independência ou morte

Supremo é poder contramajoritário e não pode ser submetido à opinião pública

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7 de setembro de 2020, 7h48

Continua parte 1.

ConJur — Ainda em relação à composição do STF, o senhor acha que deveria ter alguma espécie de quarentena para que agentes públicos, ministros de Estado, presidentes de Tribunal Superior ou mesmo membros do MP não possam integrar a Suprema Corte durante um determinado período? 
Fernando Haddad —
 Nunca pensei nisso e, para te falar honestamente, não sei como funciona mundo afora. Se tem que ter algum interregno entre a função pública e a indicação.

Mas como é que você vai fazer isso para um ministro do STJ, por exemplo? Se for ver, vai valer para uns e não para outros. E esses outros às vezes têm muito mais poder que uns. Um AGU não tem o mesmo poder de um presidente do STJ. Então não vejo vantagem nisso. Acho que tem de ter um Senado que faça uma boa avaliação dos nomes sugeridos, uma corte que funcione.

Acho muito mais grave sabe o quê? A TV Justiça. Quando a gente fala de independência do Poder Judiciário, fico me perguntando se isso vale também para a independência em relação à opinião pública. Porque se o sistema é garantista, se tem que preservar os direitos individuais de uma pessoa, e pode ser uma minoria da minoria, um só, pode ser todo mundo contra ele. Imagina uma pessoa que tem 210 milhões de pessoas contra si. Mas se ela não infringiu a lei, o Supremo tem que ter a coragem de dizer que: "Olha, tem 210 milhões de brasileiros contra o fulano de tal, mas ele não descumpriu nenhuma lei. Então vocês podem continuar falando mal dele, mas preso não vai".

Como é que isso é possível se o Poder Judiciário está submetido à opinião pública, sendo que é um poder contramajoritário por definição. Acho isso muito mais grave do que qualquer outra coisa. Não estão criadas as condições para o Poder Judiciário exercer o seu caráter contramajoritário no Brasil.

Não pode cancelar um ministro do Supremo. Até o presidente da República participou de ato pelo fechamento do Supremo.

ConJur — O presidente Jair Bolsonaro indicou alguém fora da lista tríplice para procurador-Geral da República e reacendeu o debate sobre corporativismo e representação na indicação ao cargo. É mais democrático o presidente nomear o PGR ou uma entidade de classe encaminhar uma lista tríplice?
Haddad —
 Vou fazer de novo referência ao controle externo. Acho mais grave você ter uma composição corporativa do CNMP, por exemplo. Há outras formas de fortalecer a instituição que não passam pela lista tríplice. A gente fica muito focado em temas. Vi o desalento do presidente Lula com esse conselho que ele criou. E hoje deve estar se perguntando o que fez de errado.

No meu programa de governo de 2018, que era um programa dele, estava previsto uma revisão dos colegiados. Não para tirar autonomia, pelo contrário, para fortalecer a instituição. Acho que a gente tem que olhar para aquilo que mais importa.

Do mesmo jeito que disse que o problema do STF é que tem que ter condições de exercer um poder contramajoritário. Portanto, não pode estar submetido nem às Forças Armadas, nem à opinião pública, nem aos outros dois poderes. Não pode! O Poder Judiciário não pode estar submetido à pressão de militar, de deputado, de senador, de presidente da República, de Rede Globo, de Record. Não pode!

E não acho que a corporação vai escolher mal. Na média, vai escolher bem. Não creio que uma corporação inteira consiga eleger um sujeito que não tenha condições de representar a categoria.

O problema é o seguinte: quem vai coibir os abusos, quem vai botar ordem quando a coisa descarrilhar? Esse é o ponto. E não vejo hoje um ambiente institucional onde as coisas voltem à ordem por força própria, por mecanismos de autocorreção. Não vejo que isso está dado no sistema de justiça brasileiro. Acho que nosso foco deveria ser esse. Garantir que a autocorreção aconteça, que os freios e contrapesos aconteçam. E isso não está garantido.

ConJur — O senhor fala da necessidade de autocontenção ou de controle externo, mas ao mesmo tempo o Poder Judiciário não pode sofrer pressão externa. Como resolver isso?
Haddad —
 O contrário do que você sugere é justamente uma proteção do órgão. O que estou falando é que a classe política não pode fazer pressão. O Congresso não pode inibir o livre exercício do Poder Judiciário. As Forças Armadas não podem. Porque esse pessoal tem poder. Poder das armas, das leis, da opinião pública.

É diferente de você ter um colegiado que não seja representado majoritariamente por membros da própria corporação e que esteja lá para fortalecer o órgão e proteger a corporação.

Vamos pegar um caso mais claro: corregedorias das polícias. É muito raro chegar à conclusão dos processos administrativos disciplinares que são abertos. A possibilidade de um julgamento corporativo é enorme. Por que isso acontece? Porque a pessoa que julga diz assim: amanhã sou eu que vou estar sendo julgado, pode acontecer um incidente comigo, vou voltar para rua e aí as coisas se confundem.

Você deve criar um colegiado mais amplo que tenha a finalidade de proteger o órgão e não os membros do órgão. É diferente. Um mau juiz prejudica o Poder Judiciário, um mau promotor prejudica o Ministério Público. Agora se o interesse corporativo falar mais alto e a autoproteção for a regra… Por isso que, em geral, na experiência internacional, você tem um controle composto por pessoas que têm compromisso com a lei e com a boa condução daquele aparato, mas que também têm um distanciamento necessário para permitir que abusos sejam contidos. Afastando-se de uma visão corporativista. Não vejo nenhuma contradição nisso, pelo contrário.

ConJur — Aproveitando a dupla formação do senhor, acredita que o Judiciário deve levar em conta o impacto econômico das decisões que toma ou é ativismo judiciário interpretar a lei conforme seus efeitos práticos no orçamento público?
Haddad —
 Às vezes as decisões são tomadas de maneira tal que você tem um conflito inerente à decisão que foi tomada. Vou dar um exemplo: você tinha em São Paulo uma fila para matricular o seu filho na creche porque não tinha vaga para todo mundo. Então as pessoas iam entrando conforme uma fila. Criamos uma regra que dizia: quem está no CadÚnico [Cadastro Único do governo federal], que está abaixo da linha de pobreza, vai ter preferência até que se consiga as vagas para todo mundo.

Aí começaram a entrar na Justiça as mães que tinham acesso. Conseguiam liminares para matricular seus filhos. Havia uma incompatibilidade. O que eu seguia? Uma decisão liminar que aproveitava uma pessoa ou um critério universal que pudesse ser julgado enquanto universal? Não tenho nada contra um juiz entender que o prefeito estabeleceu uma regra injusta. Mas diante da escassez, alguma regra tinha que ter. Então um juiz achar que a regra dele é melhor porque ele está atendendo uma mãe contra uma regra geral transitória até que a educação infantil seja universalizada, são conflitos que tinham que ter algum outro tipo de atenção por parte do Judiciário.

Você tem que entender que há um ordenamento jurídico, harmonioso. As decisões não podem ser tomadas sem compreender que elas estão inseridas num universo jurídico que tem que ter coerência interna. E muitas vezes as decisões perdem de vista a coerência interna do ordenamento.

ConJur — O senhor acha que a epidemia de Covid-19 tem mostrado fragilidades do nosso pacto federativo ou, ao contrário, a gente caminha para um federalismo mais participativo?
Haddad —
 Fiquei muito preocupado com a condução desse assunto durante a pandemia pelos sinais emitidos pelo Estado, e eu diria até pelos poderes Executivo, Judiciário e depois por alguns governadores e prefeitos. Acho que não houve bom entendimento sobre como deveria ser conduzido o trabalho de combate à crise. Muito por culpa da União, mas não só. Cheguei a escrever que entendia esse assunto de uma forma semelhante a um problema ambiental.

Quando existe conflito entre as leis do município, do estado e da União, vale a mais rígida. E é meio evidente que tem que ser assim. Se um prefeito faz uma lei ambiental mais rígida no seu município, que foi aprovada pela Câmara Municipal, deve ter tido razões para apertar os controles que eventualmente a legislação federal não tenha conseguido promover. Então na pandemia deveria valer a mesma regra.

Se você tem uma regra nacional, que na verdade nunca foi estabelecida, deveria valer a mais rígida. Então se o prefeito entender que no seu município, por falta de leito de UTI, de respirador, de teste, de EPI, por falta disso tudo, tinha que ser muito rígido nos controles. Ele não poderia ser impedido pelo governador ou pelo presidente.

Acho que faltou maturidade federativa, e que nós pagamos um preço caro por isso. Essas quase 120 mil mortes [no último dia 27 de agosto] no Brasil tem a ver com a falta de coordenação, e não há como não responsabilizar o governo federal pela falta de protocolo nacional.

ConJur — Há evidências científicas, pesquisas que mostram que o aumento de pena não coíbe a criminalidade. Apesar disso, tal raciocínio continua embasando vários projetos de lei. Na avaliação do senhor, o que causa esse populismo penal e como se poderia combater?
Haddad — 
Se você vai lidar sempre com senso comum, não lidera grandes transformações. O senso comum tende a manter as coisas como estão ou até piorar, dependendo do grau de comoção sobre um assunto. E a segurança pública virou assunto de comoção nacional.

É evidente que, se for perguntar, as pessoas querem até a introdução da pena de morte. Então é para isso que você tem a ciência jurídica, estudos empíricos para mostrarem para as pessoas o que de fato tem resultado. E é óbvio que, se pegar a população carcerária do Brasil hoje, verá que muita gente que deveria estar presa não está. E muita gente que está não deveria.

Isso explica também o enorme aumento da população carcerária, combinado com o aumento da criminalidade. É só pegar as curvas. A criminalidade aumentou com o aumento da população carcerária. Não diminuiu. Você tem uma correlação positiva entre encarceramento e criminalidade no Brasil, até porque o nosso sistema carcerário é totalmente caótico. Estamos prendendo muito e errado.

Estamos transformando pessoas que cometeram pequenos delitos em pessoas muito piores do que seriam em outras condições. Inclusive o encarceramento feminino é uma coisa aviltante no Brasil nos últimos anos. Esse sistema precisa ser revisto, porque os resultados que ele produziu são desastrosos. Temos que aperfeiçoar o sistema carcerário porque a grande escola do crime, sem sombra de dúvida, está lá.

ConJur — Ministro, muito se fala sobre recessão democrática em vários países (Polônia, Ucrânia, Turquia, Estados Unidos e no próprio Brasil). Do ponto de vista constitucional, o que poderia ser feito para evitar essa recessão?
Haddad — 
 Não creio que a Constituição brasileira seja omissa em relação às garantias democráticas. Talvez uma única exceção seja o artigo 142, que teve jurista que quis dar uma interpretação, digamos assim, exótica, quase que resgatando um instituto do Império, dizendo que as Forças Armadas deveriam exercer o Poder Moderador quando houvesse conflito entre os poderes da República.

Mas acho que foram tão poucos juristas que concordaram. E tem muita gente com reputação de grande jurista, mas na hora do vamos ver, vê que não é tudo isso. E muitas vezes tem grande respeitabilidade da própria classe dos advogados. Não consigo entender o porquê de gozarem desse prestígio. As besteiras que foram escritas recentemente sobre o artigo 142 é uma coisa impressionante.

Até resgatei os comentários de Ruy Barbosa à Constituição de 1891, para mostrar como ele, há mais de cem anos, tinha resolvido essa questão colocando o Supremo Tribunal Federal no alto do sistema de justiça, aquele que dava a última palavra a respeito da interpretação das leis. O guardião da Constituição é o STF. É ele que interpreta o que está escrito ali. E, felizmente, teve até a provocação sobre o que o Supremo entendia do artigo 142. Então já tem até jurisprudência mais ou menos firmada a respeito disso.

Com exceção desse artigo, muito mal escrito por sinal, acho que os princípios constitucionais estão claros ao que cabe a cada um de nós, do presidente da República ao cidadão comum, pelo bem da democracia.

ConJur — Mas o senhor acha que a nossa democracia corre riscos?
Haddad — 
Corre porque não temos um democrata no poder. E quando você não tem, vai procurar corroer as instituições por dentro, que é o que está fazendo com o Ministério Público, com a Polícia Federal, e pode vir a fazer com o STF a partir das duas indicações que fará nos próximos 12 meses. Então, sim, existe esse risco de corrosão por dentro.

Aliás, isso não é uma tese sequer nova. Tem uma bibliografia inteira escrita sobre o assunto na ciência política, mostrando como essa corrosão pode ser fazer a partir de dentro, ou seja, não precisa de um golpe externo, de fora para dentro, de um golpe armado, militar. Você pode corroer a democracia a partir das próprias instituições.

ConJur — A nossa Constituição prevê também uma social-democracia, um estado de bem-estar social. O Estado brasileiro, de modo geral, caminhou nesse sentido, ou vinha caminhando, mas ao mesmo tempo surgiram as crises fiscais. O senhor acha que é possível fazer uma reforma tributária sem fazer uma administrativa?
Haddad — 
Absolutamente possível. São reformas independentes. Você pode fazer perfeitamente a reforma tributária, reverter a regressividade do sistema tributário brasileiro. A crise fiscal tem uma dimensão política muito forte no Brasil. Se deu em 2015 não só por razões econômicas, mas do fato de que a oposição não aceitou o resultado eleitoral de 2014. E começou a jogar nas pautas bomba. Isso teve um impacto decisivo nas contas públicas, que sofreram o impacto, não só de decisões econômicas que podem ser questionadas do primeiro governo de Dilma, mas sobretudo da postura da oposição em sabotar a sua reeleição. 
Temos que levar em consideração que a cise fiscal teve um componente político muito forte.

ConJur — Desde o impeachment, o país vive um processo de desconstitucionalização? O senhor acredita nisso? E sobre o impeachment, o seu desenho deveria ser revisto?
Haddad —
É difícil redesenhar o impeachment porque ali se fala claramente em crime de responsabilidade. Se fosse só um recall, estava escrito, mas não é isso que está dito na Constituição. Você não pode afastar uma pessoa que não cometeu crime de responsabilidade. Pode protestar, pedir a renúncia, ir para rua, fazer o que você bem entender, mas não pode afastar por impeachment. A luta política tem outros instrumentos legítimos.

O movimento democrático às vezes pede a renúncia de um presidente. Agora, impeachment exige crime de responsabilidade. Isso tanto não foi observado que os direitos políticos de Dilma foram mantidos pelo Senado.

Bolsonaro cometeu muito mais crime de responsabilidade do que qualquer outro presidente na história do país. Tem dezenas de pedidos lá, todos na gaveta do presidente da Câmara.

Mas eu não saberia propor um desenho para o que está redigido na Constituição. Só que quando um país é imaturo institucionalmente, independe do que está escrito. Olha o que está acontecendo no Equador, na Bolívia. São absurdos totais. E não tem nada a ver com o que está escrito na Constituição. Tem a ver com a maturidade institucional. Há um movimento internacional enorme para permitir que o partido do [ex-presidente do Equador] Rafael Correa possa participar das eleições. O mesmo acontece com o do Evo Morales [Bolívia].

A gente já viu tantas Constituições brasileiras serem rasgadas: a de 1934, a de 1946 e agora em parte a de 1988. Não como no passado, mas de uma forma nova.

ConJur — Sobre o fenômeno das fake news, o senhor se viu no centro da história do "kit gay" no Ministério da Educação. Para além desses problemas, todos que a gente vê hoje de disseminação de notícias fraudulentas, de propósito mesmo, como guerra política, o senhor acha que a própria imprensa tradicional tem sua parcela de culpa?
Haddad — 
Acho que quando essa história apareceu lá em 2012 tinham a intenção de impedir a minha vitória para prefeito de São Paulo. Então eles [da imprensa] fizeram corpo mole na apuração. Precisou o Bolsonaro ganhar para a imprensa desmentir a existência de alguma coisa parecida com o "kit gay". Mas enquanto o Bolsonaro não ganhou, eles não desmentiram, não fizeram a lição de casa. Depois vieram os fact-checkings. Mas deixaram esse assunto perdurar por um bom tempo.

Quando você é um político progressista no Brasil, as regras não valem para você. Pode estar sujeito a arbitrariedades de toda ordem, tanto judiciais quanto midiáticas. Mas é próprio de um país desigual como o Brasil. Isso é um projeto. Não é um acaso.

Clique aqui para assistir a entrevista na íntegra ou veja abaixo:

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