Diário de Classe

Complexo de vira-latas e mixagens teóricas no Direito high tech

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5 de setembro de 2020, 10h42

I — Situando o problema
“As ciências naturais nos dizem o que,de fato, acontece: a verdade real, empírica. Afinal, foram elas que nos trouxeram até aqui, que permitiram o desenvolvimento de carros, de smartphones e que nos dão esperança quanto à pandemia do coronavírus. Longe da nauseante subjetividade que obscurece até hoje o caminho das ciências humanas, o método científico foi capaz de fornecer respostas objetivas a toda espécie de problemas das nossas vidas.

“A inteligência artificial, assim, ao permitir a análise de linguagem natural cientificamente, é nossa principal aliada para trazer o mundo jurídico ao século XXI. É por meio dela que poderemos combater a morosidade judicial, as arbitrariedades do Judiciário,prestar serviços aos clientes com mais agilidade, entre muitos outros benefícios. Nenhum ser humano compete com a velocidade de processamento e com a imparcialidade das máquinas.”

Não sou tolo de acreditar que as palavras acima não guardam absolutamente nenhuma verdade, até porque imagino que todos que estão lendo este texto utilizam automóveis, computadores e internet no seu dia a dia. Somos seres humanos acostumados há muito tempo para lidar com tecnologia, desde simples utensílios manuais até máquinas que chegam ao espaço. Entretanto, tenho sérias ressalvas quanto a simplificações desse caráter. É tudo tão perfeito nas ciências naturais e tudo tão errado nas ciências humanas? O grande déficit do Direito, então, é a falta de tecnologia para nos guiar no percurso?

Veja-se, assim, que não nego o deslumbramento que a tecnologia exerce sobre nós. O fascínio é um sintoma natural à exposição a novidades tão promissoras e de difícil compreensão.Apesar disso — e em razão disso —, preocupo-me com o arrebatamento da área jurídica pela inteligência artificial. O problema central deste texto é este: a substituição do intérprete no Direito pelas máquinas — assim chamadas — inteligentes.

Recentemente, aqui na ConJur, Lenio Streck e Alexandre Morais da Rosa, cada um a seu modo, publicaram textos que ilustram dois posicionamentos antípodas. Levantarei dois tópicos que considero essenciais para discutir o assunto.

II — Incompatibilidade de estrutura fenomenológica
Parece haver uma certa crença, tão ingênua quanto equivocada, sobretudo no âmbito das ciências humanas, de que as ciências exatas encerram uma verdade metodológica irrepreensível, sendo tarefa dos juristas tentar transportá-la para o campo do Direito. Não tiro isso da minha cartola: o positivismo exegético (la bouche de la loi) tentava limitar a decisão do juiz a uma mera aplicação mecânica de um texto previamente posto pelo legislador. Aliás,não precisamos ir muito longe no tempo: o objetivo das súmulas de estabelecer precedentes com força de lei para o futuro[1] repete a tentativa de “trancar” a interpretação,como se possível sua aplicação mecânica.

Seja como for, é surpreendente o quão raramente os juristas analisam o efeito estultificante das “Leis da Razão” ou da prática científica. Discorrem e opõem-se com severidade contra os problemas internos ao fenômeno jurídico, mas engolem sem pestanejar algum padrão que pareça corresponder às “leis do método científico”. É como se ignorassem que a ciência é um “empreendimento essencialmente anárquico”, como bem diz Feyerabend.[2] Na própria ciência não existem princípios firmes, imutáveis e absolutamente obrigatórios. Como não se inquietar com o fato de que invenções como o atomismo na Antiguidade, a Revolução Copernicana, a teoria quântica, entre outras, só foram desenvolvidas porque alguns pesquisadores resolveram contrapor as regras metodológicas da sua época?

Olhar para as ciências exatas com alguma inveja pelas suas conquistas é salutar apenas para nos inspirarmos a aperfeiçoar cuidadosamente o Direito, nunca para aceitar sem questionamentos os avanços tecnológicos.A religião do objetivismo científico pressupõe piamente que a visão de mundo da ciência informa e produz resultados, trabalhando apenas com fatos. Mesmo que isso fosse verdade — e não é, já que a ciência também exige interpretação de resultados, hipóteses e tradições de pesquisa diversas —, como aplicar adequadamente instrumentos, como a inteligência artificial, que geralmente envolvem números e medições de grandezas físicas (temperatura, pressão, velocidade, aceleração),externas às relações intersubjetivas, a questões abstratas como legitimidade, dolo, culpa, validade? Elas não podem ser resumidas a simples ideais quantitativos, pois estão intimamente relacionadas com uma dimensão essencialmente pragmático-contextual, muito distante dos cálculos sobre as probabilidades de vitória em um jogo de xadrez, por exemplo.

É possível essa objetividade das máquinas na arena de desacordos morais do Direito? Vamos calcular então a quantidade de presunção de inocência de caso, o volume de legítima defesa e a variância de igualdade.Talvez os cientistas da computação tenham resolvido um dos problemas mais caros à teoria jurídica.O fenômeno jurídico funciona de modo diferente das ciências exatas. Isso não quer dizer cair em relativismo: devemos buscar a verdade no Direito, mas ela não aparece do modo como ocorre nas ciências naturais. Não há inteligência artificial que vá conseguir colocá-los no mesmo plano.

É evidente que é possível montar uma máquina para pegar certas informações, comparar com os dados do caso concreto e despejar uma decisão automatizada. Ninguém ignora isso. O grande problema é que todo esse maquinário “esconde” o caminho, a argumentação, oculta um “inconveniente” fundamental de toda tarefa hermenêutica — filológica, religiosa, jurídica —, que é a indissociabilidade entre ideologia e estrutura conceitual das normas.

Nenhum físico mede a quantidade de neutrinos que nos atravessam a cada segundo a partir de uma análise pragmática da justificação moral/política/econômica que levou o neutrino a se deslocar dessa ou daquela maneira; nenhuma inteligência artificial “pensa” em direcionar determinada postagem nas redes sociais a partir de uma deliberação interpretativa. É claro que o paradigma do jogo ideológico que (co)existe nessas duas situações está bem presente, no primeiro caso, na revolução que conduziu à teoria física atualmente aceita (Thomas Kuhn[3]), e, no segundo caso, no cientista/programador que tem o controle sobre a máquina. No entanto, no Direito, a sua aplicação sempre pressupõe o (re)pensamento sobre as conexões entre as palavras da lei e os fatores políticos e ideológicos que produzem e determinam suas funções na sociedade, segundo Warat.[4]

Quero dizer com isso que os mais fanáticos pela inteligência artificial no Direito pretendem a supressão de algo que é indispensável para o fenômeno jurídico enquanto tal. Ninguém imagina um juiz decidindo sobre as consequências jurídicas de um rompimento contratual sem uma compreensão substantiva sobre a formação de um contrato (capacidade do agente, licitude do objeto, forma não defesa em lei etc.). Entre ausentes, o que significa que uma proposta contratual não foi imediatamente aceita? Chegou-se a um algoritmo perfeito para se dizer o que é imediatamente? Também imagino que não haja quem seja favorável a um juiz que condene alguém à prisão por diferenciar entre uso e tráfico de drogas apenas com base na quantidade de entorpecentes. Existe um método objetivo para diferenciá-los sem necessitar do contexto? Os especialistas em inteligência artificial deveriam contar aos legisladores o segredo.

De qualquer modo, o Direito envolve, sim — ao menos deveria envolver —, um jogo de linguagem que não pode “esquecer” do contexto, por mais que muitos juristas assim o desejem. Supor que as máquinas “saberão” superar esse abismo entre descrição e realidade é recuperar a “pureza metódica” (tão mítica quanto um unicórnio) com que muitos empiristas, sobretudo no Direito, sempre sonharam. Se os brasileiros já realizam a autocrítica sobre o seu “complexo de vira-latas”, nas belas palavras de Nelson Rodrigues, acredito que precisemos também nos darmos conta de um “complexo de vira-latas” na própria ciência humana aplicada que é o Direito. Não temos autoestima enquanto área do conhecimento: basta tomar as várias tentativas de reduzir o elemento jurídico a um empecilho nos cálculos econômicos ou na concretização de políticas suspeitas.

Não somos “menores” ou “piores” por não nos encontrarmos à altura do “grau de certeza” que existe nas áreas mais exatas; o Direito, enquanto fenômeno que regula práticas sociais com variáveis quase infinitas, tem suas bases epistemológicas inseparavelmente conectadas à intersubjetividade. Tentar “exatificar” a interpretação jurídica não é uma simples “reordenação” de um procedimento específico, mas a destruição do próprio núcleo do Direito.

Parece-me ser muito apressada e grosseira qualquer tese que admita de pronto a possibilidade de utilizar corretamente a inteligência artificial no Direito para a interpretação jurídica. Não posso “fechar os olhos” para os problemas que os colegas advogados enfrentam no Judiciário. Sei das graves violações de princípios e preceitos constitucionais que acontecem no País afora todos os dias. Apesar disso, temos uma segunda dificuldade de difícil superação que “nasce” do próprio problema que se pretende resolver com a inteligência artificial no Direito.

III — Inconsistências na aplicação do Direito
A “espécie” de inteligência artificial da moda no Direito é aquela baseada em algoritmos que se autoaperfeiçoam (machine learning) conforme mais e mais casos (informação) são submetidos à sua apreciação. Essa tecnologia tem sido cada vez mais utilizada porque se observou que o aprimoramento desses robôs que aprendem,a partir do fornecimento de grande quantidade de dados e por conta própria, em diversas situações, é capaz de ser mais eficiente do que aquilo que um programador humano poderia ter desenvolvido. Cresce a autonomia dos algoritmos e, com ela, crescem as dificuldades de previsão e explicação das tarefas desempenhadas por eles. O raciocínio de máquina é muitas vezes obscuro, e é possível que, em diversas aplicações, talvez sequer seja possível compreendê-los.

E o Direito fica como no meio disso tudo? A inteligência artificial depende de informação de qualidade para ser bem desenvolvida e poder ser aplicada. É ela que treina o algoritmo. Em um cenário em que a doutrina jurídica ora invoca a literalidade da lei para dizer alguma coisa, ora invoca o voluntarismo do intérprete para dizer a mesma coisa, não parece que os robôs já vão nascer desorientados? Mesmo que se partisse da ideia de que, sim, os algoritmos vão salvar a morosa Justiça brasileira porque a automatização vai permitir o julgamento de milhões de processos em segundos, ainda teríamos que resolver se estamos alimentando bem a mente da criança em desenvolvimento. Um Judiciário ativista conduzirá à formação de um juiz-robô ativista – robô pode ser ativista?

As pessoas imaginam que a inteligência artificial trará objetividade para o Direito e que isso confere um selo de qualidade irretorquível (cientificismo), mas aparentemente esquecem – ou desconhecem – os fundamentos da sua construção. Se um juízo decide sempre errado sobre determinada questão – e juízos erram! –, pois “não gosta” de determinada lei, como ficará o algoritmo treinado para fazer as vezes dele? Se a doutrina jurídica brasileira é pródiga em importar conceitos jurídicos dos gringos e confundir/distorcer os seus significados, o que será dos advogados-robôs e demais jusrobôs no país? Nem algoritmos são filhos de chocadeira!

A tarefa é mais difícil do que parece: não basta estofar a mentezinha do robô com a Constituição Federal e as milhões de leis do Brasil e esperar que ele vá saber dizer quando há contrariedade ao Direito. O grande problema disso tudo é que a inteligência artificial depende(rá), em essência, do que construímos como comunidade jurídica até hoje. Esperar que daí resulte um robô que obedeça à coerência e à integridade do Direito é piada. O professor Streck reforça sempre este ponto: informação não equivale a conhecimento; se fossem equivalentes, qualquer um com acesso ao Google poderia sair lecionando sobre qualquer tópico. Não é assim.

Não se trata aqui de um simples problema de viés algorítmico clássico— como se se pudesse inserir uma nova linha de código para “corrigir” os vícios pontuais da máquina —, mas de um modo de produção jurídica enraizado há muitas décadas, cuja superação não se resume a uma linha de código a mais ou à exclusão ou adaptação de critérios específicos. Fazendo coro novamente a Streck,[5] é muito comum encontrar (i) trabalhos que invocam a ponderação alexyana como um enunciado performático, sem sequer observar os seus pressupostos lógicos de aplicação; (ii) profissionais que, em nome de um ideal de justiça subjetivista, defendem que o juiz decida casos de modo mais emotivo ou atendendo à “voz das ruas”; (iii) teses e obras que atribuam o título de princípio a qualquer coisa que lhes sirva de amparo ou escora para sustentação de determinado ponto de vista, por mais arbitrário que seja (imagine-se um robô decidindo que um pai tem de pagar ao filho indenização por dano moral em nome do “princípio da afetividade”!); (iv) sincretismos teóricos que se valem tanto de autores positivistas como Kelsen e Hart quanto de Dworkin e Müller para explicar a decisão judicial, ignorando-se as radicais diferenças entre os seus pensamentos.

A aplicação de sistemas de IA, portanto, sem o devido questionamento e monitoramento sobre os dados que viabilizam o seu treinamento, é temerário; no caso brasileiro, poderá conduzir, inclusive, à perpetuação de um imaginário jurídico que ainda não se adaptou às mudanças democráticas promovidas pela Constituição Federal de 1988.Ao fim e ao cabo, isso tudo conduz a novos questionamentos: as máquinas inteligentes, imersas nessa realidade e por ela conformadas, conseguirão representarão um ganho de qualidade para o sistema jurídico? Se existem tantas posições contrárias à lei e até mesmo à Constituição coexistindo no País, como que a inteligência artificial poderá se ver livre desse círculo vicioso? Será que haverá uma homogeneização de decisões e interpretações iníquas e incorretas? Vale a pena então?

IV — Agravando o problema
Como aprimorar o Direito e sair de tanta lambança praticada Brasil afora? As pessoas gostam de receber presentes: os embaixadores da inteligência artificial no Direito parecem emissários da solução divina.

Mas não parece estranho que anos e anos de uma prática jurídica surrada possam desaparecer a partir de uma resposta tão alheia quanto surpreendente à área jurídica? Quer dizer, o que resta é deixar o Direito para as máquinas trabalharem com o que tem aí?Teimamos em corrigir o Direito de fora para dentro, mas nenhuma filosofia séria indica que seja possível torná-lo “exato” nem que seja adequado fazê-lo com base em práticas jurídicas como as que dispomos no Brasil. Em vez de diminuir a crise, vamos piorar a situação: passaremos de juízes ativistas para robôs que “decidem” com base em decisões ativistas prévias.

[1] STRECK, Lenio Luiz; ABBOUD, Georges. O que é isto — o precedente judicial e as súmulas vinculantes? 3. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2015.

[2] FEYERABEND, Paul. Contra o método. 2. ed. Tradução Cezar Augusto Mortari. São Paulo: Unesp, 2011, p. 35-37.

[3] KUHN, Thomas S. A estrutura das revoluções científicas. 13. ed. Tradução de Beatriz Vianna Boeira e Nelson Boeira. São Paulo: Perspectiva, 2018.

[4] WARAT, Luis Alberto. O Direito e sua linguagem. 2. ed. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, [ca. 2000], p. 47.

[5] STRECK, Lenio Luiz. Verdade e consenso. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2017, p. 78-95; 557-560.

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