Improbidade em Debate

(I)legitimidade do MPF para ajuizar ação de improbidade contra município

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11 de setembro de 2020, 9h51

Discussão atual e importante foi novamente enfrentada pela 2ª Turma do Superior Tribunal de Justiça na última terça feira (8/9). Por ocasião do julgamento do REsp 1.874.794, aquele colegiado, mais uma vez, se debruçou sobre a (i)legitimidade do Ministério Público Federal para propor ação de improbidade contra ente municipal com base em descumprimento da Lei de Acesso à Informação (nº 12.527/2011).

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Ainda que, naturalmente, o acórdão recém proferido esteja pendente de publicação, do julgamento foi possível extrair que seus fundamentos replicaram aqueles que nortearam outro aresto, prolatado no REsp 1.784.354 (DJ de 18.10.2019), de mesma relatoria.

Em suma, tanto num caso, quanto no outro, cuidou-se de recurso especial contra acórdão de segundo grau que extinguiu processo sem resolução de mérito por reputar ilegítimo o Ministério Público Federal. No caso específico do REsp 1.784.354, a Corte recorrida assentou que "a causa de pedir se baseia na violação de regras estabelecidas em legislação de caráter nacional, o que, por si só, não atinge direito ou interesse federal direto, concreto e específico. A União não possui interesse na discussão relativa ao descumprimento por parte do ente municipal no tocante à regularidade no sítio eletrônico já implantado ou à implantação do Portal Transparência".

Invocando violação ao artigo 8º, §2º, da Lei Complementar nº 75/1993, foi manejado recurso especial, provido pelo Superior Tribunal de Justiça, sob o fundamento de que "o Município recorrido recebe verbas oriundas da União, devendo o recebimento e a aplicação constar no portal da transparência do Município. Frise-se que a inadimplência do Município com sua obrigação para com a transparência pode gerar inclusive a suspensão de repasses federais".

De nossa parte, todavia, temos dúvidas quanto ao acerto do entendimento. É que, conquanto a Lei de Acesso à Informação cuide de norma nacional, sua violação por ente municipal possui aptidão para gerar lesão, em certo sentido, limitada à população e à territorialidade municipal.

Dito de outro modo, se a ação de improbidade visa a coibir, com o perdão da tautologia, ofensa à probidade, o desrespeito por município à Lei de Acesso à Informação vulnera a probidade administrativa e a publicidade titularizadas, diretamente, pela população do respectivo município, e não, indiscriminadamente, por todos os nacionais.

Não estamos a sustentar nenhum exotismo. Como sabido, sanções de proibição de contratação com o poder público, atualmente, são propensas a observar uma correlação com o âmbito territorial em que operada a lesão (AgInt no REsp 1.589.661/SP, DJe 24/3/2017). Se hoje a amplitude da censura observa correspondência com a localidade vitimada pela ilegalidade, por que, então, haveria de ser diferente com relação à aferição de legitimidade?

Ademais, se o fato de o parâmetro de controle cuidar de lei nacional justificasse a legitimidade do Ministério Público Federal, haveria uma supercompetência ministerial, bastando imaginar que todo certame licitatório ficaria sujeito à sindicância ministerial federal por potencial violação às normas gerais da Lei nº 8.666/1993, de cunho nacional.

Tampouco há que se falar em que o repasse de valores pela União aos municípios funcionaria como justificativa para a legitimidade do Ministério Público Federal. A nosso ver, tanto não há lesão direta ao erário decorrente de inobservância da Lei de Acesso à Informação, como, também, há mecanismos outros, diversos, mais adequados à requisição de informações, se o caso (e.g., atribuições de competência do Tribunal de Contas da União).

Aprofundando o ponto, da mera inobservância da Lei de Acesso à Informação não vemos como depreender lesão ao erário, muito menos que seja possível presumir, de modo absoluto, que essa lesão possa ter atingido recursos federais. A rigor, fosse o caso de se inferir de repasses federais uma competência do Ministério Público Federal, uma vez mais, sua legitimidade seria ampla, amplíssima, quando menos porque, em razão do Fundo de Participação dos Municípios, esses entes fatalmente receberão recursos da União, o que, em última análise, transformaria qualquer prejuízo ao erário municipal em, indiretamente, lesão ao erário federal. Isto é, a perseverar a indistinção entre as rubricas de aporte ao erário municipal, qualquer desfalque possuiria aptidão para atrair a legitimidade do Ministério Público Federal, eis que, ainda que indiretamente, estaria em risco parcela de valores oriundos da União.

Finalmente, cumpre relembrar que o próprio Superior Tribunal de Justiça, apoiado em julgado do Supremo Tribunal Federal, firmou o posicionamento de que a simples presença do Ministério Público Federal na demanda desloca a competência para seu julgamento para a Justiça Federal, de sorte que a legitimidade daquele órgão se identifica com as hipóteses do artigo 109, I, da Constituição:

"Haverá a atribuição do Ministério Público Federal, em síntese, quando existir interesse federal envolvido, considerando-se como tal um daqueles previstos pelo artigo. 109 da Constituição, que estabelece a competência da Justiça Federal. Assim, tendo sido fixado nas instâncias ordinárias que a origem da Ação Civil Pública é a malversação de recursos públicos repassados por ente federal, justifica-se plenamente a atribuição do Ministério Público Federal. Nesse sentido, confira-se precedente do Pleno do Supremo Tribunal Federal: ACO 1463 AgR. Relator Minº Dias Toffolli, Tribunal Pleno, julgado em 1/12/2011. Acórdão eletrônico DJe-22 Divulg. 31-01-2012 Public. 1-2-2012 RT v. 101, a 919.2011 p. 635-650. (RMS 56135/SP, DJ de 11.10.2019)".

Na esteira desse entendimento, e examinado detalhadamente o artigo 109 da Constituição, não logramos identificar, ainda em que interpretação elastecida, inciso a acomodar a simples inobservância da Lei de Acesso à Informação; ao revés, todos os incisos do sobredito artigo 109 enunciam situações em que o interesse da União é direto, imediato, do que deflui, por mais esta vereda, nossa conclusão pela ilegitimidade do Ministério Público Federal, sob pena de se instalar situação de risco de usurpação de competência, seja dos Ministérios Públicos dos Estados, seja das Cortes de Contas, mesmo a da União.

Autores

  • é sócio-fundador do Mudrovitsch Advogados, professor de Direito Público, doutor em Direito Constitucional pela USP e mestre em Direito Constitucional pela UnB. Membro do grupo de trabalho instaurado pelo Conselho Nacional de Justiça destinado à elaboração de estudos e indicação de políticas sobre eficiência judicial e melhoria da segurança pública.

  • é sócio do Mudrovitsch Advogados, especialista em Direito Constitucional, mestre e doutorando em Direito pelo Instituto Brasiliense de Direito Público, professor de Processo Civil do IDP e vice-Presidente da Associação Brasiliense de Direito Processual Civil.

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