Ação rescisória

TJ-RS mantém acórdão que condenou advogado a indenizar sucessores de aposentada

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6 de setembro de 2020, 8h20

Se fica clara a pretensão de rediscutir o julgamento proferido em sede de apelação, com a consequente reapreciação da prova contida nos autos, a ação rescisória deve ser julgada improcedente, já que não se presta como sucedâneo recursal.

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O Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul
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Com este entendimento, o 8º Grupo Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul indeferiu ação rescisória manejada por um advogado condenado a restituir valores e a indenizar em danos morais uma aposentada, ex-cliente dele em ação previdenciária, que morreu antes de ver a cor do dinheiro. Ela foi representada na ação rescisória pelos filhos sucessores.

O relator do processo, desembargador Leoberto Narciso Brancher, disse que a violação à norma jurídica, para ensejar a procedência do pedido rescisório, deve ser direta, literal e evidente, dispensando o reexame dos fatos e provas da causa. E isso não ocorreu no caso dos autos, pois o acórdão combatido — da 15ª Câmara Cível — deu interpretação razoável às normas de regência da questão de fundo posta na ação originária.

"Desse modo, não se presta a via rescisória à análise da justiça ou injustiça daquela decisão", escreveu o relator em seu voto. A decisão do colegiado, com entendimento unânime, foi tomada na sessão virtual do dia 14 de agosto.

Os sucessores da aposentada foram representados, neste processo, pelos advogados João Henrique e José Plínio Reisdoerfer, da banca Reisdoerfer Advogados Associados.

Ação de cobrança
Clarici Joana Ames Scher contratou os serviços do advogado Renzo Thomas para encaminhar pedido de aposentadoria por invalidez junto ao INSS. A ação previdenciária foi julgada procedente pelo Juizado Especial Federal (JEF) da 3ª Vara Federal de Santo Ângelo (RS).

Assim, a partir de agosto de 2004, ela passou a receber da autarquia, mensalmente, um salário mínimo. Por este serviço, segundos os autos, ela teria adiantado R$ 720 (em nove recibos de R$ 80), ainda em 2004. Ficaram pendentes, como desdobramento da vitória judicial, as verbas atrasadas da aposentadoria, que seriam pagas no correr do processo.

Naquele mesmo ano, o INSS depositou os atrasados, no total de 11,9 mil. O advogado, sem dar ciência do pagamento feito pela autarquia, sacou o dinheiro e permaneceu na sua posse. Os valores foram sacados por meio de Requisições de Pequeno Valor (RPVs), autorizados por outorga de procuração com poderes específicos.

Sem saber de nada e e necessitando destes valores, Clarici passou a pressionar o seu advogado, frequentando mensalmente o escritório dele durante os anos de 2005 e 2006. Nessas visitas, segundo historia os autos, era sempre informada de que o INSS ainda não havia feito qualquer pagamento a título de vencimentos de aposentaria retroativos.

No final do ano de 2006, um dos sobrinhos da aposentada descobriu, por meio da internet, que o instituto já havia efetuado o depósito dos valores desde 2004. Clarici se dirigiu ao escritório do advogado para dar-lhe ciência da descoberta e receber o que era devido. Este, então, pagou à cliente a importância de R$ 3 mil em dinheiro, em janeiro de 2007. No ato, ele a fez assinar um recibo em branco, dando plena quitação dos valores relacionados à ação previdenciária.

Sem entender direito o desfecho das tratativas, mas sentindo-se lesada pela retenção indevida de grande parte do proveito econômico da ação, Clarici ajuizou ação de cobrança, cumulada com danos morais, em face de Enzo, na Vara Judicial da Comarca de Cerro Largo (RS).

Por meio de seus novos advogados, alegou que, ao buscar documentos para realizar o saque na Caixa Econômica Federal, descobriu que seu procurador retirou valores, apresentando uma procuração pública, para quitação dos honorários advocatícios. O documento público o dispensava de prestar contas sobre os valores levantados em juízo. Informou que os honorários ajustados para o serviço foram pagos integralmente em 10 parcelas de R$ 80. Assim, garantiu que o ex-procurador era devedor da quantia de R$ 14,5 mil — tudo em função da retenção indevida de valores que não lhe pertenciam.

A defesa do réu
Em contestação, o advogado refutou os argumentos expostos na ação indenizatória, informando que tão logo recebeu os valores os repassou para a autora. Afirmou que, em novembro de 2004, acordou com ela o cronograma de pagamento dos honorários contratuais (30% sobre o valor recebido com a ação previdenciária, de R$ 3,5 mil): R$ 2,7 mil à vista e R$ 800 em dez prestações mensais e sucessivas de R$ 80.

Disse não ser verdadeira a alegação, lançada na inicial, de que a autora "possui raros momentos de lucidez". Desta forma, entendeu que o pedido de danos morais não deve ser acolhido pela Justiça, já que não praticou qualquer ato que pudesse macular os direitos de personalidade (artigo 5º, inciso X, da Constituição), da autora da ação. Entretanto, se condenado, pediu que o quantum indenizatório seja fixado de modo a evitar o enriquecimento sem causa da parte autora.

Sentença improcedente
Em sentença proferida no dia 6 de maio de 2012, o juiz Alejandro César Rayo Werlang julgou improcedente a ação, por entender que a aposentada não conseguiu provar que recebera apenas R$ 3 mil, como sustenta na peça inicial. E, de outra parte, porque o advogado anexou aos autos o recibo que comprova o pagamento à parte autora, datado de 26 de novembro de 2004, no valor de R$ 11,8 mil — exatamente o valor depositado pelo INSS.

Para o juiz, o recibo de quitação anexado suplanta qualquer alegação da parte autora, já que é prova do cumprimento da obrigação. Em outras palavras, o demandado na ação se desincumbiu do ônus que lhe competia. Já a autora, que tinha a obrigação de produzir prova suficiente a afastar a prova do pagamento acostada aos autos, não cumpriu o seu objetivo.

Conforme a registra a sentença, uma das testemunhas apenas comprova que a autora e seu esposo foram até o escritório de advocacia e, de lá, saíram com um envelope que continha R$ 3 mil em notas de pequeno valor. A testemunha admite, por outro lado, que conferiu o dinheiro — ficou sabendo apenas pela palavra do esposo da autora.

"Da mesma forma, as notas fiscais e cupons trazidos pela autora não são provas estreme de dúvidas e capazes de comprovar que a autora recebeu apenas e tão somente três mil reais do requerido. Portanto, não tendo a autora comprovado o seu direito, o corolário lógico é a improcedência de seus pedidos", definiu Werlang.

Recurso de apelação
Em combate à sentença, a defesa da autora interpôs apelação no Tribunal de Justiça. Em razões recursais, reafirmou que não recebeu os R$ 11,8 mil, valor que consta no recibo acostado aos autos, mas apenas um cheque de R$ 3 mil, pago em 2 de dezembro de 2006 — e nada mais. Por outro lado, admitiu ter assinado recibo em branco numa de suas inúmeras idas ao escritório de advocacia. Apesar de não deter conhecimentos técnicos ou qualquer tipo de instrução, pontuou, parece claro que este recibo em branco "salvou" o réu.

Finalmente, alegou que o procurador recebeu uma procuração em que resta afastada a obrigação de prestar contas, o que evidencia a intenção de não repassar qualquer valor ao cliente. E que este só não utilizou esta procuração após pesar as consequências.

Virada no segundo grau
Os desembargadores da 15ª Câmara Cível do TJ-RS, após se debruçarem sobre depoimentos e documentos, acolheram integralmente a apelação da autora. Eles entenderam que os argumentos do réu se mostraram confusos, com inúmeras contradições, de modo que retiraram a força probatória do recibo acostado aos autos — a única "tábua de salvação". Diferentemente, a versão da apelante encontrou respaldo na prova produzida no decorrer da instrução.

Com isso, o réu foi condenado a devolver a quantia atualizada de R$ 14,5 mil e ainda a pagar, a título de danos morais, o valor R$ 5 mil.

A relatora do recurso, desembargadora Ana Beatriz Iser, disse que o mandatário tem o dever legal de prestar as contas, ao mandante, acerca dos atos praticados no decorrer do exercício do mandato — especialmente sobre o repasse de valores recebidos como produto da ação judicial. Por isso, considerou "ineficaz, por força de lei" a exclusão do dever de prestar contas indicada no documento. Ou seja, este dispositivo do contrato não tem qualquer efeito prático.

No caso concreto, a relatora observou que as contradições e incoerências começam nas justificativas das diversas idas da autora ao escritório de advocacia entre os anos de 2005 e 2006. Enquanto o réu disse que ela ia pagar as parcelas de honorários, a autora repisava que fora cobrar os atrasados.

Ela apurou que, na verdade, a autora começou a pagar os honorários contratuais em fevereiro de 2004, concluindo o pagamento em outubro do mesmo ano. Ou seja, o pagamento dos honorários ocorreu de forma antecipada, muito anteriormente ao alegado acordo realizado entre os litigantes no escritório do réu.

"Ademais, foge da lógica a defendida retenção parcial dos honorários convencionais (R$ 2.700), no ato da sustentada quitação, e parcelamento do saldo remanescente em parcelas de R$ 80,00, sobretudo por [o advogado] estar em posse da integralidade do proveito econômico advindo da ação previdenciária", complementou.

A relatora criticou a forma como réu alegou ter feito a prestação de contas em seu escritório, já que não registrou a retenção da quantia referente aos honorários no recibo de quitação. A seu ver, o documento foi confeccionado em "completo desacordo" com o que se espera de uma límpida prestação de contas formalizada por um operador do Direito.

"À luz dos fatos acima relacionados, resta claro que o ato praticado pelo demandado, ao reter quase que a totalidade dos valores advindos da ação previdenciária, aproveitando-se da baixa instrução intelectual da autora e, sobretudo, considerando a delicada condição de saúde da demandante, acabou por materializar dano que extrapola o mero dissabor decorrente das relações sociais", definiu a desembargadora-relatora.

Ação rescisória
Na fase de cumprimento de sentença, o advogado Renzo Thomas ajuizou ação rescisória em desfavor da sucessão de Clarici — já que a autora havia falecido — e os filhos dela, Carlos Vilmar Scher e Lair José Scher, visando à desconstituição do acórdão da 15ª Câmara Cível.

Na fundamentação, ele alegou que o acórdão afrontou os artigos 319 (o devedor que paga tem direito a quitação regular) e 320 (a quitação sempre poderá ser dada por instrumento particular; ou seja, mediante simples recibo firmado pela credora) do Código Civil. Em síntese, o acórdão rescindendo violou manifestamente norma jurídica, pois relativizou a força probante do recibo de pagamento, não o reconhecendo como prova idônea.

A ação foi julgada improcedente pelo 8º Grupo Cível, colegiado que reúne desembargadores da 15ª e da 16ª Câmaras Cíveis do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul.

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043/1.07.0001433-9 (Comarca de Cerro Largo)

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