Opinião

O polêmico projeto da nova lei de ações coletivas

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4 de setembro de 2020, 16h09

Na quarta-feira (2/09), representantes do CNJ entregaram ao presidente da Câmara dos Deputados um anteprojeto que aperfeiçoa o arcabouço normativo que regula as ações coletivas no Brasil. O projeto foi gestado por um grupo de trabalho presidido pela ministra Isabel Gallotti com o objetivo de consolidar a normatização geral da tutela coletiva, e traz uma série de disposições polêmicas, uma vez que acerca de algumas delas nunca se estabeleceu consenso doutrinário. Se o tema das ações coletivas já era, por quase quatro décadas, bastante controverso, o projeto de lei lança mais lenha na fogueira, levantando velhas questões que já pareciam ignoradas pela força do tempo e acrescentando outras que certamente serão objeto de pesquisa nos próximos anos, caso o projeto seja exitoso e se converta em lei.

O projeto possui, assumidamente, duas marcas indeléveis: simplicidade e eficiência. Isso fica nítido com a incorporação na lei de normas cuja ratio é, essencialmente, a mesma que informa a flexibilização procedimental e cooperação entre os sujeitos do processo consagrada pelo CPC 2015: I) a possibilidade de demonstração da representatividade adequada por quaisquer meios adequados; II) admissão de todas as ações capazes de propiciar a adequada e efetiva tutela dos direitos transindividuais; III) preferência pela celebração de acordo para destinação direta do proveito da condenação na realização de obras ou atividades para restaurar o dano causado (tornando subsidiária a destinação ao FDD, cujos recursos dependem de um procedimento mais burocrático para ser utilizados; IV) possibilidade de ampliação do prazo de contestação, a depender da complexidade da causa; V) a possibilidade de celebração de negócios jurídicos processuais em qualquer fase do processo; VI) possibilidade de produção de todas as provas admitidas pelo ordenamento, ainda que não especificadas em lei; admissão de utilização de prova por amostragem ou estatística; e VII) possibilidade de qualquer litígio ser resolvido por meio de acordo ou TAC.

Outra característica que se revela um dos pilares centrais do projeto é a representatividade adequada do legitimado coletivo para a condução da ação.

O tema vem sendo objeto de importantes estudos no âmbito doutrinário [1] e consiste em uma inovação do projeto, uma vez que, embora sempre fosse almejada uma representatividade adequada no âmbito da tutela coletiva, essa expressão não havia sido utilizada pelas legislações anteriores, existindo apenas em relação ao amicus curiae, no caput do artigo 138 do CPC 2015. A inserção não encerra mero preciosismo terminológico e tem, a bem da verdade, vocação para alterar a lógica de verificação da fidelidade da representação coletiva aos interesses dos representados, tornando-a mais rigorosa.

Como já demonstramos em outra ocasião [2], o modelo do sistema brasileiro de admissibilidade da ação coletiva opera sob uma lógica ope legis: os critérios para uma adequada representação estão elencados na lei (a propositura da ação por um dos legitimados autorizados e a pertinência entre sua finalidade institucional e o objeto da ação, adicionando-se, no caso das associações, a existência prévia há um ano). Atendidos esses requisitos, a lei considera haver uma representação adequada, ainda que, se colocado o grupo representado sob uma lupa, fosse possível encontrar dissidências que infirmariam uma aderência da representação aos reais interesses dos indivíduos que o compõem.

Os Estados Unidos há muito adotam um modelo mais rigoroso de verificação da representatividade adequada, que opera in concreto. Segundo esse modelo, o juiz, antes de conceder a certificação da classe, analisa se, de fato, estão presentes e sendo devidamente observados os difíceis de superar requisitos de admissibilidade das class actions: numerosity (extensão da classe), commonality (predominância das questões comuns sobre as individuais), typicality (afinidade do representante da classe com a pretensão dela) e adequacy (adequação da representação). Este último sendo o requisito que se assemelha à representatividade adequada do projeto.

Essa rigorosidade se justifica pelo fato de que as class actions, nos EUA, têm o condão de fazer coisa julgada pro et contra, isto é, a favor ou contra a classe — o que não ocorre atualmente no Brasil, pois optou-se, aqui, pelo modelo de coisa julgada secundum eventum litis. Existe uma relação direta entre a rigorosidade da verificação da adequação da representatividade e a compatibilização do maior alcance preclusivo da coisa julgada com o devido processo legal. Nesse sentido, o projeto da nova lei de ações coletivas, ao adotar a expressão representatividade adequada e dispor uma série de formas pelas quais ela poderá ser demonstrada, aproxima o modelo brasileiro do norte-americano, incorporando, inclusive, a relação de equivalência entre a solidez da representação e a extensão subjetiva da coisa julgada. Daí a importância de que, vingando o projeto, os juízes, ao admitirem uma ação coletiva, não se limitem a realizar mero "balançar de olhos", adaptando a expressão de Karl Engish, entre o postulante e o objeto da ação. Será preciso ir além e aferir a fidelidade, no caso concreto, dessa representação aos reais interesses dos membros da classe representada.

Merece maior detalhamento a questão da coisa julgada pro et contra. Ela está prevista no artigo 25, caput, do projeto de lei das ações coletivas, sendo esse, talvez, o ponto mais polêmico do projeto, uma vez que revoga a norma dos atuais §2º e 3º do artigo 103 do CDC, que por sua vez consagram a coisa julgada secundum eventum litis.

A coisa julgada pro et contra foi rejeitada pelos responsáveis pela elaboração do CDC, que fizeram opção expressa pela coisa julgada secundum eventum litis [3]. Muitas razões podem ter levado a essa escolha, mas uma, política, em especial, a explica bem.

Como a própria exposição de motivos da nova lei de ações coletivas fez questão de sinalizar em nota de rodapé, o epicentro da processualística na década de 1990 era o acesso à Justiça [4]. O Brasil passava pela segunda onda renovatória enunciada por Cappelletii, e os desafios ainda eram endereçar carências básicas de acesso à Justiça de que padeciam o país, sobretudo em relação aos hipossuficientes e vulneráveis, além de garantir representação para os recém-surgidos direitos difusos e coletivos.

Dentro desse contexto, seria dificilmente aceitável que o legislador de 1990 adotasse qualquer outro regime para a extensão dos efeitos da coisa julgada coletiva que não o secundum eventum litis. Isso porque a coisa julgada nos demais regimes, em especial o pro et contra, pode prejudicar os direitos individuais de pessoas que, tendo relação com o processo, não tiveram a chance de nele se manifestar, e fazê-lo seria ir de encontro com movimento da época, que fazia do acesso à Justiça o "ponto central da moderna processualística", para usar as exatas palavras de Cappelletti [5]. Afinal, o modelo pro et contra trabalha com a inércia [6]: os membros do grupo, tendo ou não conhecimento da demanda, caso não venham a juízo requerendo sua exclusão (opt-out), serão vinculados pela decisão. Naturalmente, nenhum outro regime de coisa julgada poderia garantir a incolumidade dos direitos individuais (e, por conseguinte, do acesso à justiça desses direitos) melhor do que a coisa julgada secundum eventum litis com aproveitamento in utilibus, como adotou o legislador. Arriscar por outro caminho poderia implicar em dificuldades na própria aprovação do CDC naquele momento.

Agora, ao que parece, ao fazer uma opção pela coisa julgada pro et contra, o projeto de lei das ações coletivas desfaz a opção política feita pelo legislador trinta anos atrás. O artigo 25 do novo projeto parece vir marcado com o reconhecimento de que os tempos são outros, sendo a equação, atualmente, um pouco mais complexa do que a que se colocava em 1990, pois se enfrenta não só o desafio de garantir acesso, mas também eficiência — fator que, se Geoffrey C. Hazard Jr. estiver certo, com a virada do século XXI, começa, inevitavelmente, a determinar a própria noção de qualitativa de justiça civil [7].

Ponto-chave para o sucesso do pretendido modelo é a publicidade da ação coletiva.

O projeto prevê que "proposta ação, deve-se-lhe dar toda publicidade possível, por meio de edital, do cadastro a ser criado pelo Conselho Nacional de Justiça, pelo site de agencia reguladora envolvido e por outros meios" (artigo 10º), estabelecendo, inclusive, que a consulta ao cadastro passa a ser requisito para a configuração de interesse processual na propositura da demanda (artigo 10º, §2º, e artigo 14).

É da própria essência da teoria da representação a promoção de uma ampla divulgação do expediente cuja resolução possa vir a atingir a esfera de múltiplos indivíduos. Essa regra existe tanto para a tutela pluri-individual, como para a tutela coletiva. Onde quer que se adote a coisa julgada pro et contra a publicidade ganha contornos dramáticos, visto que de seu alcance e efetividade depende a satisfação do devido processo legal — especificamente em seu postulado mais básico de que ninguém pode ser atingido por algum processo cuja existência desconhecia, tão bem representado pelo clássico de Kafka [8]. A título de exemplo, nos EUA, que adotam esse modelo, a publicização da class action é tão relevante que se admite a inclusão da notificação (notice) na fatura que empresas prestadoras de serviço público mensalmente remetem a seus usuários [9]. A efetividade dessa notificação aos membros que compõem a classe é determinante para o sucesso na admissibilidade da class action, pois se insere no âmbito de análise do requisito de adequação da representação (adequacy).

A manutenção do cadastro é medida oportuna e que se harmoniza com outra disposição polêmica do projeto: o artigo 26, no qual se determina que "a eficácia da sentença e a coisa julgada operar-se-ão erga omnes, em todo território nacional".

Sabe-se que o artigo 16 da LACP, atualmente, circunscreve a extensão desses efeitos aos limites da competência territorial do órgão prolator da decisão, sendo esse um dos pontos mais sensíveis das ações coletivas e que há muito tem dividido a doutrina. Com o projeto, tendo o dano proporção nacional, igual extensão poderá ter a eficácia da sentença e os efeitos da coisa julgada. Como as ações coletivas são, em regra, de competência do juízo de primeiro grau, a norma amplia sobremaneira o poder jurisdicional do juiz, e não menos sua responsabilidade, já que sua sentença, dotada de eficácia erga omnes, agora poderá alcançar todo o país.

Dentro desse quadro, arriscado, em que se conjuga a eficácia erga omnes com a coisa julgada pro et contra, a maior publicidade possível da ação coletiva (artigo 10, caput) cumpre dois papeis indispensáveis: por um lado, o de chamar os atores para a construção conjunta da decisão, propiciando uma legitimação da sentença (que terá vocação para atingir o país inteiro) pelo oferecimento de um contraditório amplo, participativo e efetivo; e, por outro lado, o de permitir que aqueles que não queiram ser atingidos pela coisa julgada possam optar, expressamente, por dela se excluir (opt-out).

Ambos os papeis buscam cumprir a missão de assegurar o devido processo legal em suas múltiplas manifestações nessa equação sensível entre eficiência-participação. Justamente para isso é que concorrem os instrumentos previstos nos artigos 15 e 25, §3º, a saber: participação de amicus curiae, realização de audiências públicas e opt-out.

Por último, merece destaque a expressão "possível", que grifamos propositalmente. Ela se assemelha a um dispositivo das Federal Rules of Civil Procedure, que determina à corte, ao expedir a notificação, empregar os melhores esforços possíveis para alcançar todos os membros passíveis de serem identificados [10].

Entendemos que essa expressão tem vocação normativa, dando margem, talvez, a uma atipicidade dos meios de notificação da demanda coletiva, que, certamente, deverá ser objeto de estudos mais aprofundados. Vale dizer que é justamente essa cláusula aberta prevista na regra norte-americana que admite seja a notificação da class action veiculada até mesmo em faturas enviadas aos seus usuários por prestadoras de serviços públicos (não como via principal, mas complementar, para a notificação).

Ao que nos parece, à opção pela coisa julgada pro et contra com eficácia erga omnes, deve-se seguir um compromisso sério com a ampla notificação da demanda coletiva, devendo, para isso, ser empregadas múltiplas medidas, sob pena de um alcance diminuto e insuficiente implicar em violação ao devido processo legal.

Enfim, aguardemos as cenas dos próximos capítulos.

 


[1] VITORELLI, Edilson. O devido processo legal coletivo: dos direitos aos litígios coletivos. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016. p. 330.

[2] DANTAS, Bruno. SANTOS, Caio Victor Ribeiro. Impactos transnacionais da tutela coletiva norte-americana: como a crise das class actions levou o Brasil a optar pela tutela pluri-individual. In. MENDES, Aluíso Gonçalves de Castro; PORTO, José Roberto Mello (Coord). Incidente de resolução de demandas repetitivas. 1 ed. Salvador: Editora Juspodivm, 2020., p. 117-140.

[3] “Assim, no juízo de valor que antecedeu à escolha do legislador, verificava-se que a extensão da coisa julgada a terceiros, que não foram pessoalmente parte do contraditório, ofereceria riscos demasiados, calando fundo nas relações intersubjetivas, quando se tratasse de prejudicar direitos individuais; além disso, o esquema brasileiro da legitimação poderia suscitar problemas de constitucionalidade, na indiscriminada extensão subjetiva do julgado, por infringência ao contraditório. Foi por isso que o Código de Defesa do Consumidor agasalhou o regime da extensão da coisa julgada a terceiros, que não foram parte do processo, apenas para beneficiá-los.” In: GRINOVER, Ada Pellegrini; WATANABE, Kazuo; NERY JR., Nelson. Código de Defesa do Consumidor: comentado pelos autores do anteprojeto. 10 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2011, vol. II. p. 181.

[4] Nota n. 4.

[5] CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à Justiça. Tradução Ellen Gracie Northfleet. Porto Alegre:Fabris, 1988, p. 13

[6] DODSON, Scott. An opt-in Option for Class Actions. Michigan Law Review., vol. 115., issue 2., 2016

[7] HAZARD JR., Geoffrey C. Challenges in Law Making in Mass Societies. Faculty Scholarship Series. Paper 2327, 2007,

[8] KAFKA, Franz. O processo. Tradução de Modesto Carone. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.

[9] THE AMERICAN LAW INSTITUTE. Princípios do Direito: Processo Agregado. Trad. Bruno Dantas. 1. ed. – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2017. p. 254

[10] Dispõe a Rule 23, (b)(3) das Federal Rules of Civil Procedure que: “the Court shall direct to the members of the class the best notice to all members who can be identified through reasonable effort.”

Autores

  • é assessor de ministro do TCU, especialista em Direito Processual Civil pelo Instituto Brasiliense de Direito Público e pesquisador do grupo Processo Civil à Luz da Constituição Federal e Aditus Iure (IDP).

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