Direto do Carf

Regimes procedimentais da anulação e da reforma parcial de decisões da DRJ no Carf

Autor

  • Carlos Augusto Daniel Neto

    é sócio do escritório Daniel & Diniz Advocacia Tributária doutor em Direito Tributário pela Universidade de São Paulo (USP) mestre em Direito Tributário pela PUC-SP com estágio pós-doutoral em Direito Tributário na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) é visiting scholar no Max-Planck-Instituts für Steuerrecht und Öffentliche Finanzen ex-conselheiro titular da 1ª e 3ª Seções do Carf pesquisador do NEF/FGV presidente da Comissão de Direito Aduaneiro do Iasp e professor permanente do mestrado profissional do Cedes e da pós-graduação do IBDT.

9 de setembro de 2020, 11h15

Na coluna desta quarta-feira (9/9), abordaremos um tema bastante específico do rito do PAF, qual seja, o procedimento específico a ser adotado nos casos de anulação e reforma (parcial) de decisões da DRJ, por acórdãos do Carf. Esse ponto é absolutamente lacônico no regimento interno do órgão, não havendo qualquer regra específica sobre o tratamento dessas ocorrências, razão pela qual abordaremos o seu vigente regime procedimental, à luz da legislação pertinente.

Spacca
Em breve síntese, o acórdão é anulado quando ele possui algum vício material (como inovação no critério jurídico adotado pela fiscalização, ausência de motivação etc.) ou formal (vício de procedimento, incompetência etc.) que o torne juridicamente inválido, de modo que o Carf, ao pronunciar tal nulidade, desfaz o ato em questão, declarando prejudicados os atos posteriores, se for o caso, e determinando que a DRJ profira nova decisão, conforme estabelecido no artigo 59, §§1º e 2º do Decreto nº 70.235/72 1.

Por outro lado, há situação distinta quando o acórdão é objeto de reforma total ou parcial. A reforma total implica a alteração integral do entendimento firmado pela instância a quo, ao passo que a reforma parcial se dá quando o Colegiado ad quem reforma questão preliminar (de caráter processual ou de mérito) ou prejudicial (de caráter meritório 2) acatada pela instância anterior, determinando o retorno à DRJ para que ela prossiga na análise das demais questões impugnadas, proferindo acórdão complementar, sob pena, inclusive, de uma indevida supressão de instância.

Essa distinção de tratamento entre anulação e reforma, conquanto presente nos julgamentos, não encontra previsão regimental expressa. Não obstante, ela foi expressamente considerada no "Manual do Presidente de Turma", editado pelo próprio Carf, que reflete o entendimento institucional acerca de questões procedimentais, verbis:

"Ainda no que diz respeito às preliminares, convém destacar que, se o colegiado ad quem superar, por decidir de forma diversa, uma preliminar acolhida pelo colegiado a quo, essa decisão ad quem não implica nulidade da decisão a quo, mas simplesmente a sua reforma e, conforme a natureza da preliminar, o processo poderá retornar à autoridade julgadora a quo, para que esta prossiga na apreciação antes interrompida com o acolhimento da preliminar. (…)

Mantida a preliminar pela DRJ, cabe Recurso Voluntário ao Carf. Nesse caso, se a preliminar for superada pelo colegiado do Carf, o processo deverá ser devolvido à DRF, para prosseguimento da análise do pleito do interessado. Reitera-se que a parte prejudicada deve ser cientificada, já que tem direito a recorrer, se for o caso" 3 (grifos do autor).

O manual estabelece expressamente a distinção entre a anulação e reforma, bem como estabelece o procedimento ulterior no caso de reforma, com a devolução do processo à DRJ para exame dos demais argumentos do contribuinte ou responsável. Após a decisão da DRJ, caso tenha havido qualquer espécie de prejuízo à parte, ela terá direito de apresentar novo recurso voluntário.

Esse ponto é interessante pela miscelânea de situações que podem surgir. Consideremos um caso no qual a DRJ tenha dado provimento a uma preliminar de decadência, a qual foi reformada pelo Carf, com remessa à DRJ para análise dos demais argumentos.

Caso a nova decisão da DRJ dê provimento ao mérito da impugnação do contribuinte, o recurso voluntário dele deverá ser considerado prejudicado; por outro lado, caso seja negado, o contribuinte terá direito de apresentar novo recurso, se manifestando sobre a decisão.

E nos casos em que há contribuintes e responsáveis? É preciso atentar que existem questões comuns entre eles, e questões específicas de cada um (e.g. as condições de imputação de responsabilidade), além disso, mesmo em questões comuns, é possível que eles apresentem argumentos distintos para o provimento. Caso o Carf reforme o acórdão da DRJ, na parte em que proveu uma questão específica do responsável (que subiu por meio de recurso de ofício), tendo deixado de analisar os seus argumentos de mérito, ele não pode julgar de imediato a questão comum aduzida pelo contribuinte em um eventual RV, devendo mantê-lo sobrestado, aguardando a nova decisão da DRJ (e, caso haja algum prejuízo ao responsável, um novo RV da sua parte), para que o julgamento seja retomado, com toda a matéria devolvida à segunda instância, sob pena de cerceamento do direito de defesa.

Sobre esse tema, há alguns acórdãos que abordam a matéria com exemplar clareza.

No acórdão nº 1402-002.254 4, verificou-se que um argumento de mérito restou prejudicado, não tendo sido analisado pela DRJ. Em razão disso, e para evitar supressão de instância, a turma determinou o retorno dos autos à DRJ, "a fim de que seja prolatada decisão complementar com apreciação dessa matéria", inclusive especificando o rito que deveria ser adotado, a depender do entendimento da DRJ, na linha do que pontuamos acima.

O acórdão nº 1402-000.363 5 vai além, não apenas apontando que a decisão recorrida deixou de analisar uma questão de mérito prejudicada, determinando a sua reforma parcial 6, para que a turma a quo analise esse ponto em decisão complementar a ser proferida, bem como determinando que "após a ciência desse novo acórdão, transcorrido o prazo para a apresentação do recurso voluntário, (…) retornem-se os autos a este colegiado para inclusão em nova pauta de julgamentos". Aqui, reconheceu o colegiado, com razão, que a turma que iniciou o julgamento das questões de determinado processo se torna preventa para o julgamento de eventuais questões que serão enfrentadas em acórdão complementar da DRJ.

No acórdão nº 2401-004.972 7, ao dar provimento ao recurso de ofício relativo à decadência, determinou-se o retorno dos autos para que a DRJ julgasse o mérito do período não decaído. Aqui, havia simultaneidade de RO e RV: em relação a este, por envolver matéria que não se confundia com a que seria julgada pelo acórdão complementar, entendeu prejudicada a sua análise naquele momento, determinando que ele deveria aguardar o retorno do processo, para julgamento conjunto.

Na mesma linha, o acórdão nº 2302-01.803 8, no qual se determinou que o efeito procedimental da reforma da decisão da DRJ que havia reconhecido a decadência era o retorno dos autos à instância a quo para julgamento dos demais pontos, sob pena de supressão de instância e violação ao devido processo legal.

Como se vê, os acórdãos em questão deixam evidente a diferença de regime procedimental entre a anulação e a reforma (parcial) da decisão proferida pela DRJ.

Diferentemente da anulação, na qual normalmente há a perda de validade de tudo que sucedeu o ato inválido, retornando o processo ao estado que estava antes da sua realização, na reforma, há uma continuidade do julgamento. Ou seja, as turmas do Carf iniciaram a análise de parte das questões controversas do processo, não podem avançar sobre as demais que não foram objeto de manifestação da DRJ, razão pela qual se interrompe o julgamento, determinando que a DRJ complemente a análise (exarando decisão complementar), para que o restante do mérito seja julgado e devolvido à 2ª instância.

Essa distinção gera importantes reflexos práticos, sob o regime jurídico procedimental, a exemplo da própria competência das turmas do Carf para prosseguir o julgamento dos processos que retornaram da DRJ após proferido o acórdão complementar.

O artigo 63, §5º, do RICarf, estabelece que no caso de anulação da decisão de primeira instância, todas as questões do processo serão reapreciadas, em novo julgamento: retorna-se ao estágio anterior ao proferimento da decisão anulada, na esteira do que determina o artigo 59, §1º, do Decreto 70.235/72, e, no caso de eventual recurso voluntário, o processo deverá ser novamente sorteado entre todas as turmas da seção de julgamento, seguindo o rito ordinário de sorteio.

Por outro lado, nos casos de reforma, a turma já iniciou o julgamento do processo, interrompendo-o apenas para atender ao direito do contribuinte ao duplo grau administrativo, provocando uma decisão complementar da DRJ. Na linha do acórdão nº 1402-000.363, mencionado acima, essa circunstância estabelece a prevenção do colegiado para prosseguir no julgamento (salvo sua extinção, por óbvio).

Esse mesmo regime de prevenção é observado com bastante clareza nos acórdãos nº 1302-002.629 9 e 2102-002.649 10: no primeiro, o relator do acórdão anterior (1302-001.077) não era mais conselheiro do Carf, mas o processo retornou para o mesmo colegiado que iniciara o julgamento, enquanto no segundo, a mesma conselheira-relatora da decisão anterior (2102-000.332) seguia no Carf, sendo a ela redistribuído, na mesma turma. Diferentemente da anulação, na qual a segunda decisão da DRJ substitui a primeira (anulada), na reforma, a segunda decisão é uma continuação da decisão proferida anteriormente. Ela possui um caráter integrativo em relação à primeira, à medida que analisa os demais argumentos desenvolvidos, permitindo que a turma prossiga seu julgamento quanto a eles.

Ora, caso não fosse assim, teríamos situações canhestras de um mesmo processo com parte de seu conteúdo julgado por uma turma, e parte por outra, em momentos temporais distintos. Isso afetaria, no mínimo, o princípio do juiz natural, e geraria problemas como o dies a quo para apresentação do recurso especial, bem como a discussão de que presidente de câmara seria competente para a admissibilidade (caso as turmas fossem de câmaras distintas).

Essa discussão ganha relevo em razão da proposta de inclusão no RICarf do artigo 49, §12º, verbis:

"Artigo 49 (…)

§12. No caso de anulação ou reforma, pelo Carf, da decisão de primeira instância, e o novo acórdão for objeto de recurso voluntário ou de ofício, o processo administrativo fiscal será submetido a novo sorteio, no âmbito da Seção de Julgamento, independentemente de o relator que proferiu a decisão anulatória ou reformatória integrá-la". (grifos do autor).

A proposta de inclusão do referido dispositivo proposto vem, em termos práticos, corroborar a leitura feita acima acerca do atual regime procedimental de anulação e reforma de acórdãos da DRJ. Ora, caso ambos já fossem submetidos a novo sorteio, não haveria a necessidade de qualquer alteração nesse sentido. Pelo contrário, atualmente eles possuem regimes distintos, como demonstrado acima.

O tema é sofisticado e técnico, mas demanda uma reflexão minuciosa, como forma de garantir que não haja o julgamento de processos por quem seja incompetente para tanto, maculando a validade da decisão final de manutenção ou exoneração do crédito tributário.

 

1 "Artigo 59 – São nulos:

§1º A nulidade de qualquer ato só prejudica os posteriores que dele diretamente dependam ou sejam consequência.

§2º Na declaração de nulidade, a autoridade dirá os atos alcançados, e determinará as providências necessárias ao prosseguimento ou solução do processo".

2 V.g., o reconhecimento de uma decadência prejudica o conhecimento de outras questões meritórias (causas de pedir) desenvolvidas por um Recorrente, assim como o reconhecimento quanto à injuridicidade do crédito em si cobrado prejudica, por sua vez, o conhecimento de outras questões meritórias desenvolvidas subsidiariamente, como, por exemplo, a indevida capitulação da multa ou mesmo a sua qualificação ou agravamento.

3 BRASIL. Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf). Manual do Presidente de Turma, versão 2.0. Brasília, 2018, p.51.

4 Relator Cons. Leonardo de Andrade Couto, julgado em 07/07/2016.

5 Relator Cons. Fernando Brasil de Oliveira Pinto, julgado em 07/06/2016.

6 Apesar do relator falar em “nulidade parcial”, em rigor se verifica que ele trata de “reforma parcial”, na esteira da terminologia fixada no Manual do Presidente de Turma do Carf.

7 Redatora Designada Cons. Claudia Montez, julgado em 06/07/2017.

8 Relator Cons. Arlindo da Costa e Silva, julgado em 15/05/2012.

9 Relator Cons. Luiz Tadeu Matosinho, julgado em 13/03/2018.

10 Relatora Cons. Núbia Matos Moura, julgado em 13/08/2013.

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    é sócio do escritório Daniel & Diniz Advocacia Tributária, doutor em Direito Tributário pela Universidade de São Paulo (USP), mestre em Direito Tributário pela PUC-SP, ex-conselheiro titular da 1ª e 3ª Seções do Carf e professor em cursos de pós-graduação.

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