Opinião

A taxatividade penal e o crime de gestão temerária

Autor

  • André Luís Callegari

    é advogado criminalista pós-doutor em Direito Penal pela Universidad Autónoma de Madrid professor de Direito Penal no IDP-Brasília sócio do Callegari Advocacia Criminal e parecerista especialista em lavagem de dinheiro.

4 de setembro de 2020, 18h08

Desde a aprovação da Lei nº 7.492/86, que regula os crimes contra o sistema financeiro nacional, pouco se esclareceu a respeito de determinadas condutas incriminadas, ficando, na maioria das vezes, os tribunais encarregados de preencher os vazios deixados pelo legislador.

A técnica para a redação dos dispositivos contidos na lei não foi a mais feliz, é dizer, faltou clareza muitas vezes ao legislador na hora de definir o que se incrimina, ferindo-se, frontalmente, o princípio da taxatividade dos tipos penais. Evidentemente que não se desconhece a possibilidade da edição de tipos abertos, pois fazem parte de nosso ordenamento jurídico como o homicídio culposo. A lei não diz o que significa isso, mas o juiz faz um juízo de comparação entre uma conduta prudente e aquela realizada pelo causador do homicídio para estabelecer se houve o crime.

Ocorre que, para proteger o sistema financeiro nacional através do Direito Penal, criou-se um crime de gestão temerária, inserto no artigo 4º, parágrafo único, da Lei nº 7.492/86, porém, o legislador olvidou-se de outros postulados básicos que servem de garantia ao cidadão, isto é, deixou de lado a garantia máxima de descrever de forma mais precisa possível a conduta que se está incriminando (taxatividade) e, por via reflexa, ferindo, também, o própria legalidade penal.

O problema é que essas cláusulas abertas como o tipo penal que prevê a gestão temerária (artigo 4º) supõe uma desmedida amplitude e incorreção do preceito que contém [1]. Assim, a redação de tipos penais abertos como o de gestão temerária choca frontalmente com os princípios básicos do Direito Penal e que também se encontram reconhecidos na Constituição Federal, como é o caso da legalidade [2]. O termo utilizado pelo legislador também entra em contradição com os princípios de segurança e de taxatividade jurídicas, já que deste modo supõe que o julgador tenha que penalizar qualquer comportamento que tenha como finalidade gerir temerariamente uma instituição, sem, ao menos, deixar claro o que seja tal temeridade, aliás problemática afeita aos tipos penais abertos.

O termo utilizado pelo legislador também entra em contradição com os princípios de segurança e de taxatividade jurídica [3], já que deste modo supõe que o julgador tenha que penalizar qualquer comportamento que tenha como finalidade gerir temerariamente uma instituição, sem ao menos deixar claro o que seja tal temeridade, aliás, problemática afeita aos tipos penais abertos.

Ninguém se opõe à proteção do sistema financeiro nacional, porém, que as condutas incriminadas sejam claras e precisas, pois esta precisão também é garantia do cidadão num Estado democrático de Direito.

O que é enigmático é que autores como Tigre Maia reconheçam que o tipo penal da gestão temerária se trata de cláusula aberta e sujeito à complementação exegética do aplicador da lei [4], ou seja, quem deve definir se a gestão foi ou não temerária será o juiz, muitas vezes sem qualquer conhecimento de operações do sistema financeiro. Mas, em contrapartida, não reconheça que o tipo penal em comento viole o princípio da legalidade, utilizando, como um de seus argumentos, o fato de o legislador também se valer de cláusulas abertas em outros tipos penais, como é o caso exemplificativo do rapto de "mulher honesta" da arcaica Parte Especial do Código Penal de 1940 [5].

A argumentação utilizada não pode servir de base para sustentar a utilização de tipos penais abertos, mormente no que tange à atividade econômica. Veja-se que o efeito comparativo utilizado por Tigre Maia não se sustenta num Estado social e democrático de Direito. Como é possível dizer que é permissível ao legislador utilizar-se de cláusulas abertas porque isso já foi feito no Código Penal de 1940.

Além de superado esse arcaico argumento, que não deveria servir de sustentação jurídica, o sistema financeiro é complexo e tampouco tem um estudo aprofundado pelos operadores do Direito, fato esse que por si só já justificaria um cuidado redobrado no momento de análise da adequação típica da gestão temerária. Portanto, tais argumentos não servem para justificar a existência da redação do tipo penal de gestão temerária ou qualquer tipo penal de amplitude desmesurada que vise a regular uma conduta praticada pelo cidadão. Utilizar-se de tipos penais abertos para incriminar condutas que atentariam contra a ordem econômica é enfraquecer o princípio da tipicidade, dando ao Direito Penal econômico um caráter intimidativo [6].

Portanto, nunca é demais recordar que o emprego de cláusulas gerais da definição de normas incriminadoras é uma técnica extraordinariamente perigosa no campo do Direito Penal, já que este é, por excelência, o ramo do Direito que joga com a liberdade das pessoas. De outro lado, o uso dessa técnica legislativa viola o princípio da tipicidade [7].

Nesse sentido, Giacomolli refere que a defesa de um Direito Penal com tipos abertos, difusos, indeterminados, ou com normas penais dependentes de uma normatividade integradora (normas penais em branco), ou de um regramento judicial, são características de um Direito Penal autoritário e demasiadamente repressivo, inadmissível no atual estado de desenvolvimento da civilização [8].

Ademais, parece-nos que muitas vezes nos olvidamos de que o princípio da legalidade penal e, através dele, o valor da segurança jurídica, vinculam de modo diferente o legislador e o juiz. O legislador deve descrever as condutas penalmente ilícitas com precisão, não só para legitimar em abstrato o seu trabalho, mas também — dado que o próprio sistema se dota de mecanismos vinculantes para garantir a vigência de seus princípios — para a própria operatividade da norma emanada. Uma norma imprecisa que lesione a segurança jurídica de seus destinatários será inconstitucional e não deverá ser aplicada pelo juiz, porque faltará a tipicidade do comportamento analisado. Por sua vez, o juiz fica vinculado pelas fronteiras da lei penal, sem que lhe seja permitido castigar fora das previsões legislativas, ainda que considere pessoalmente que o comportamento em questão é lesivo e reprovável e que essa consideração corresponde às vigentes valorações sociais [9].

Nessa linha de argumentação, afirma Giacomolli que a descrição legislativa das condutas e das sanções deve ser clara, precisa e cognoscível, delimitadora da tipicidade e do subjetivismo dos operadores jurídicos, principalmente do órgão jurisdicional, informada pelo adágio nullun crimen, nulla poena sine lex certae (taxatividade) [10].

De acordo com isso, não devemos nos curvar às novas políticas legislativas de recrudescimento do Direito Penal, que levam à erosão dos postulados básicos das garantias penais, principalmente no que diz respeito à construção de tipos penais fechados, claros e determinados, segurança que não podemos abrir mão nessa quadra da história.

 


[1] DIEZ RIPOLLÉS, José Luis. Alternativas a la actual legislación de drogas. Cuadernos de Política Criminal. Madrid, nº 46, 1992, p. 78; MUÑOZ CONDE, Francisco. Derecho Penal. Parte Especial. 11ª.ed. Valencia: Tirant lo blanch, 1996, p. 569, faz uma crítica referente a outros tipos penais que se utilizam de cláusulas abertas.

[2] Nesse sentido, RODRÍGUEZ MOURULLO, Gonzalo, op. cit., p. 286, refere que todo o tipo aberto supõe uma sensível limitação ao princípio da legalidade. Sobre o princípio da legalidade, BACIGALUPO, Enrique. Princípios de derecho penal. 5ª. Ed. Madrid: Akal, 1998, p. 55 e ss.; LUZÓN PEÑA, Diego-Manuel. Curso de Derecho Penal. Parte General. Madrid: Universitas, 1996, p. 81; MIR PUIG, Santiago. Derecho Penal. Parte General. 4ª. Ed., Barcelona: PPU, p. 75 e ss.

[3] CALLEGARI, André Luís. Comentários à Constituição do Brasil. 2ª. Ed. São Paulo: Sariava, 2018, p. 412.

[4] MAIA, Rodolfo Tigre. Dos Crimes Contra o Sistema Financeiro Nacional. São Paulo: Malheiros, 1996, p. 60.

[5] Idem, p. 60.

[6] CORREIA, Eduardo. “Introdução ao Direito Penal Econômico”. Direito Penal Econômico e Europeu: Textos Doutrinários. V. I. Problemas Gerais. Coimbra: Coimbra Editora, 1998, p. 302.

[7] FARIA COSTA, José e COSTA ANDRADE, Manuel. “Sobre a concepção e os princípios do Direito Penal Econômico”. Direito Penal Econômico e Europeu: Textos Doutrinários. V. I. Problemas Gerais. Coimbra: Coimbra Editora, 1998, p. 355.

[8] GIACOMOLLI, Nereu José. “Função Garantista do Princípio da Legalidade”. Revista Ibero-americana de Ciências Penais. Coordenação de André Luís Callegari, Nereu José Giacomolli e Pedro Krebs. Porto Alegre, nº. 0, p. 41-55, mai.-ago., 2000.

[9] RODRÍGUEZ MOURULLO, Gonzalo. Delito y pena em la jurisprudencia constitucional. Madrid: Civitas, 2002, pp. 25/26.

[10] GIACOMOLLI, Nereu José, op. cit., p. 49.

Autores

  • Brave

    é advogado criminalista, pós-doutor em Direito Penal pela Universidad Autónoma de Madrid, professor de Direito Penal nos cursos de mestrado e doutorado do IDP/Brasília e advogado de Joesley Batista.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!