Opinião

Mesmo com decisão do STF sobre TR, nosso processo civil ainda é defeituoso

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9 de setembro de 2020, 7h05

Em 27 de agosto passado, o Supremo Tribunal Federal confirmou, mais uma vez, que a TR (Taxa Referencial), uma taxa referencial de juros publicada pelo Banco Central, não serve como substituto de índice de correção monetária — que tem por função compensar a desvalorização das dívidas em moeda com o passar do tempo — especialmente porque a TR tem sido fixada em percentual bem abaixo da desvalorização da moeda, gerando prejuízo patrimonial aos credores.

A nossa TR foi um sonho dentro de um plano de estabilização da moeda que não deu certo. É adotada e funciona em países com histórico de inflação próximo de zero, o que não é o nosso caso. O Supremo fez muito bem em impedir o uso da TR como substituto de índice de correção monetária. Fez aplicação prática do direito de propriedade e do devido processo legal justo, assim protegendo os jurisdicionados, garantindo que recebam integralmente os seus créditos.

Tem um ponto no processo judicial, entretanto, em que os jurisdicionados estão sofrendo prejuízo patrimonial muito maior, fazendo com que recebam menos do que foi reconhecido judicialmente, com descumprimento do direito de propriedade e do devido processo legal justo, mas sobre o qual o plenário do Supremo ainda não se pronunciou definitivamente. É a questão do ressarcimento do vencedor do processo das despesas com seu advogado, encoberta pela nomenclatura "honorários de sucumbência".

Quem vai ao Judiciário para garantir seu direito tem despesas com custas dos atos do processo, eventualmente despesas com viagens, honorários do assistente técnico (contratado pela parte) e do perito (nomeado pelo juiz), diárias de testemunhas e, principalmente, despesas com seu advogado, os chamados honorários contratuais, quase sempre as de maior valor. O atual Código de Processo Civil manda o vencido ressarcir ao vencedor as despesas que antecipou (artigo 82), cumprindo o princípio da reparação integral. Entretanto, ao listar as despesas, não cita as maiores, com o advogado (artigo 84).

Pela letra fria do Código de Processo Civil atual, o vencedor do processo recebe somente parte do seu direito, em torno de 80%, afrontando mortalmente os princípios da reparação integral, do devido processo legal justo e da garantia da propriedade, malferindo a própria dignidade da Justiça e os fundamentos da democracia. O cidadão, que é obrigado a buscar o Judiciário para realizar seu direito, encontra um processo civil defeituoso, apropriado para aumentar a remuneração do advogado, em detrimento do cidadão.

Tome-se, como exemplo, um empresário que vai ao Judiciário para anular uma multa municipal de R$ 100 mil. Contrata honorários de 20%, paga R$ 2 mil de custas, R$ 3 mil com parecer do assistente técnico e R$ 5 mil de honorários do perito judicial. Ganha a causa, recebe de volta os R$ 100 mil da multa, mais R$ 10 mil de ressarcimentos (custas, honorários do assistente e perito) e paga R$ 20 mil ao advogado, ficando com R$ 80 mil, bem menos do que lhe foi tomado indevidamente. O advogado, ainda no exemplo, recebe mais R$ 15 mil de honorários de sucumbência, totalizando R$ 35 mil. O empresário vai ter de abrir outro processo para reaver o que gastou com seu advogado, numa circularidade infinita? Como um processo com esse resultado pode ter sustentação constitucional?

Chega a ser risível que um código técnico mande ressarcir despesas esporádicas, como diárias de testemunhas, honorários do perito e assistente técnico, mas não mande ressarcir a despesa natural e maior em todos os processos, os honorários pagos pelo vencedor ao seu advogado. É chocante o argumento, muitas vezes levantado, de que o advogado é escolhido e contratado pela parte, não sendo despesa do processo. O assistente técnico também é contratado pela parte e o CPC manda ressarcir.

Isso ocorre porque houve um desvio propositado na legislação, daqueles que transformam o círculo em quadrado e geram distorções sistêmicas. No CPC anterior (1973), havia a óbvia regra que determinava ao vencido (sucumbente) pagar ao vencedor as despesas de advogado, chamadas de honorários de sucumbência. Uma verba de natureza ressarcitória, de titularidade da parte vencedora, fixada pelo juiz, de acordo com a complexidade do caso (para evitar ressarcimentos injustificáveis).

O nome (honorários de sucumbência) certamente ajudou que essa verba fosse desviada legislativamente para o advogado do vencedor, primeiro pelo Estatuto da OAB (Lei 8.906/94) e depois pelo CPC de 2015. Uma verba ressarcitória do vencedor do processo, indispensável para razoável reparação integral, foi transformada em verba remuneratória do advogado. O advogado passou a ter duas remunerações (honorários contratuais e honorários de sucumbência, em alguns casos até 40% do resultado econômico).

O Supremo começou a enfrentar o problema na ADI 1.194-4/DF, entretanto, após quatros votos pela inconstitucionalidade da transferência dos honorários de sucumbência para o advogado (ministros Gilmar Mendes, Cezar Peluzo, Marco Aurélio e Joaquim Barbosa), arquivou a ação por questão processual levantada pela OAB. Uma segunda ADI (5055) sobre o mesmo tema também foi arquivada por questões processuais (impertinência temática e ilegitimidade ativa). Os jurisdicionados estão desamparados. O processo civil está manco.

Recentemente, o Supremo voltou ao tema, mas estritamente com foco na transferência dos honorários de sucumbência para os advogados públicos (ADI 66.053) e, por maioria, decidiu pela constitucionalidade da transferência. Nesse caso, há um diferencial relevante justificador, o próprio titular do direito, o poder público, decidiu renunciar à antiga receita em benefício do seu representante judicial. É como quando o particular titular da verba ressarcitória, devidamente informado, transfere-a por contrato ao seu procurador.

Em relação aos jurisdicionados privados, entretanto, a questão ainda está aberta. O Estado legislador invadiu o patrimônio do cidadão comum, mudou a natureza jurídica de uma verba, manipulou a lógica financeira das contas processuais, prejudicando patrimonialmente o jurisdicionado. O nosso processo civil está defeituoso, o Judiciário não dá "a cada um o que é seu". A construção da cidadania e a confirmação da democracia dependem de contínuas correções de injustiças. É o que se espera.

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