Opinião

A inconstitucionalidade da retenção de mercadoria importada

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8 de setembro de 2020, 16h09

Desde a década de 60, o Supremo Tribunal Federal possui entendimento, reproduzido na Súmula STF 323 ("é inadmissível a apreensão de mercadorias como meio coercitivo para pagamento de tributos"), que não permite às autoridades fiscais apreender mercadorias como forma de coagir o contribuinte ao pagamento de tributos.

Contudo, tal posicionamento frequentemente não é observado no desembaraço de mercadorias importadas, as quais normalmente são retidas durante o procedimento de conferência aduaneira. Comumente, a retenção ocorre quando há alguma divergência na classificação fiscal que possa ensejar a cobrança de diferença de tributos e multa.

Como consequência da divergência na classificação fiscal apontada pelas autoridades fiscais, é exigido dos importadores o pagamento da diferença dos tributos incidentes na importação e de multa para que o desembaraço ocorra, sob pena de a carga ficar retida.

Ainda que a regulamentação atual da Receita Federal (artigo 48, parágrafo 5, da Instrução Normativa 680/2006) preveja a possibilidade do importador desembaraçar a mercadoria mediante a apresentação de garantia, na prática o tempo incorrido entre a exigência feita pela fiscalização e a efetiva liberação utilizando esse mecanismo costuma ser tão longo e burocrático que desestimula os importadores a seguir esse procedimento, levando ao pagamento da diferença de tributos e multas sem qualquer discussão nas instâncias apropriadas, sob pena de que a demora causada pelas inúmeras exigências causem danos comerciais e aumento excessivo dos custos de armazenagem. É comum ainda que os importadores recorram ao Poder Judiciário a fim de obter decisão favorável que obrigue as autoridades fiscais a desembaraçar as mercadorias, sem o pagamento da diferença de tributos.

No entanto, esse procedimento das autoridades fiscais está em descompasso com as medidas para facilitar o comércio internacional que devem ser observadas pelo Brasil, e uma solução para elas pode estar próxima por causa de um julgamento que ocorrerá no STF sobre o assunto neste mês de setembro.

Nesse sentido, a Organização Mundial do Comércio (OMC) editou o Acordo sobre Facilitação de Comércio (AFC), que, inclusive, já foi internalizado no ordenamento jurídico brasileiro, o qual tem o objetivo de reduzir os custos de transação por meio da simplificação e desburocratização dos procedimentos relacionados ao comércio exterior.

Por sua vez, o Decreto 10.276/2020 internalizou o Protocolo de Revisão da Convenção Internacional para a Simplificação e a Harmonização dos Regimes Aduaneiros (Convenção de Quioto Revisada), o qual prevê a necessidades de as autoridades fiscais: a) promoverem a simplificação e harmonização dos regimes aduaneiros; e b) adotarem procedimentos apoiados em métodos de controle apropriados e eficazes.

No AFC e na Convenção de Quioto, o procedimento de retenção de mercadorias importadas para exigir tributos é expressamente combatido, uma vez que esse expediente é visto internacionalmente como um mecanismo que obsta o regular desenvolvimento ao comércio e existem outros meios de exigir os tributos sem prejudicar o fluxo comercial de mercadorias entre os países.

Dentro desse contexto, o STF incluiu na pauta de julgamento virtual iniciado no dia 4, com término previsto para o dia 14, o Recurso Extraordinário (RE) 1.090.591 (Tema 1042), o qual analisará o condicionamento do despacho aduaneiro de bens importados ao pagamento de diferenças apuradas por arbitramento das autoridades fiscais. O tema será analisado dentro da sistemática de repercussão geral, cuja decisão será aplicável a todas as instâncias do Poder Judiciário.

Nesse julgamento, o STF terá a oportunidade de analisar, à luz das normas de facilitação de comércio e da sua jurisprudência histórica, a inconstitucionalidade da retenção de mercadorias para exigir tributos e propor uma solução para o problema.

Um julgamento favorável do STF no Tema 1042 aproximará os importadores de uma solução para evitar o recorrente problema da retenção de mercadorias durante o desembaraço aduaneiro. Na prática, a retenção de mercadorias ocorre por diversas razões, entre elas, a mais comum, quando há divergência entre a classificação fiscal adotada pelo importador e aquela entendida como correta pelas autoridades fiscais da Receita Federal.

Esse motivo por si só já justifica aos importadores e demais intervenientes no comércio exterior acompanhar de perto esse julgamento do STF, cujo resultado, somado com os comandos contidos Convenção de Quioto, no Acordo de Facilitação do Comércio e na Súmula 323, poderá desestimular as autoridades fiscais a reter as mercadorias importadas ou facilitar a obtenção de decisão judicial determinando o seu desembaraço aduaneiro quando necessário.

É preciso mencionar, porém, que uma solução definitiva para o problema passa também pela criação de um mecanismo na regulamentação estabelecida pela Receita Federal que permita aos importadores desembaraçar as cargas sem prejuízo da apresentação de garantia, lavratura de auto de infração ou realização de perícia técnica.

Todas essas medidas exigidas atualmente pela Receita Federal para o desembaço da carga importada constituem uma forma de cobrança indireta de tributos e aumentam sensivelmente o tempo e a burocracia necessários para o efetivo desembaraço da carga importada, o que poderia ser evitado, por exemplo, se a carga fosse imediatamente liberada após a apresentação de manifestação de inconformidade pelo importador.

Assim, para que eventual decisão favorável do STF no Tema 1042 possa ser aplicada de forma ampla e efetiva, a fim de evitar retenções indevidas de mercadorias para a cobrança de tributos, será importante que a decisão do STF venha acompanhada de alteração pela Receita Federal da Instrução Normativa 680/2006, para permitir que nesses casos o desembaraço ocorra independentemente de outras medidas a serem tomadas em paralelo para avaliar os aspectos técnicos da mercadorias importada e exigir a diferença de tributos devida.

Espera-se que o julgamento do STF aproxime os importadores de uma solução definitiva para esse problema e estimule a Receita Federal a criar os mecanismos necessários para que não ocorram novas retenções de mercadorias importadas quando a exigência feita tenha impacto meramente no valor dos tributos devidos pelo importador.

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