Paradoxo da Corte

Possuidor indireto é legitimado a opor embargos de terceiro

Autor

  • José Rogério Cruz e Tucci

    é sócio do Tucci Advogados Associados ex-presidente da Aasp professor titular sênior da Faculdade de Direito da USP membro da Academia Brasileira de Letras Jurídicas e do Instituto Brasileiro de Direito Processual e conselheiro do MDA.

8 de setembro de 2020, 8h05

Tenho como certo que um dos desafios mais importantes e ao mesmo tempo mais difíceis do exercício da judicatura é o de interpretar a lei e os precedentes judiciais diante de situações novas, que exigem sabedoria e ponderação.

Merece todo elogio, pois, recente acórdão unânime da 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do Recurso Especial 1.861.025, da relatoria da ministra Nancy Andrighi.

Como é sabido, a teor do artigo 674 do vigente Código de Processo Civil, o terceiro pode opor embargos, quando sofrer constrição judicial sobre bem que possua. Desse modo, a prova da posse constitui pressuposto para o ajuizamento dos embargos de terceiro.

Daí, o enunciado da Súmula 84 do Superior Tribunal de Justiça: “É admissível a oposição de embargos de terceiro fundados em alegação de posse advinda do compromisso de compra e venda de imóvel, ainda que desprovido do registro”. Isso significa que na petição inicial dos embargos de terceiro, o embargante deve fazer prova sumária de sua posse ou de seu domínio e da qualidade de terceiro, apresentando documentos e, se caso, rol de testemunhas.

Os embargos de terceiro consubstanciam destarte o mecanismo processual adequado àquele que, não sendo parte no processo, tenha por propósito afastara contrição judicial que recaia sobre o bem do qual seja titular ouque exerça a correlata posse (STJ, 3ª Turma, REsp 1.743.088, relator mininistro Marco Aurélio Bellizze, DJe 22.03.2019).

Cumpre salientar, em primeiro lugar, que a posse admite classificação em direta e indireta. Por conseguinte, a defesa da posse pode ser efetivada tanto pelo possuidor direto (locatário, por exemplo), quanto pelo possuidor indireto (locador). O mesmo ocorre em relação ao usufrutuário e ao compromissário comprador, que ostentam legitimidade ativa para opor embargos de terceiro.

Importa assim frisar que a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça consolidou-se no sentido de reconhecer legitimidade ao promitente comprador de imóvel para aforar embargos de terceiro e proteger a posse direta, ou mesmo indireta, contra a penhora, ainda que a promessa de compra e venda tenha sido celebrada por instrumento particular desprovido de registro no cartório imobiliário.

É exatamente essa a tese sufragada, em conformidade com o supra referido verbete sumulado, no julgamento do Recurso Especial 1.809.548, relatado pelo ministro Ricardo Villas Bôas Cueva: “Embargos de terceiro opostos por adquirente de direitos hereditários sobre imóvel pertencente a espólio, cedidos a terceiros antes de ultimada a partilha com a anuência daquelas que se apresentavam como únicas herdeiras, a despeito do reconhecimento de outros dois sucessores por sentença proferida em ação de investigação de paternidade cumulada com petição de herança… Admite-se a oposição de embargos de terceiro fundados em alegação de posse advinda do compromisso de compra e venda de imóvel, mesmo que desprovido do registro, entendimento que também deve ser aplicado na hipótese em que a posse é defendida com base em instrumento público de cessão de direitos hereditários”.

Todavia, a praxe revela que, em algumas situações, torna-se necessário ao julgador ampliar a mens legis para que a tutela jurisdicional possa ser concedida de forma adequada.

Com efeito, verifica-se que na mencionada hipótese submetida a julgamento pela 3ª Turma (REsp 1.861.025), o embargante, promitente comprador de imóvel na planta, ainda não havia sido imitido na posse do bem adquirido de uma determinada construtora, porque o edifício encontrava-se em construção. Tampouco tinha o compromisso de compra e venda registrado.

Sucede que a construtora, promitente vendedora, fora derrotada em ação de rescisão contratual cumulada com perdas e danos. Na fase do respectivo cumprimento de sentença, aquela unidade, anteriormente prometida à venda e já quitada, foi penhorada.

O compromissário comprador, visando então a afastar a constrição, opôs embargos de terceiro, com fundamento na posse.

A sentença de primeiro grau extinguiu o processo, reconhecendo a improcedência do pedido deduzido pelo comprador embargante, uma vez que ele não produzira prova da posse. Contudo, o Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios reformou a sentença, para admitir a procedência da pretensão formulada nos embargos de terceiro.

Interposto recurso especial pelo credor recorrente, a 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, improvendo a impugnação,prestigiou o acórdão recorrido, mantendo a desconstituição da penhora que havia recaído sobre o imóvel compromissado,mas que ainda não havia sido entregue pela construtora.E isso porque, diante do contexto retratado nos autos, era mesmo impossível que o embargante exercesse posse direta sobre unidade em construção.

Pois bem, ao julgar o mencionado Recurso Especial 1.861.025, o voto condutor da ministra Nancy Andrighi, esclareceu que a controvérsia sob apreciação da 3ª Turma, na verdade, suplanta a questão do registro da promessa de compra e venda como pressuposto para a oposição dos embargos de terceiro, visto que, a rigor, o fulcro da questão é a necessidade ou não de estar o comprador na posse do imóvel depois de pagar o preço ajustado.

E isso, porque, no caso concreto, a recorrente argumentou que, além da ausência de registro do compromisso,também era descabido o ajuizamento de embargos de terceiro por alguém que não comprovou ser possuidor.

Na verdade, como acima esclarecido, o imóvel só não estava na posse do embargante porque o prédio ainda estava em construção. Todavia – observou a ministra relatora –, o instrumento de compra e venda devidamente assinado pelas partes e por duas testemunhas “deve ser considerado para fins de comprovação de sua posse, admitindo-se, via de consequência, a oposição dos embargos de terceiro”.

Tal entendimento, como se observa, amplia de forma coerente o âmbito de incidência da regra do artigo 674 do Código de Processo Civil, bem como do enunciado da Súmula 84/STJ.

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