Opinião

Os critérios para distribuição do fundo eleitoral não são critérios

Autor

  • Raquel Cavalcanti Ramos Machado

    é mestre em Direito (Direito e Desenvolvimento) pela Universidade Federal do Ceará doutora em Direito pela USP advogada ex-coordenadora do mestrado e do doutorado em Direito na UFC ex-chefe do departamento de Direito Público por dois mandatos professora de Direito Eleitoral Direito Administrativo e Teoria da Democracia da UFC visiting research scholar da Wirtschaft Universistat Vienna (2015 e 2016) professora pesquisadora convidada da Faculdade de Direito da Universidade Paris Descartes (2017) professora pesquisadora convidada da Faculdade de Direito da Universidade de Firenze (2018) membro do Instituto Cearense de Direito Eleitoral (Icede) e da Comissão de Direito Eleitoral da OAB coordenadora da área acadêmica da Transparência Eleitoral Brasil e membro da Abradep.

7 de setembro de 2020, 11h35

O Supremo Tribunal Federal e o Tribunal Superior Eleitoral têm tomado relevantes e acertadas decisões na defesa inclusiva de mulheres e negros na política. Exemplos são as manifestações proferidas no julgamento da Adin nº 5617 e na resposta à Consulta nº 0600306-47.

Ambas têm em comum o reconhecimento de que o uso dos valores do Fundo Partidário e do Fundo Especial de Financiamento de Campanha (FEFC) deve seguir parâmetros normativos relacionados à promoção de direitos fundamentais igualitários, de que a discricionariedade, portanto, é limitada e de que os partidos políticos se sujeitam à eficácia horizontal dos direitos fundamentais.

Paralelamente a essa postura, o Tribunal Superior Eleitoral tem sido complacente com o exame da distribuição do Fundo Especial de Financiamento de Campanha, em situações que causam desconforto racional e ético, violando o mais elementar senso de justiça. O fundamento central dessas decisões é a autonomia partidária.

A autonomia partidária e sua importância são inquestionáveis em uma democracia. A questão, porém, são seus limites, sobretudo quando se trata do uso de verbas públicas na promoção do direito de participar de campanhas eleitorais, já que sem financiamento adequado não há campanha efetiva, e que o valor não utilizado deve ser devolvido aos cofres públicos (artigo 16-C, § 11 da Lei nº 9.504/97, a revelar clara preocupação normativa com seu manejo adequado).

Segundo o artigo 16-C, §7º, da Lei nº 9.504/97, os valores do Fundo Especial de Financiamento de Campanha "ficarão à disposição do partido político somente após a definição de critérios para a sua distribuição, os quais, aprovados pela maioria absoluta dos membros do órgão de direção executiva nacional do partido, serão divulgados publicamente".

Do texto, dois pontos merecem destaque: a) a exigência da "definição de critérios"; e b) o órgão competente para fixá-los, que, no caso, é o "de direção executiva nacional" pela maioria absoluta de seus membros. Vê-se, desde logo, que, apesar da exigência de maioria, os critérios são fixados pelas cúpulas dos partidos, com possível redução da democracia intrapartidária. De todo modo, como o texto não foi declarado inconstitucional, partiremos de sua validade, apesar de ser necessário observar que é de constitucionalidade duvidosa, ou, pelo menos, que merece redesenho legislativo. Essa ressalva, porém, de a fixação dos critérios ser feita pelos membros do órgão de direção é relevante para a compreensão da complacência na simples invocação da autonomia partidária antes referida.

Quanto à expressão "definição de critérios",  importa considerar o que é definir e o que são critérios, para que as palavras não estejam no texto apenas figurativamente. Definir é estabelecer limites. Critérios, por sua vez, são signos, sinais, parâmetros ou medidas que permitem a diferenciação de uma coisa entre outras. Ou seja, os partidos devem apontar elementos que permitam compreender, com a maior objetividade possível, como os valores do fundo serão distribuídos entre os diversos candidatos. Os partidos são inteiramente livres para estabelecer os critérios, inclusive usando palavras vagas, exatamente em razão da autonomia partidária, mas não são livres para chamar qualquer texto como critério somente porque formulam um documento com o título "Resolução de definição de critérios". Como muito bem ilustrou Shakespeare:  "Que são nomes? Aquilo a que chamamos rosa, com outro nome qualquer, continuaria a exalar o mesmo perfume". Ou seja, importa a essência da realidade e não apenas o nome que se lhe atribui.

O que se percebe da leitura das resoluções de alguns partidos apresentadas para as eleições de 2018 é que tais critérios não estão presentes. Há em muitas resoluções apenas a divisão percentual por cargo (x% do fundo para o cargo y — de deputado federal, por exemplo —, x% para cargo z — de deputado estadual). Mas quais critérios utilizar para distribuir entre eles? Várias resoluções silenciam e os valores então são distribuídos ao mero sabor do jogo político.

Há também inúmeros partidos que apontam critérios tais como: histórico político e de militância partidária do candidato ou candidata; já ser detentor de mandato, dando prioridade à reeleição; exercer mandato por mais de x meses; votar conforme a determinação do partido (numa aferição da fidelidade); probabilidade de êxito da campanha; estratégia político-eleitoral; repasse de valores de um candidato ou candidata a outro(a) caso algum deseje abdicar da quantia a que tinha direito (nesse caso à escolha do que renuncia). Esses são, de fato, critérios. Uma vez estabelecidos, porém, é necessário que os partidos os cumpram e estabeleçam parâmetros de aferição para tanto. Trata-se de uma questão, não de controle de critérios, mas de transparência na sua execução. Do contrário, a autonomia da vontade exercida na escolha das medidas terá sido mera encenação organizacional, para disfarçar o voluntarismo. Interessante, a propósito, observar que, em algumas resoluções, há a previsão de um fundo de reserva que pode ser distribuído "a título discricionário do presidente da Executiva Nacional", quase ao estilo "le FEFC c'est moi"

Nesse contexto, é importante recordar o cenário político que levou à criação do Fundo Especial de Financiamento de Campanha, qual seja a declaração de inconstitucionalidade da doação por pessoas jurídicas na ADIN 4.650/DF. Os fundamentos da decisão foram valores republicanos, relacionados ao princípio da igualdade e ao amplo acesso ao poder político, ao combate à corrupção e ao comprometimento do mandato. Em seu voto, o ministro Luis Roberto Barroso ressaltou que "a ideia essencial por trás da democracia é a ideia de igualdade, é a ideia de uma pessoa, um voto, é a ideia de que todos merecem igual respeito e consideração. E, portanto, se o peso do dinheiro é capaz de desequiparar as pessoas, este modelo apresenta um problema".

O cenário vivido nas últimas eleições com a distribuição do FEFC revela que, em muitas situações, o peso do dinheiro continua desequiparando pessoas. Esse peso, porém, apenas deixou de ser doações declaradas por pessoas jurídicas, e passou a ser vontades políticas ocultadas. Os candidatos ficaram impedidos de arrecadar de pessoas jurídicas, a pretexto de promover princípios democráticos, e passaram, em muitas situações, a ser reféns do crivo discricionário de pessoas específicas, de dirigentes partidários. É uma espécie de servidão política imposta sob o crivo da lei de ferro dos partidos, utilizando a expressão de Robert Michels. O TSE, portanto, diante de ações movidas por suposta aplicação indevida do FEFC deve considerar o princípio da autonomia partidária, diante das peculiaridades de cada resolução partidária, seja para avaliar se critérios são apontados, seja para dar força prática àqueles escolhidos. Talvez seja salutar também alguma baliza legal mais clara, para assegurar um mínimo de igualdade, não apenas na distribuição do fundo aos partidos, mas dos partidos aos candidatos.

Não se pode confundir autonomia com soberania, nem discricionariedade com voluntarismo desmedido. É claro que se deve defender, com amplos esforços, a autonomia e a discricionariedade, mas desde que elas se prestem a garantir a liberdade política e a liberdade para participar da política, não se prestando, portanto, a criar uma espécie de servidão política, e uma sensação de constrangimento democrático, sobretudo num momento em que o clamor é por mais transparência e democracia intrapartidária.

Autores

  • é mestre pela Universidade Federal do Ceará, doutora pela Universidade de São Paulo, professora de Direito Eleitoral e Teoria da Democracia na Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará, coordenadora do Grupo de Pesquisa e Extensão Ágora: educação para a cidadania – denúncia e esperança, membro do Icede (Instituto Cearense de Direito Eleitoral) e membro da Comissão de Direito Eleitoral da OAB e da Abradep.

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