Opinião

O caminho escolhido para o saneamento no Brasil ou seu 'desenho de mercado'

Autor

  • Juliano Heinen

    é procurador do estado do Rio Grande do Sul e doutor em Direito Público pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

5 de setembro de 2020, 17h18

"Alice perguntou: 'Gato Cheshire… Pode me dizer qual o caminho que eu devo tomar?
'Isso depende muito do lugar para onde você quer ir', disse o Gato.
'Eu não sei para onde ir!', disse Alice.

'Se você não sabe para onde ir, qualquer caminho serve'." 
(Lewis Carroll, Alice no País das Maravilhas)

Na origem, os serviços de saneamento básico eram executados individualmente e de modo privado. Com o crescimento das cidades, o saneamento como um todo passou a ser uma das funções centrais dos governos locais, e com isso, a complexidade regulatória ficou extremada, dada que cada entidade pública municipal pode ter o seu manancial de regras, os quais podem ser quiçá inconsistentes com os demais. Logo, os desafios da regulação no setor de saneamento básico são enormes, não só pela complexidade de se normatizar tal serviço público, como pela multiplicidade de agentes reguladores existentes no país.

A aprovação do novo marco legal no setor, instituído pela Lei nº 14.026/2020, fornece um desafio ainda maior: A Agência Nacional de Águas (ANA), transformada em Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico pela referida legislação, passará a ter competência para editar regulamentos de referência, que servirão de base nacional ao setor.

Veja um ponto complexo no tema: o nível de investimentos no setor e do valor da tarifa paga pelo usuário devem ser compatibilizados. Se, de um lado, sempre se pretende o pagamento de baixas tarifas, de outro, quer-se o maior número de investimentos. Eis mais uma das muitas "equações" a serem dirimidas pela ANA e pelas demais agências reguladoras estaduais ou municipais. Por isso, neste texto, vamos apresentar algumas estratégias ao complexo setor de saneamento básico brasileiro.

Uma estratégia regulatória da agência nacional citada consistirá na previsão normativa de standards a serem observados por todos os prestadores, o que se dará pelas "normas de referência". Para fins de manutenção de um padrão mínimo de qualidade do serviço, por exemplo, poder-se-ia adotar o mesmo modo de agir da International Organization for Standardization (ISO), a qual fixa regras de performance das partes envolvidas [1]. Assim, regras mínimas para se obter benefícios operacionais e economia de custos seriam de extrema importância.

A regulação standard advinda da ANA reclama a imposição da eficiência, ainda que os contratos também possam assim induzir. Assuntos coligados podem fazer parte desta agenda, como, por exemplo:— O uso adequado da energia;

— Eficiência em compras;

— Treinamento dos recursos humanos;

— Emprego de novas tecnologias;

Formas versáteis de controle das perdas;

— Automação de processos.

Nesse contexto, será fundamental ser fixado um diálogo entre as agências reguladoras e os prestadores de serviço, para que se possa construir dialogicamente a boa prestação do serviço. Esse debate vai desde as regras de equilíbrio econômico-financeiro até o prazo mínimo dos contratos.

Então, como "desenhar" esse "mercado" para que ele se torne eficiente e menos custoso? O termo "desenho de mercado" não deve ser lido em termos estritamente econômicos, até porque estamos diante de um serviço público. Pretendemos aqui aplicar essa expressão no sentido de como se estrutura as boas práticas, as relações jurídicas, a regulação etc. no setor de saneamento básico. Feita essa explicação inicial, passemos a análise do assunto deste artigo.

O setor de saneamento básico não possui um espaço franco à livre concorrência por vários fatores, notadamente aqueles de ordem técnica ou natural [2]. Há experiências de concorrência na atividade de dispensação de água potável[ 3], mas bastante tímidas se comparadas a outros setores como a telefonia ou a energia elétrica. Exemplifico: é tecnicamente inviável uma competição no âmbito da drenagem de águas ou esgotamento sanitário, por conta de que os múltiplos prestadores teriam de construir múltiplas estruturas. Talvez se poderia pensar em concorrência na etapa do recebimento dos dejetos, abrindo-se um "livre mercado" para vários interessados receberem e processarem o esgoto.

Portanto, normalmente no setor de saneamento há uma concorrência de entrada, ou seja, uma disputa pela outorga da captação de água ou pela prestação das outras atividades — salvo, é claro, se esse serviço não é prestado pelo Estado. Em assim sendo, após a licitação para a concessão destas atividades, a prestação fica monopolizada por longos anos em uma companhia. Então, neste momento, haverá a concentração do mercado em um único agente ultradominante.

Sendo assim, as lógicas econômicas de formação de preços ou de valor não podem ser aplicadas para as tarifas [4], porque tal monopólio retira qualquer sentido, fundamento ou razão para tal. Assim, haverá uma intensa competição pelo mercado no início, que depois se transforma em longo período de ausência de competição, mas de muita regulação. Aliás, justamente por esses fatores ligados à concentração de mercado é que a regulação se faz imprescindível, para obrigar o prestador a garantir, por exemplo, a manutenção da qualidade dos serviços, a transparência, o cumprimento das metas de universalização ou de integralidade etc.

Então, as altas barreiras à entrada estão relacionadas aos efeitos de rede de serviços formada e dos altos custos de investimento. Torna-se difícil a competição no setor. E mesmo a competição na licitação pode não ser justa. Queremos dizer com isso que o atual prestador pode deter vantagens competitivas por já estar instalado no local de prestação dos serviços e deter uma série de informações do setor, especialmente quanto aos usuários. E, de outro lado, pode, assim, ser difícil coordenar a migração da concessão. Não obstante, essa dificuldade pode ser contornada, ou seja, o acesso a dados pode ser ampliado via contratos ou regulação, aumentando a igualdade competitiva para as empresas que não controlam as bases de informações.

De outro lado, como já dissemos em outro momento, o "mercado do saneamento básico" tem seu core na construção de grandes obras, ou seja, é um setor que reclama erguer ampla infraestrutura. Partindo dessa premissa, o problema central do saneamento básico e o ponto inicial de todo o debate se restringe a investimentos no setor para financiar essas mencionadas estruturas. Muitas foram as estratégias aplicadas: aporte de recursos públicos, linhas de crédito especial para este fim, emissão de títulos públicos [5], entre outros, normalmente combinados com a tarifa paga pelo usuário, a qual deve remunerar os investimentos e o custo de prestação[6]. Para alavancar os investimentos no setor, a Lei nº 14.026/2020, que modificou a Lei nº 11.445/2007, apostou que as metas de universalização e de integralidade poderiam ser alcançadas a partir do redesenho do setor, o qual passa a contar fortemente com investimentos privados, os quais serão ressarcidos ao longo do tempo pelo pagamento das tarifas dos usuários e pela eficiência na prestação.

Interessante notar que, no Brasil, o desenho de mercado da prestação de saneamento básico conta com leis de regência (normas de primeiro grau), bem como das regulamentações que podem ser expedidas por todos os municípios do país ou de modo regional, quando há a criação e a adesão a blocos. As unidades regionalizadas criadas pelos Estados ou os blocos criados pela União são muito parecidas em termos de escopo e de estrutura operacional. Há um problema de gênese, em que a titularidade do serviço continua sendo local, mas a prestação é regional. E como a prestação passará a ser feita por meio de delegação, o nível de institucionalidade deverá ser maior, inclusive em relação à estrutura de governança com participação proporcional. De mais a mais, a unificação dos contratos na regionalização será um grande desafio, por conta de que as realidades de cada município são diversas, o que implica disparidades na prestação.

Aliás, o monitoramento constante a execução do contrato, bem como a revisão da regulação podem ser bastante úteis para estabilizar as receitas, garantir a recuperação dos custos e ajudar a garantir um retorno razoável do investimento. No caso, é essencial que todas essas atividades estejam sendo feitas sob a perspectiva de informações e dados confiáveis e reais. Se isto não ocorrer, haverá sérias dificuldades em se obter preços baseados em custos.

Veja que, em termos de saneamento básico, dificilmente se consideram, por exemplo, os custos de oportunidade. Exemplifico: empresas que conseguem retirar mais facilmente água bruta possuem um custo de oportunidade menor, ou quando o esgotamento sanitário pode ser tratado com a adição de menos produtos ou ser levado a locais menos distantes. E tudo isso pode ser refletido na tarifa.

Hoje, em muitos negócios jurídicos na área de saneamento, a tarifa serve para pagar o custo da operação e o capital investido, e esse é um ponto nodal que diferencia de mercados concorrenciais. E isso terá de ser revisto, porque a tarifa deverá comportar, ainda, novos investimentos. Esse é um ponto central na regulação do setor.

Por tudo isso, tomando por base a passagem de Carroll que inaugura este artigo, não é qualquer caminho que serve ao setor de saneamento no Brasil. Precisaremos, sim, saber qual caminho selecionar. No próximo texto, falaremos sobre a experiência norte-americana e sobre as novas possibilidades do setor.

 


[1] Essa ideia pretendia ser aplicada na França, no começo dos anos 2000.

[2] Falo aqui das condições geográficas ou meteorológicas.

[3] Na Inglaterra, estabeleceu-se uma concorrência neste setor no começo dos anos noventa.

[4] Exemplo: efficient capital markets hypothesis (ECMH), das décadas de 1970 e 1980, ou behavioral finance, da década de 1980 em diante (GILSON, Ronald J. e KRAAKMAN, Reiner H. The mechanisms of market efficiency twenty years later: the hindsight bias. Harvard Law School John M. Olin Center for Law, Economics and Business. Discussion Paper Series, paper 446, 2003, Disponível em: https://pdfs.semanticscholar.org/86ce/200da24544cb09fd92f3c97e939169f6c2ef.pdf.

[5] Nos Estados Unidos, após a Primeira Guerra Mundial, o Governo federal isentou de imposto de renda os juros e a compra de títulos públicos municipais, fazendo com que estes papeis fossem atrativos. Essa estratégia permitiu com que ás entidades locais conseguissem financiar grande parte das obras de saneamento básico.

[6] Nos Estados Unidos, em 1996, a Agência de Proteção Ambiental dos Estados Unidos (Environmental Protection Agency – EPA) estimou que se deveria investir US$ 140 bilhões em infraestrutura na área de saneamento nos próximos 20 anos. No Brasil, os níveis de investimento estão muito aquém do esperado. E o quadro é agravado pela má gestão de muitos contratos ou mesmo pela sua incompetência em sequer começar a executá-los. Em outras palavras, ainda que exista recursos públicos disponíveis para as obras no setor, em muitos casos não há a sua operacionalização – conforme estudo feito pelo CERI-FGV (CENTRO DE ESTUDOS EM REGULAÇÃO E INFRAESTRUTURA – CERI. Efetividade dos investimentos em saneamento no Brasil: da disponibilidade dos recursos financeiros à implantação dos sistemas de abastecimento de água e de esgotamento sanitário. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 2016. Disponível em: https://ceri.fgv.br/sites/default/files/publicacoes/2018-10/39_efetividade-dos-investimentos-em-saneamento-no-brasil-25-09-2016.pdf.

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    é procurador do Estado do Rio Grande do Sul, doutor em Direito (UFRGS), professor de Direito Administrativo e autor da obra "Curso de Direito Administrativo" (Ed. Juspodivm).

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