Opinião

A Medida Provisória nº 1000: história recente de uma velha polêmica

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7 de setembro de 2020, 13h13

Nas últimas duas décadas, o Brasil teve nada menos do que mil situações relevantes e urgentes que exigiram a imediata alteração do ordenamento jurídico. Em média, foram mais de três casos urgentes por mês, o que faz do Brasil um dos países mais imprevisíveis do mundo.

Ao menos na ótica do Poder Executivo, que chegou na última semana à marca de mil medidas provisórias editadas desde 2001, quando foi promulgada a Emenda Constitucional nº 32.

A MP nº 1000, além de alçar a legislação provisória à casa do milhar, também se afigura como um símbolo do modelo jurídico-político erigido a partir da Constituição de 1988, quando o próprio constituinte originário dotou o Poder Executivo com fortes poderes legiferantes, o que, se por um lado temperou o presidencialismo com mecanismos típicos de um sistema parlamentarista, por outro lado criou permanentes focos de tensão entre os Poderes Executivo e Legislativo, não raro levando as controvérsias ao Judiciário como mediador constitucional e também político.

Com efeito, nessa breve história das medidas provisórias nota-se grande participação do Judiciário, preenchendo lacunas e delimitando contornos mais precisos ao instituto. Desde 2001, quando a última reforma constitucional foi promulgada, as mudanças nas MPs foram operadas por intermédio do Judiciário. Formalmente, permanece o mesmo texto do artigo 62 da Constituição, tal como redigido pela EC nº 32; no entanto, muito já se alterou desde então. Trazemos à discussão quatro julgados-chave que moldaram as MPs até aqui: a mudança de entendimento do trancamento de pauta, a obrigatoriedade de constituição das comissões mistas, a vedação aos "jabutis" e o rito especial durante a pandemia da Covid-19.

Mudança no trancamento de pauta (MS 27.931)
Promulgada em 2001, a EC nº 32 promoveu ampla reformulação do instituto das medidas provisórias, visando a acabar com o quadro de precariedade do modelo anterior, marcado pela inércia do parlamento na análise dos atos e pelas constantes reedições de MPs. Uma das principais mudanças introduzidas foi o sobrestamento de pauta, mecanismo idealizado para evitar a inação congressual e forçar a análise das MPs pelo Parlamento.

A elevada taxa de edição de MPs, entretanto, persistiu mesmo com a reforma, deixando a pauta de votações do Congresso constantemente trancada por medidas provisórias. O excesso legiferante do Executivo, além de competir com o Congresso Nacional no plano normativo, passou também a limitar a atuação do parlamento no plano processual, posto que substituía a vontade política das casas do Congresso na definição de sua agenda de votações e impunha sua própria pauta.

Em março de 2009, o presidente da Câmara, Michel Temer, adotou o entendimento de que o sobrestamento de pauta se aplicava apenas às matérias passíveis de tratamento por MP (deixando de fora, por exemplo, PECs e projetos de leis complementares).

Instado a se manifestar sobre o tema no Mandado de Segurança nº 27.931, apresentado por deputados oposicionistas, o STF validou a interpretação do artigo 62, §6º, da Constituição, tal como adotada pelo presidente da Câmara. O relator do caso, ministro Celso de Mello, indeferiu a cautelar que pedia o sobrestamento total da pauta da Câmara por entender que a interpretação dada pelo presidente da Câmara dos Deputados era, politicamente, uma reação justa do Parlamento e, juridicamente, aceitável e plausível.

A manifestação do STF, ainda que em sede de decisão monocrática, conferiu respaldo jurídico à nova interpretação sobre o trancamento de pauta, de modo que tal interpretação foi seguida pelos demais presidentes da Câmara e também pelo Senado, traduzindo-se num grande alívio ao parlamento, pois passou a permitir o desbloqueio parcial da pauta legislativa. Por fim, em junho de 2017 o pleno do STF referendou a decisão do ministro Celso de Mello, restringido a exegese do §6º do artigo 62 da Constituição e fixando o entendimento de que o sobrestamento das deliberações legislativas por medida provisória em regime de urgência refere-se apenas às matérias passíveis de tratamento por MP.

Obrigatoriedade das comissões mistas (ADI 4029)
Outra mudança judicial importante se deu em março de 2012, quando, no bojo da ADI 4029, o STF determinou que todas as medidas provisórias deveriam ser obrigatoriamente instruídas por comissão mista antes da apreciação em plenário.

Tal exigência constava já do §9º do artigo 62 da Constituição, dispositivo incluído pela EC nº 32. Porém, de 2001 a 2012 nenhuma comissão mista aprovou parecer instrutivo antes do envio da matéria aos plenários, de forma que todas as MPs foram instruídas por "relatores de plenário", designados pelos presidentes de cada Casa. Embora prevista na Resolução nº 1/2002-CN a hipótese de envio da MP diretamente a plenário, mesmo sem o parecer do colegiado misto, o STF julgou tal dispositivo inconstitucional, posto que o parecer instrutivo da comissão afigura-se como exigência constitucional, de forma a "assegurar uma reflexão mais detida sobre o ato normativo primário emanado pelo Executivo, evitando que a apreciação pelo Plenário seja feita de maneira inopinada".

Submetidas desde então a comissões mistas constituídas ad hoc, as medidas provisórias passaram a ser analisadas por órgãos menores e especializados, fato que favorece uma instrução mais qualificada, com a audiência de especialistas e da sociedade civil, e também cria um ambiente para discussões mais técnicas. O processo de conversão em lei das MPs se tornou mais transparente e acessível. Além disso, permitiu o reequilíbrio do bicameralismo, posto que, nas comissões, há alternância entre deputados e senadores nas relatorias de MPs.

A inclusão das comissões, todavia, representou um aumento dos custos de aprovação das MPs, alterando profundamente o jogo político-institucional travado entre Executivo e Legislativo. O processo decisório tornou-se descentralizado, ocorrendo em três arenas distintas (comissão, plenário da Câmara e plenário do Senado), exigindo maior esforço de articulação e fazendo, por isso, com que muitas MPs perdessem eficácia por decurso de prazo.  

Vedação dos 'jabutis' (ADI 5127)
Aproveitando-se do rito de urgência da medida provisória, sempre foi frequente a apresentação de emendas parlamentares sem qualquer pertinência temática com a matéria da MP, representando verdadeiro contrabando legislativo, conhecido popularmente no folclore político como "jabutis".

A prática, funcional numa ótica política, era no mínimo questionável do ponto de vista jurídico, uma vez que ampliava enormemente o escopo da matéria e trazia novos temas que fugiam do regular e necessário rito ordinário do processo legislativo. Mais uma vez, coube ao STF intervir no processo legislativo das MPs.

No âmbito da ADI 5127, o Supremo deixou assentado que é inconstitucional, por ofender o devido processo legislativo e o princípio democrático, a inserção de emendas parlamentares com temática distinta do objeto originário da medida provisória. A decisão respaldou decisões internas das Casas legislativas no sentido de escoimar matérias estranhas incluídas nas MPs, e serviu para depurar o processo de conversão em lei das MPs, criando nova cultura parlamentar no tocante à apresentação de emendas, a qual, se ainda não se encontra plenamente em conformidade com o mandamento judicial, ao menos dispõe de parâmetros claros e instrumentos internos para tanto.

Rito durante a pandemia de Covid-19 (ADPF 663)
Por fim, cabe mencionar decisão recente, proferida em março de 2020, que alterou o trâmite das MPs durante o período da pandemia da Covid-19. Antevendo dificuldades no Congresso para a apreciação de MPs, a AGU ingressou com a ADPF 663 no Supremo, pedindo a suspensão dos prazos das matérias. Instados a se manifestar, Câmara e Senado se posicionaram contrariamente à suspensão dos prazos, mas sugeriram, em contrapartida, rito especial de tramitação das MPs a viger durante o estado de calamidade. Na proposta, as MPs seguiriam direto aos plenários, sem a constituição e manifestação das comissões mistas.

O ministro Alexandre de Moraes deferiu pedido cautelar autorizando, excepcionalmente, a emissão de parecer em plenário durante o estado de calamidade decorrente da pandemia da Covid-19. Se a decisão permitiu a continuidade do processo de conversão em lei das MPs, não obstante as limitações impostas pela pandemia, também acendeu o alerta. Isso porque a exigência de parecer instrutivo exarado pela comissão mista é exigência constitucional prevista no §9º do artigo 62 da Constituição, exigência essa confirmada pelo próprio STF no âmbito da ADI 4029.

Na prática, a decisão representou uma autorização temporária para o descumprimento da Constituição. Por mais que a pandemia do novo coronavírus seja um evento atípico, extraordinário e de força maior, causa certo desconforto a decisão recente do Supremo. A porta para a posterior alteração de regras constitucionais de processo legislativo por decisões judiciais fica entreaberta, sujeita à valoração jurídica do que seja um "momento extraordinário".

A edição da milésima medida provisória traz novamente o tema para o centro dos debates. Na história recente do instrumento, como se viu, o Judiciário teve um papel fundamental, delineando parâmetros e contendo excessos, o que aponta para o fato de que a medida provisória ainda está em curso de aperfeiçoamento institucional. Cabe encontrar um ponto de equilíbrio entre Executivo e Legislativo — não num plano teórico de separação de poderes, mas considerando a moldura do presidencialismo de coalizão, com o cuidado para o que o Judiciário não avance a fronteira do instituto a pretexto de melhor defini-la.

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