Opinião

A nova presunção legal sobre serviços de advogado na Lei nº 14.039/20

Autores

  • Gustavo Justino de Oliveira

    é professor doutor de Direito Administrativo na Faculdade de Direito na USP e no IDP (Brasília) árbitro mediador consultor advogado especializado em Direito Público e membro integrante do Comitê Gestor de Conciliação da Comissão Permanente de Solução Adequada de Conflitos do CNJ.

  • Pedro da Cunha Ferraz

    é advogado no escritório Tojal Renault Advogados graduado em Direito pela PUC-SP.

4 de setembro de 2020, 7h10

No último dia 12 de agosto, o Congresso Nacional derrubou o veto presidencial ao PL 4.489/2019, dando origem à Lei federal nº 14.039/20, a qual dispõe sobre a natureza técnica e singular dos serviços prestados por advogados e por profissionais de contabilidade.

Com base em análises tão açodadas quanto superficiais, noticiou-se erroneamente que o Legislativo estaria autorizando a livre e aleatória contratação pública de advogados e contadores sem licitação. Essa esdrúxula interpretação levaria a inexato entendimento de que as classes profissionais referidas no novo texto legal estariam "passando uma boiada", por meio de lobby realizado junto aos parlamentares e que, a partir de agora, estaria instituída legalmente uma nova e muito mais flexível modalidade de contratação direta dessas categorias de profissionais pelo poder público.

Nada mais equivocado.

A Lei federal nº 14.039/20 há de ser compreendida à luz do sistema de contratação direta de tais serviços já previsto na legislação existente [1]. Anteriormente vetada pelo presidente da República, sob o argumento de inconstitucionalidade por violação ao dever de licitar [2], interpretada adequadamente, a lei não tem o condão de afastar a regra geral de licitação para toda e qualquer contratação de advogados e contadores. Portanto, a novidade normativa encontra-se na previsão de uma presunção legal, segundo a qual são de natureza singular os serviços advocatícios e de contabilidade que demandem a contratação de profissionais com notória especialização.

A notória especialização pode ser aferida por diversos elementos que demonstrem a singularidade do prestador de serviço, permitindo visualizar o caráter incomum e diferenciado do sujeito contratado. Nesse exato sentido está a definição trazida pelo parágrafo único do atual artigo 3º-A do Estatuto da Advocacia — reproduzindo o que já consta nos artigos 25, §1º, da Lei 8.666/93 e 30, §1º, da Lei das Estatais: "Considera-se de notória especialização o profissional ou a sociedade de advogados cujo conceito no campo de sua especialidade, decorrente de desempenho anterior, estudos, experiência, publicações, organização, aparelhamento, equipe técnica ou outros requisitos relacionados com suas atividades, permita inferir que o seu trabalho é essencial e indiscutivelmente o mais adequado à plena satisfação do objeto do contrato".

Importa esclarecer que, mesmo depois da entrada em vigor da Lei federal nº 14.039/20, nas contratações diretas de advogados ainda remanesce a necessidade do serviço jurídico a ser contratado ser dotado de singularidade relevante, pois tão somente esse demanda "notória especialização". Assim, mantida essa diretriz normativa e hermenêutica como necessária para a contratação por inexigibilidade, inegável que o diferencial da nova lei é introduzir no ordenamento jurídico brasileiro, explícita e acertadamente, a seguinte presunção legal: o serviço jurídico é dotado de singularidade relevante quando se mostrar adequada a contratação de advogado ou de escritório de advocacia com notória especialização.

Assim, a inovação trazida pela Lei 14.039/2020 caminha no mesmo sentido da Lei de Licitações e do Estatuto das Estatais, embora neste último diploma legislativo não se tenha previsto a natureza singular do serviço como requisito para a contratação direta por notória especialização. É o que se extrai agora do caput do o artigo 3º-A, incluído pela nova lei ao Estatuto da OAB: "Os serviços profissionais de advogado são, por sua natureza, técnicos e singulares, quando comprovada sua notória especialização, nos termos da lei".

Ora, não se pode admitir que a lei esteja criando uma autorização legal para, por exemplo, uma empresa estatal contratar por inexigibilidade advogado ou escritório de advocacia notoriamente especializados para defendê-la em qualquer ação judicial comum, movida por um usuário por falha na prestação do serviço. Tal situação se configuraria como contrária à finalidade da modalidade "contratação direta" e, por isso, violadora da regra geral da licitação. Com efeito, uma contratação assim, caso concretizada, seria ilegal antes da Lei federal nº 14.039/20, e continuaria ilegal mesmo após a sua promulgação.

Dito isso, parece bastante claro que a maior finalidade da Lei federal nº 14.039/20 é a de organizar o cenário tormentoso e inseguro em que se transformou a contratação direta de advogados pela Administração Pública, conferindo-lhe pragmatismo e segurança jurídica por meio da previsão de uma clara e inequívoca presunção legal. Indicativo da turbulência acerca do tema é o Recurso Extraordinário (RE) 656.558/SP, com repercussão geral reconhecida pelo STF, que desde 8/9/2011 tramita na corte, ainda sem julgamento. Discute-se em seu bojo se a contratação de serviços de advocacia por entes públicos, sem licitação, configuraria ato de improbidade administrativa, dentro do que se aborda a questão da viabilidade de os serviços advocatícios serem contratados por inexigibilidade [3].

Tal inovação legislativa mostrou-se, portanto, absolutamente necessária porque Tribunais de Contas, Ministério Público e Judiciário, ao se debruçarem sobre essas contratações, geralmente acabavam "criminalizando" a quase totalidade dos contratos firmados com advogados, gerando forte insegurança no gestor público e criando obstáculos a situações nas quais a contratação de serviços jurídicos altamente especializados seria não somente legítima, mas principalmente necessária para o adequado desenvolvimento da atividade administrativa e atendimento do interesse público em casos concretos.

Sem prejuízo disso, de um lado, há que se reconhecer excessos e patologias na contratação direta de serviços jurídicos em situações como: I) contratação direta de advogados privados em hipóteses nas quais, pela natureza do serviço (simples, ordinário e cotidiano), claramente se exigiria licitação; ou mesmo II) contratação direta de advogados para a realização de serviços advocatícios de massa, quando o órgão ou entidade pública já possui em seus quadros número suficiente de profissionais jurídicos aptos, competentes e com disponibilidade para realizarem tais atividades.

Entretanto, por outro lado, em reação a tais disfuncionalidades surgiu uma nova anomalia: tornou-se corriqueiro que advogados legalmente contratados pela Administração Pública, ainda que para prestarem serviços que demandem notória especialização, passassem a responder a inquéritos civis e ocupar o polo passivo de ações de improbidade administrativa, chegando ao extremo de responderem a processos criminais em certas ocasiões. Um cenário insustentável.

Pois bem, é justamente no espaço localizado entre os extremos dessas duas anomalias que a Lei federal nº 14.039/2020 foi inserida, e por isso estes extremos devem ser levados em consideração para chegarmos todos a uma boa compreensão e interpretação das novas regras.

Indubitável que não se pode admitir que a sua ratio e conteúdo representem um "salvo-conduto" para toda e qualquer contratação direta de advogados. Bem longe disso, o que a lei faz — e o faz muito bem — é criar a presunção normativa de natureza singular do serviço, quando existir contratação direta de advogado ou escritório de advocacia notoriamente especializados para um dado serviço, no qual a notória especialização seja conditio sine qua non para a consecução adequada do objeto contratual. Se em determinado caso concreto existir a necessidade de um advogado com notória especialização em decorrência da qualidade do serviço a ser contratado, a competição é e deverá ser considerada inviável, pois inexistem critérios objetivos aptos a viabilizar a competição entre os profissionais notoriamente especializados — cada qual é contratado por fornecer o serviço especializado de determinada maneira, e está justamente aí o critério que os leva a ter suas especialidades consideradas notórias [4].

Assim, a lei não deve ser considerada como a "boiada da OAB", que ensejaria ou estimularia contratações diretas indiscriminadas de serviços jurídicos. Suas disposições normativas apenas afinam e calibram situações confusas e distorcidas que se instauraram no âmbito das contratações de advogados por inexigibilidade de licitação. A qualidade singular do serviço advocatício é diretamente vinculada à necessidade de um profissional com notória especialização, e a lei tornou isso de uma clareza solar, didática e pedagógica para o seu intérprete e aplicador. Sendo necessário o advogado notoriamente especializado, seu corolário é que o serviço se presume dotado de natureza singular.

A inovação legislativa aqui analisada gera um importante incentivo legislativo às contratações diretas quando estas se mostrarem realmente necessárias, e reforça sobremaneira os ônus do Ministério Público e dos Tribunais de Contas na demonstração de eventual ilicitude presente nas contratações direta de serviços jurídicos.

Reprise-se que em nenhuma medida a lei pretende afastar critérios e parâmetros normativos já devidamente reconhecidos na análise da matéria pelo Judiciário, em especial pelo STF [5]. Apenas torna mais adequada e segura a contratação celebrada dentro de tais critérios e parâmetros. Não restam afastadas as exigências de validade para a contratação por inexigibilidade por notória especialização: I) notório saber do contratado; e II) inviabilidade de competição. Diante de tais critérios, o que estabelece a Lei federal nº 14.039/20 é que o serviço jurídico é presumido como singular.

Portanto, no âmbito da inovação legislativa, somente estarão incluídos advogados ou escritórios de advocacia notoriamente especializados, que forem contratados para serviços que efetivamente demandem sua particular especialização, i.e., modelagens contratuais de empreendimentos complexos e/ou inovadores, consultorias em processos de revisão tarifária de serviços públicos, produção de parecer e opiniões jurídicas, ou mesmo representação em causas jurídicas de alta complexidade.

Para situações tais como as descritas acima, deve-se evitar que "o medo que paira sobre os agentes públicos responsáveis pelas contratações administrativas (seja) prejudicial à eficiência da Administração" [6]. Não se pode fugir da contratação direta por inexigibilidade "tão somente porque não há a segurança jurídica necessária para adotar a solução realmente adequada e oportuna" [7].

Em face do exposto, a Lei federal nº 14.039/20 deve ser vista com bons olhos pela comunidade jurídica e pelo gestor público ético, probo e eficiente, pois: I) incentiva e estabiliza a contratação de serviços de advogados notoriamente especializados sempre que houver uma real necessidade pública a ser atendida; II) aumenta significativamente o ônus daqueles que eventualmente questionarem a escolha legítima do gestor público; e III) afasta de plano injustas e infundadas acusações de ilegalidade e improbidades que infelizmente vinham se tornando muito comuns no dia a dia dos tribunais pátrios. Trata-se de avanço normativo e de conquista inegável da classe dos advogados que merece ser reconhecida e amplamente homenageada.  

 


[1] (i) Artigo 25, II, e artigo 13, inciso V, da Lei nº 8.666/93; e, (ii) Artigo 30, II, “e”, da Lei 13.303/16.

[2] O veto do presidente da República ocorrido em 08/01/2020 acatou as razões apresentadas pelo Ministro da Justiça e Segurança de que “A propositura legislativa, ao considerar que todos os serviços advocatícios e contábeis são, na essência, técnicos e singulares, viola o princípio constitucional da obrigatoriedade de licitar, nos termos do inciso XXI, do artigo 37 da Constituição da República, tendo em vista que a contratação de tais serviços por inexigibilidade de processo licitatório só é possível em situações extraordinárias, cujas condições devem ser avaliadas sob a ótica da Administração Pública em cada caso específico, conforme entendimento do Supremo Tribunal Federal (v.g. lnq. 3074-SC, Rel. Minº Roberto Barroso, Primeira Turma, DJe 193, de 3-10-2014)

[3] Desde 22/4/2020, os autos estão conclusos com o Rel. Minº Dias Toffoli.

[4] Nesse sentido, em outra oportunidade, sustentamos que: “havendo mais de um sujeito que preencha os requisitos legais, não há como apontar aquele cuja atuação será essencial e indiscutivelmente a mais adequada para a plena satisfação do objeto do contrato. Assim, inevitavelmente, a escolha se revestirá de alguma discricionariedade." (OLIVEIRA, Gustavo Justino de. SCHIEFLER, Gustavo Henrique Carvalho. Contratação de serviços técnicos especializados por inexigibilidade de licitação pública. Curitiba: Zênite, 2015, p.106).

[5] O Supremo Tribunal Federal já decidiu que: “A contratação direta de escritório de advocacia, sem licitação, deve observar os seguintes parâmetros: a) existência de procedimento administrativo formal; b) notória especialização profissional; c) natureza singular do serviço; d) demonstração da inadequação da prestação do serviço pelos integrantes do Poder Público; e) cobrança de preço compatível com o praticado pelo mercado.” (Inq 3074, Relator(a): Minº ROBERTO BARROSO, Primeira Turma, julgado em 26/08/2014, publicado em 03/04/2014).

[6] OLIVEIRA, Gustavo Justino de. SCHIEFLER, Gustavo Henrique Carvalho. Op. Cit., p. 188.

[7] Idem, 189.

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