Opinião

Anteprojeto de reforma remodela ações coletivas brasileiras

Autor

  • José Roberto Mello Porto

    é defensor público do Rio de Janeiro assessor jurídico da presidência do Supremo Tribunal Federal e presidente da Comissão em Estudos em Processo Civil da OAB/RJ.

4 de setembro de 2020, 14h29

A tutela coletiva brasileira se encontra em patamar de consolidação respeitado no cenário global. É inegável que o mosaico existente, a juntar aos processos coletivos (tutela coletiva pela via principal) os procedimentos fixadores de teses jurídicas (tutela coletiva pela via incidental) e os mecanismos extrajudiciais, garante um enriquecido funcionamento e, na última linha, a proteção dos direitos transindividuais e dos individuais agregados.

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Há muito, no entanto, se pretende robustecer o tratamento legal, através da criação de um Código de Processo Coletivo — pleito que jamais encontrou significativa adesão legislativa. Recentemente, porém, viu-se um novo capítulo, com a criação de um grupo de trabalho (GT) , no Conselho Nacional de Justiça (na presidência do ministro Dias Toffoli).

A composição — heterogênea sob a ótica da origem e homogênea quanto à qualidade dos juristas — esclarece a preocupação com o delineio de marco legal das ações coletivas democrático e comprometido com a maior efetivação dos direitos em jogo, com a presença da ministra Maria Isabel Gallotti, coordenadora, dos ministros Gurgel de Faria e Bruno Dantas, dos conselheiros Henrique Ávila e Maria Tereza Uille, dos desembargadores Aluisio Gonçalves de Castro Mendes e Sérgio Shimura, dos professores Humberto Theodoro Júnior, Teresa Arruda Alvim, Ricardo de Barros Leonel, Fredie Didier Júnior, George Abboud, Patrícia Pizzol e Welder Queiroz dos Santos, bem como do secretário especial Richard Pae Kim e do juiz Rogério Marrone de Castro Sampaio.

O grupo elaborou um anteprojeto de lei, entregue ao deputado Rodrigo Maia na última segunda-feira, comprometido com a resolução simples e eficiente das demandas coletivas. A simplicidade passa, naturalmente, por concatenar o tratamento legal em apenas um diploma, razão pela qual a normativa, se aprovada, revogaria a Lei da Ação Civil Pública e o Código de Defesa do Consumidor, este apenas em seu terceiro título.

Diversas são as pensadas modificações dignas de aplauso. Não deixa de chamar a atenção, anteriormente, o respeito demonstrado pelo histórico evolutivo dos processos coletivos brasileiros. Propõe-se a mudança com os olhos postos no aprimoramento de pontos criticados pela doutrina e/ou intrincados na prática, porém com precioso senso de continuidade científica.

Como não há modernidade sem uma boa tradição, são mantidos, com pequenos ajustes, os moldes atuais de elementos centrais do microssistema, a exemplo do conceito dos direitos tuteláveis (artigo 1º do anteprojeto, próximo ao atual artigo 81, parágrafo único, do CDC), do princípio da atipicidade (artigo 5º do anteprojeto, atual artigo 83 do CDC) e do rol de legitimados (artigo 2º).

Quanto a esse último aspecto, crucial na tutela coletiva, é marcante a preocupação com a representatividade adequada, notadamente das associações. O anteprojeto traz diversos parâmetros, muito além da exigência temporal de um ano de constituição, para que o ente associativo possa bem representar seus membros, que, a propósito, deverão autorizar o ajuizamento. Fala-se, em listagem exemplificativa, no número de associados, na capacidade financeira, no histórico de casos em que se envolveu a associação, nos especialistas que compõem seus quadros e no número de atingidos pelo dano. A avaliação da representatividade adequada, ope iudicis, far-se-á após a oitiva do Ministério Público, tanto no início do processo como no seu decorrer, pesando, aqui, a conduta processual do legitimado ativo.

De outro lado, como é ínsito aos projetos de marco legislativo de temas de tamanha relevância, importa sublinhar as alterações imaginadas pelos juristas que delinearam o anteprojeto. A norma, se aprovada como se apresenta, toma posição quanto a questões polêmicas na tutela coletiva.

No tocante à relação entre ação coletiva e ações individuais, adota-se a necessidade de o indivíduo desistir de sua demanda para que possa se beneficiar da coisa julgada coletiva — sistemática hoje excepcionalmente prevista apenas para o mandado de segurança e para o mandado de injunção, me impetrações coletivas. Como decorrência lógica, a ação coletiva não mais suspende o trâmite das individuais (artigo 25, §§3º a 6º).

Quanto à competência territorial, sepulta-se o emaranhado vigente, fruto da diferenciação, até hoje pouco precisa, entre danos locais, regionais e nacionais, selecionando-se o foro da capital e, nele, preferencialmente varas especializadas, para o juízo e conhecimento, não obstante seja positivada a competência do domicílio da vítima para liquidação e execução do título coletivo.

Outras tantas questões deverão ser incluídas, pela vez primeira, no plano legal dos processos coletivos, como a ampliação do tratamento da consensualidade material (com previsão de prazo de dois anos para ajuizamento da ação anulatória do acordo homologado) e processual (com expressa menção aos negócios processuais), a previsão da remessa necessária como norma geral (na esteira do entendimento atual do Superior Tribunal de Justiça, mas sem mitigação em relação às ações que versem sobre direitos individuais homogêneos), o conceito de prova nova capaz de relativizar a coisa julgada coletiva (o critério passa a ser a impossibilidade de sua produção na primeira demanda) e o ônus da prova (que segue a regra da afirmação, na linha do diploma processual geral).

Por fim, existem significativas mudanças em relação a temas consagrados no atual microssistema, como a questão das custas, que passariam a seguir o regramento do Código de Processo Civil (artigo 34 do anteprojeto).

Em se tratando de anteprojeto, se antevê um longo caminho, especialmente por se tratar de matéria que envolve delicada ponderação de interesses. A boa nova é que a via para o debate está, uma vez mais, aberta. Propositivamente aberta.

Autores

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    é defensor público do Rio de Janeiro, presidente da Comissão de Estudos em Processo Civil da seccional do Rio de Janeiro da Ordem dos Advogados do Brasil, doutorando e mestre em Direito Processual pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj).

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