Opinião

Os direitos sociais, a crise da Covid-19 e a morte anunciada

Autor

  • Maria Lúcia Barbosa

    é professora adjunta da Faculdade de Direito do Recife (UFPE) membro do Grupo de Pesquisa REC (Recife Estudos Constitucionais) secretária da Comissão de Estudos Constitucionais da OAB-PE membro do grupo de pesquisa Asa Branca UFPE mestre e doutora em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).

5 de setembro de 2020, 13h11

A atual crise sanitária nos revela, no sentido real da palavra, as contradições sociais nas quais sempre estivemos mergulhados em um país marcado por desigualdades que se perpetuam e se aprofundam constantemente.

Não por acaso, os grupos sociais mais vitimados pela Covid-19 são aqueles que vivenciam uma condição de subcidadania [1], já que os direitos fundamentais básicos como saúde, trabalho, salário, saneamento e educação não lhes são assegurados, ainda que o Estado brasileiro tenha assumido tais compromissos no artigo 6º do texto constitucional de 88.

Os dados ainda que recentes são indicativos de que o agravamento no número de casos de Covid-19 e no número de mortes pela enfermidade têm um perfil social, de gênero e racial, de modo que a doença atinge as pessoas que residem em áreas de maior vulnerabilidade social, pobres, mulheres, pretos e pardos.

A parcela da população que mais sofre contágio pelo coronavírus reside em habitações nas quais o isolamento social não é possível porque são áreas exíguas não assistidas por serviços básicos como saneamento, energia elétrica e água. Segundo dados do IBGE de 2019, cerca de 18,4 milhões de pessoas não têm água potável e 35,7% não têm tratamento de esgoto em suas residências [2]. Desse modo, as recomendações da Organização Mundial de Saúde são impossíveis de serem seguidas por uma parcela significativa da população brasileira mais vulnerável socioeconomicamente e ao vírus.

Entre os trabalhadores, as mulheres, que se ocupam majoritariamente da função do cuidado, seja no trabalho doméstico ou no trabalho assalariado, estão mais suscetíveis à doença. São as mulheres negras a maioria das empregadas domésticas que foram as primeiras vítimas fatais da Covid-19 no Brasil. As mulheres também são maiorias entre as enfermeiras, técnicas de enfermagem e auxiliares de limpeza que trabalham em hospitais expostas substancialmente ao risco de contágio. Portanto, há de se considerar que mulheres, sobretudo as negras e pobres, têm maior chance de contágio e morte por Covid-19.

A pandemia não vitima as pessoas de forma indiscriminada, há cidadãos e cidadãs que podem se proteger, seja no trabalho remoto, seja porque podem seguir as recomendações de autoridades de saúde e estão salvaguardados por legislação social, e outros que necessariamente se arriscam, já que executam trabalhos informais, precários e mais arriscados.

Fazer a leitura dessas circunstâncias é fundamental para compreensão de que a colonialidade é responsável pelo recorte de classe, raça e gênero que vitima de morte mais de 140 mil pessoas atualmente no Brasil. Por colonialidade, quase um elemento constitutivo do Estado brasileiro, entende-se a perpetuação de características marcantes da estrutura colonial de poder, uma espécie de DNA colonial que atravessa o tempo e ainda se encontra visível nas discriminações transversais.

A colonialidade diz respeito a um fenômeno histórico complexo que se estende até os dias de hoje e se refere a um padrão de poder que opera através da naturalização de hierarquias territoriais, raciais, culturais e epistêmicas, as quais possibilitam a reprodução de relações de dominação, que ensejam a exploração pelo capital dos seres humanos em escala global, como nos advertem Enrique Dussel, Aníbal Quijano, Walter Mignolo, entre outros autores do chamado giro descolonial. Continuamos vivendo "sob a égide da matriz colonial de poder que denota que embora o colonialismo tenha chegado ao fim, é a colonialidade que marca as relações de poder contemporâneas" [3].

Essa compreensão da existência e permanência da colonialidade possibilita o reconhecimento dos processos de exclusão de grupos sociais subalternizados até os dias atuais e a Covid-19 é mais uma predisposição iminente de morte em massa dessas pessoas no Brasil. Os resquícios, as continuidades das relações coloniais e as suas diferentes formas contemporâneas de reprodução e manifestação são determinantes para a compreensão dos níveis de injustiças estruturais, econômicas e sociais. A invisibilização de mortes de cidadãos privados de direitos sociais evidencia que as vidas dos sujeitos da zona do não ser [4] são menos importantes, embora formalmente a proteção à vida humana seja uma garantia constitucional.

Boaventura Santos [5] enumera que aspectos da pedagogia do vírus, nos remetendo a uma possibilidade de aprendizado nessa crise pandêmica, que a colonialidade (colonialismo) e o patriarcado estão vivos e reforçam-se, eis que os corpos racializados e sexualizados são sempre os mais vulneráveis, o que nos lança o questionamento sobre como sairemos dessa crise. Se mais conscientes do papel do Estado, sobretudo do papel central do poder executivo, na promoção de políticas publicas que assegurem a fruição de direitos sociais por todos, numa postura de defesa do Estado forte e promotor de direitos, ou se sairemos ainda mais individualistas e preocupados apenas com nossas vidas e direitos individuais, que permitem a alguns cidadãos usufruir de direitos básicos como trabalho, renda, moradia, alimentação sem se expor ao risco de contágio.

O número de mortes por Covid-19 no Brasil é sintomático e comprova que a ausência estatal no cumprimento de direitos básicos é uma causa significativa dessa tragédia vivenciada por muitas famílias que sequer puderam se despedir dos seus entes queridos. Cada pessoa que vive ou já viveu o luto sabe que esse processo é dilacerante e deve ser ainda mais doloroso quando compreendemos que as perdas poderiam ter sido evitadas com uma postura responsável e atuante por parte dos agentes de Estado. Espero que entre as lições que o vírus lamentavelmente nos trouxe estejam a de que necessitamos de um Estado mais atuante e responsável no cumprimento da constituição, sobretudo no tocante aos direitos sociais.

 

Referências bibliográficas
BRAGATO, Fernanda Frizzo. Não há futuro na colonialidade. 2016. Disponível em: <http://emporiododireito.com.br/nao-ha-futuro-na- colonialidade

BRAGATO, Fernanda Frizzo. A colonialidade no Direito. 2016. Disponível em: <https://emporiododireito.com.br/a-colonialidade-no-direito-por-fernanda-frizzo%20bragato/>.

DUSSEL, Enrique. 1492: o Encobrimento do outro: a origem do mito da modernidade: Conferencias de Frankfurt / Enrique Dussel; tradução Jaime A. Clasen – Petrópolis, RJ: Vozes, 1993.

FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Salvador: EdUfba, 2008.

MIGNOLO, Walter D. “A Colonialidade de Cabo a Rabo: o Hemisfério Ocidental no Horizonte Conceitual da Modernidade”, In: A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latinoamericanas. LANDER, Edgardo (org). Colección Sur Sur, CLACSO, Ciudad Autónoma de Buenos Aires, Argentina. setembro 2005. pp 33-49.

QUIJANO, Anibal. Colonialidade do Poder, Eurocentrismo e América Latina, In: A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas ltinoamericanas. LANDER, Edgardo (org). Colección Sur Sur, CLACSO, Ciudad Autónoma de Buenos Aires, Argentina. setembro 2005. pp. 107-130.

SANTOS, Boaventura de Souza, A Cruel Pedagogia do Vírus. Edições Almedina S.A, abril 2020.

Souza, J. (2005). (SUB)CIDADANIA E NATURALIZAÇÃO DA DESIGUALDADE: um estudo sobre o imaginário social na modernidade periférica. REVISTA DE CIÊNCIAS SOCIAIS – POLÍTICA & TRABALHO, 22, 67-96

 


[1] SOUZA, 2005. 6

[2] https://www.ibge.gov.br

[3] BRAGATO, 2016.

[4] FANON, 2008.

[5] SANTOS,2020.

Autores

  • é professora adjunta da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), membro do Grupo de Pesquisa REC (Recife Estudos Constitucionais), secretária da Comissão de Estudos Constitucionais e Cidadania da OAB-PE e doutora em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).

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