Observatório constitucional

Ainda não sabemos como se define uma multa confiscatória

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5 de setembro de 2020, 8h00

Spacca
Em 2013, publiquei nesta coluna do Observatório da Jurisdição Constitucional um artigo intitulado “Como o Supremo define uma multa confiscatória?”. No texto, analisava precedentes do STF em busca de parâmetros para estabelecer qual seria o patamar máximo aceitável para as multas tributárias, em face do princípio constitucional da vedação do confisco (artigo 150, inciso IV).

À época, alertava para o risco da leitura apressada dos julgados do Tribunal, que considerava excessiva qualquer multa acima do percentual de 100% e legítimas as sanções fixadas em percentual inferior. A legislação tributária em vigor – não apenas a federal – prevê multas com objetivos, hipóteses de incidência e bases de cálculo muito diferentes. Não se pode pretender dar a todas elas o mesmo tratamento jurídico, examinando apenas o percentual previsto na lei.

Nem todas sancionam o atraso ou não pagamento do tributo. Há e.g. multas isoladas pelo descumprimento de obrigação acessória, multas qualificadas pela prática de sonegação, fraude ou conluio e multas agravadas por reincidência. As bases de cálculo também divergem. Podem considerar o valor da operação ou prestação, o valor não pago, o valor do crédito ou contar com valores fixos, entre outras hipóteses.

Passados sete anos, o número de temas e decisões em sede de repercussão geral relacionadas a multas em matéria tributária cresceu consideravelmente, mas certas perplexidades parecem tão atuais quanto antes. Existem pelo menos seis temas de repercussão geral em que se discute a constitucionalidade das multas fiscais, dois deles já decididos (temas 214 e 872), três ainda aguardando data para julgamento (temas 487, 816 e 863) e um com julgamento iniciado e ainda não concluído (tema 736). Este quadro reúne esses casos e oferece uma visão geral sobre a temática.

A tabela ilustra a variedade de questões e espécies de multas, bem como a importância da temática no contexto do contencioso constitucional-tributário brasileiro. São diversos os temas de repercussão geral reconhecida e muitos os recursos sobrestados aguardando o desfecho dessas controvérsias.

O quadro chama atenção também por uma ausência: não há nenhum processo-paradigma de repercussão geral no qual o STF tenha efetivamente decidido que multas que superem o patamar de 100% do tributo sejam (sempre) inconstitucionais, muito embora essa tese seja frequentemente assumida em julgados das duas Turmas[1]. Veja-se, por exemplo, a ementa do ARE-AgR 938538, rel. Min Roberto Barroso:

"EMENTA: DIREITO TRIBUTÁRIO. AGRAVO INTERNO EM RECURSO EXTRAORDINÁRIO COM AGRAVO. MULTA PUNITIVA DE 120% REDUZIDA AO PATAMAR DE 100% DO VALOR DO TRIBUTO. ADEQUAÇÃO AOS PARÂMETROS DA CORTE. […]

2. A Corte tem firmado entendimento no sentido de que o valor da obrigação principal deve funcionar como limitador da norma sancionatória, de modo que a abusividade revela-se nas multas arbitradas acima do montante de 100%. Entendimento que não se aplica às multas moratórias, que devem ficar circunscritas ao valor de 20%. Precedentes."

Ainda que o argumento aparente certa lógica e simplicidade, com base na “tese de que o acessório não pode se sobrepor ao principal”[2], a rigor, não parece sequer existir precedente do Plenário em que essa questão tenha sido verdadeira e suficientemente enfrentada.

Os votos proferidos no julgamento do RE 582.461 (tema 214), mencionam precedentes em que o Plenário do Tribunal considerou multas como confiscatórias, mas com percentuais muito diferentes. São citadas nesse e em muitos outros julgamentos a ADI-MC 1075, Rel. Min. Celso de Mello, DJ 24.11.2006, e a ADI 551, Rel. Min. Ilmar Galvão, 14.11.2000, em que se examinaram multas de 200% (mora) a 500% (sonegação), no primeiro caso, e de 300% (omissão de rendimentos), no segundo. Mas, no julgamento do tema 214, o que se discutia era, na verdade, apenas a multa de mora de 20%, que o Tribunal entendeu ser compatível com a Constituição.

As decisões mais recentes em repercussão geral sobre a temática parecem ter adotado outra abordagem. Anos após o julgamento do tema 214, dois outros foram examinados no âmbito do Plenário Virtual do STF: o RE 606.010, de relatoria do Min. Marco Aurélio, concluído em 25/8/2020; e o RE 796.939, de relatoria do Min. Edson Fachin, com julgamento iniciado em 17/4/20 e interrompido pelo destaque do ministro Luiz Fux, que retirou o feito do Plenário virtual.

No primeiro, o RE 606.010, discutiu-se a constitucionalidade da sanção prevista no artigo 7º, II, da Lei n.10.426/2002, que estabelece multa por ausência ou atraso na entrega da Declaração de Débitos e Créditos Tributários Federais (DCTF). A sanção é graduada em 2% ao mês-calendário ou fração sobre o montante dos tributos informados até o limite de 20%. O argumento de violação da proibição do confisco e do princípio da proporcionalidade abarcava tanto a base de cálculo da multa – que considera o valor do tributo, embora sancione o descumprimento de uma obrigação acessória – quanto percentual aplicável ao dia, que é superior aos 0,33% (artigo 61 da Lei n. 9.430/1996) aplicáveis nas hipóteses de não pagamento do tributo, conduta que se supõe mais grave.

Por maioria, prevaleceu o voto do relator, ministro Marco Aurélio, que negou provimento ao recurso do contribuinte. Foi fixada a seguinte tese de repercussão geral: “Revela-se constitucional a sanção prevista no artigo 7º, inciso II, da Lei n. 10.426/2002, ante a ausência de ofensa aos princípios da proporcionalidade e da vedação de tributo com efeito confiscatório”. Ficou vencido apenas o ministro Edson Fachin, que entendia “inconstitucional a multa isolada prevista em lei para incidir diante da mera negativa de homologação de compensação tributária por não consistir em ato ilícito com aptidão para propiciar automática penalidade pecuniária”, nos termos da tese que propôs.

No segundo caso, RE 796.939, a alegação de confisco referia-se aos §§ 15 e 17 da Lei n. 9.430/1996, que determinam aplicação de multa isolada de 50% sobre o valor do débito no caso de declaração de compensação tributária não homologada. O principal fundamento contra a constitucionalidade da sanção estava na maneira como restaria violado o direito de petição, previsto no artigo 5º, XXXIV, “a”, da Constituição.

No plenário virtual, o voto do relator negou provimento ao recurso extraordinário da Fazenda Nacional, por entender que “a mera não homologação de compensação tributária não consiste em ato ilícito com aptidão para ensejar sanção tributária”. Ou seja, “a automaticidade da sanção, sem quaisquer considerações de índole subjetiva acerca do animus do agente, representaria, ao fim e ao cabo, imputar ilicitude ao próprio exercício de um direito subjetivo público com guarida constitucional”.

Com base nessa interpretação, o Min. Edson Fachin propôs a seguinte tese para o tema 736: "É inconstitucional a multa isolada prevista em lei para incidir diante da mera negativa de homologação de compensação tributária por não consistir em ato ilícito com aptidão para propiciar automática penalidade pecuniária". Chegou a ser acompanhado pelo voto de três outros ministros – Celso de Mello, Luiz Fux e Alexandre de Moraes –, antes de o julgamento ter sido interrompido por pedido de destaque.

A linha de entendimento adotada pelo ministro Edson Fachin, no RE 796.939, foi muito semelhante à do ministro Gilmar Mendes na ADI 4.905, de relatoria deste último. A ação foi proposta pela Confederação Nacional da Indústria (CNI) contra os mesmos dispositivos e também retirada do julgamento virtual por pedido de destaque do ministro Luiz Fux, em 12.5.2020. Para ambos os relatores, o pedido de ressarcimento e a declaração de compensação seriam formas de exercício do direito de petição e, portanto, não poderiam ter sido escolhidos para compor a hipótese de incidência da multa prevista no §17 do artigo 74 da Lei n. 9.430/1996, sob pena de violação da Constituição.

A rigor, ao contrário do que pode sugerir uma primeira leitura dos votos, não é que não haja um fato ilícito na hipótese de não homologação da compensação. Do ponto de vista estritamente lógico e formal, há sim. Afinal, se existe sanção, há ilícito: o ilícito é apenas o antecedente da norma sancionadora. O que se discute é a validade de se fazer dessa conduta o pressuposto de uma multa, uma vez que não se pode admitir que se colha na hipótese de incidência da norma sancionadora uma conduta permitida e protegida pela Constituição Federal. O ato de compensar – pedir/declarar a compensação – compreende-se no âmbito do direito de petição e, por conseguinte, não pode em si mesmo – isto é, sem nenhum elemento de abuso ou desvio – ser qualificado como ilícito por uma norma sancionadora abaixo da Constituição.

Independentemente do desfecho que venham a ter esses dois casos, no mérito, pelo que se pode verificar na fundamentação dos votos já proferidos nestes julgamentos e também no do RE 606.010, parece que se descortina agora uma mudança importante de perspectiva e abordagem das multas tributárias no STF. A preocupação com o patamar máximo aceitável para multas fiscais, em termos percentuais, deixa de ser o único viés de análise e interpretação da questão. Ganha espaço uma abordagem diferente, mais ampla, com ênfase nas condutas do fisco e do contribuinte e na maneira como as sanções afetam o exercício de seus direitos e deveres.

Nesse quadro, em que crescem o número de casos e importância dos temas de repercussão geral, não parece restar mais espaço para a interpretação, ainda frequente nas turmas e em decisões monocráticas do STF, de que a análise do caráter confiscatório das multas encontraria óbice na Súmula 279 do Tribunal. Ou seja, dependeria do reexame de fatos e provas, desautorizando o conhecimento do mérito do recurso.

O exame dos limites aplicáveis às multas fiscais, diante da vedação do confisco ou de qualquer outra norma da Constituição, é uma hipótese de controle de constitucionalidade, que não prescinde inclusive da observância da reserva de plenário, nos termos da Súmula Vinculante 10 do Tribunal.

Sem fugir do debate, espera-se que os próximos julgamentos de mérito do STF possam, enfim, trazer parâmetros estáveis, claros e seguros para definir em que consiste uma multa confiscatória no sistema tributário brasileiro, com critérios que se apliquem não apenas à União, mas também à infinidade de multas dos mais variados tipos que proliferam na legislação do Distrito Federal, dos Estados e Municípios.


[1] Por exemplo: ARE-AgR 1.058.987, rel. Min. Roberto Barroso, Primeira Turma, j. 1º.12.2017; AI- AgR 749.030, rel. Min. Dias Toffoli, Primeira Turma, j. 10/09/2013; RE- AgR 657372, rel. Min. Ricardo Lewandowski, Segunda Turma, J. 28/05/2013; ARE-AgR 938538 AgR, rel. Min Roberto Barroso, Primeira Turma, j. 30/09/2016.

[2] ARE-AgR 938538, rel. Min Roberto Barroso, Primeira Turma, j. 30/09/2016.

Autores

  • Brave

    é doutor em Direito pela Universidade de São Paulo (USP), consultor legislativo da Câmara dos Deputados, advogado e professor do Instituto Brasiliense de Direito Público. Foi assessor e chefe de gabinete de ministro do Supremo Tribunal Federal. Autor dos livros O Avesso do Tributo e Os Impostos e o Estado de Direito.

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