Opinião

Não existe qualquer ilegalidade no afastamento de Wilson Witzel

Autor

  • Adib Abdouni

    é advogado constitucionalista e criminalista e autor do livro "Fake News e os Limites da Liberdade de Expressão".

10 de setembro de 2020, 6h05

No Brasil, a impressionante — e aparentemente irrefreável — proliferação de autoridades acusadas de crimes permanece na ordem do dia, assim como a discussão sobre a judicialização da política, que, para muitos, mostra-se excessiva.

No caso, chama-nos a atenção o afastamento do governador do Estado do Rio de Janeiro, Wilson Witzel, recém-determinado pelo Superior Tribunal de Justiça, dada a gravidade da medida deferida em desfavor de um agente político legitimamente eleito pelo povo.

Especialmente porque o legislador constituinte de 1987/1988, norteado pelo espírito de expurgar do mundo jurídico as mazelas deixadas pelo período ditatorial, foi expresso ao restaurar de forma definitiva no país o fortalecimento da democracia, na esteira do fundamento nuclear de que todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de seus representantes eleitos, a fim de construir uma sociedade livre, justa e solidária.

Daí ter-se instalado no território nacional um Estado de plena liberdade democrática, na exata diretriz de que todos são iguais perante a lei, garantindo-se aos brasileiros o exercício da soberania popular mediante o sufrágio universal, pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos.

Contudo, passados pouco mais de 30 anos desde a promulgação da Carta Magna, aquele ideário democrático manifestado pelos constituintes parece ter-se dissipado no tempo, tendo em vista o abatimento da probidade e da moralidade dos atores políticos, que passaram a incorrer invariavelmente em atos delituosos — dissociados de uma coesão ideológica verdadeiramente republicana — a afetar a normalidade da legitimidade de sua eleição, notadamente pela nefasta interferência de interesses espúrios próprios e do poder econômico que os tenha auxiliado na eleição, a resultar no desvio de finalidade da representação, e, por conseguinte, em abuso do exercício da função pública.

Por essa razão, não podemos esquecer que o legítimo exercício dos mandatos políticos em nome do povo não autoriza o arbítrio, o abuso de poder e, sobretudo, a corrupção, de modo que compete ao Poder Judiciário — assim que provocado pelo órgão acusatório Ministério Público — julgar tantos e quantos sejam os acusados, independentemente de suas castas ou de ocuparem ou não os mais altos cargos da elite política brasileira.

Isso porque, segundo a Constituição Federal, todos são iguais perante a lei, inexistindo imunidade apta a mitigar o postulado da inafastabilidade de jurisdição, que não deve ser confundida com o ativismo judicial, caracterizada quando magistrados ou tribunais, demasiadamente proativos, desbordam de sua função institucional e democrática, procurando intervir e ocupar os vácuos deixados pelo Poder Legislativo, o que se mostra pernicioso ao princípio da separação de poderes.

No caso de Wilson Witzel, a nosso ver, nada nada há de antijurídico que afete a licitude do que decidido pelo STJ, eis que, constitucionalmente, compete àquela corte dispor sobre a aplicação de medidas cautelares penais contra governadores de Estado, inclusive de afastamento do cargo.

Até porque o proferimento de uma decisão dessa magnitude — ainda quando de sua tomada unipessoal — não implica qualquer ofensa ao princípio da colegialidade, tampouco a tese de autoconcentração de poderes do relator, tendo em vista que o ministro relator de um processo — sempre que estiver diante de situações que reclamem decisões urgentes —, tem o dever legal de decidi-las monocraticamente (a fim de evitar o retardamento da entrega da prestação jurisdicional), desde que o faça de forma fundamentada, sem prejuízo de sua revisão pelos demais componentes da turma julgadora, ad referendum ou mediante provocação recursal da parte interessada.

Nessa linha, o que decidido pelo ministro relator do inquérito, Benedito Gonçalves — determinando o afastamento do governador Wilson Witzel por 180 dias (que, de sua parte, genericamente, procura negar os atos ilícitos de corrupção que lhes são imputados, sob o raso fundamento de que não teria recebido quaisquer valores desviados dos cofres públicos) —, restou referendado pela maioria absoluta e indiscutível dos membros da corte especial, face à manifestação de confirmação majoritária conferida por 14 dos 15 ministros mais antigos do STJ.

Com efeito, emerge dos autos em curso perante o STJ — não só para aqueles que tiveram a oportunidade de sobre eles se debruçar, mas também por tudo aquilo que foi divulgado pela imprensa nacional e do que contido nas manifestações individuais dos ministros que compõem a corte especial do Superior Tribunal de Justiça —, que a investigação acerca das irregularidades concernentes a desvios de recursos públicos da saúde do Rio de Janeiro traz à tona fatos delituosos demasiadamente graves, com origem nos mais repugnantes esquemas de locupletamento ilícito que — em tudo e por tudo — guardam terrível similaridade aos atos deletérios incorridos pelas administrações anteriores de Sérgio Cabral e Luiz Fernando Pezão, que levaram essa unidade da federação a uma situação fiscal pré-falimentar.

Além do que — a notabilizar a gravidade da acusação — cuidam-se de prováveis atos ilegítimos que foram praticados no momento de uma das maiores crises sanitárias mundiais, causada pela Covid-19, o que exigiria, a contrario sensu, que o governador Wilson Witzel adotasse o implemento austero de uma gestão de recursos públicos emergenciais, com a finalidade de conter o avanço dos efeitos nefastos da pandemia sobre a sociedade, especialmente sob o enfoque da saúde, ante o risco concreto e iminente do efeito mais abominável da moléstia, qual seja,  a perda da vida.

E os fatos até agora demonstrados — sem prejuízo do direito de defesa —, ao que tudo indica, revelam que disso o governador não se desincumbiu.

Daí, na esfera jurídico-processual penal, o acerto da decisão confirmatória havida no âmbito do STJ no sentido de conformar o afastamento do governador — medida menos drástica do que a requerida pelo órgão acusador, que ambicionava a prisão preventiva do aludido mandatário —, a fim de obstar que o investigado permanecesse no exercício do cargo de gestor mais importante do Estado fluminense.

E a tecnicidade ora apontada encontra arrimo idôneo no artigo 319, inciso VI, do Código de Processo Penal, que prevê, entre as medidas cautelares em ações penais diversas da prisão, a suspensão do exercício de função pública ou de atividade de natureza econômica ou financeira quando houver justo receio de sua utilização para a prática de infrações penais, decretadas pelo magistrado de primeira ou última instância cognitiva e a requerimento das partes ou no curso da investigação criminal, por representação da autoridade policial ou mediante requerimento do Ministério Público.

Notadamente porque, no caso, mostra-se presente, de forma indubitável, a necessidade de preservação da aplicação da lei penal — em observância à eficácia da investigação e da instrução criminal — e da gravidade do crime submetido à apuração, além das condições especialíssimas dos fatos e das condições pessoais do averiguado. 

Legislação penal essa que — ao contrário do que alardeado pela defesa do governador —, em casos de urgência ou de perigo de ineficácia da medida autoriza o julgador ou colegiado a tomar a decisão sem antes ouvir a parte contrária, sem que isso implique violação ao princípio do devido processo legal ou do contraditório.

Mesmo porque o próprio Regimento Interno do Superior Tribunal de Justiça estabelece em seu artigo 34 que compete ao ministro relator e ao colegiado correspondente ordenar e dirigir o processo, de modo a determinar às autoridades sob sua tutela penal a observar as ordens e determinações judiciais — ainda que de índole provisórias — dotadas de efeitos neutralizantes, necessárias e suficientes à proteção de direitos suscetíveis — como no caso em apreço — de grave dano de incerta reparação ou ainda, indispensáveis a garantir a eficácia da ulterior decisão da causa.

Assim, ponderando-se o entrechoque dos bens jurídicos constitucionalmente tutelados em jogo — interesse público versus interesse pessoal da autoridade pública investigada —, a medida judicial cautelar imposta mostra-se induvidosamente necessária para impedir que o governador (que parece exteriorizar conduta não condizente ao desempenho do seu mandato e aos ditames da Constituição Federal) encontre-se em condições tais a possibilitar a utilização da máquina estatal para, em tese, seguir praticando crimes e dilapidando os cofres públicos, mas também para obstruir a realização da justiça e para preservar as investigações, assim como a aplicação da lei penal, haja vista que o mandato eletivo, deferido em nome do povo, não autoriza o arbítrio ou o abuso de poder, na exata diretriz constitucional que preconiza inexistir imunidade apta a mitigar o postulado da inafastabilidade de jurisdição.

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