit.
[4] FAORO, Raymundo. Os Donos do Poder. Op. cit., p. 698-699.
[5] LEAL, Victor Nunes. Coronelismo, Enxada e Voto. O município e o regime representativo no Brasil. 3. ed. 6. reimpr. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, p. 60.
[6] DAHL, Robert A. Sobre a Democracia. Trad. Beatriz Sidou. Brasília: UnB, 2009.
[7] ÁVILA, Humberto Bergmann. Teoria dos Princípios – da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 19. ed. São Paulo: Malheiros, 2019.
[8] SANTIAGO, Marcus Firmino. Neoconstitucionalismo: efetivação de direitos fundamentais e atividade jurisdicional. in SANTIAGO, Marcus Firmino (org.). Desjudicialização do Debate sobre Efetividade dos Direitos Sociais. Vol. 1. Brasília: IDP, 2014. Disponível em https://repositorio.idp.edu.br/bitstream/123456789/1746/1/Desjudicializa%c3%a7%c3%a3o_do_Debate_Sobre_Efetividade_dos_Direitos_Sociais_%e2%80%93_Volume_1.pdf.
Encontrou um erro? Avise nossa equipe!